AGOSTINHO NETO, HOMO POLITICUS
Quando voltei a ler, - com grande surpresa - na CULTURA de Outubro, o texto completo da comunicação que apresentei pessoalmente, em 2002, num colóquio internacional promovido pela Universidade de Roma La Sapienza e Embaixada de Angola em Itália, che iada por Boaventura Cardoso, -O discurso ecléctico de Agostinho Neto - tornei a sentir o impulso que me a lorara quando li o livro de memórias de Irene Neto, Angola, à lor da pele, em 1998, e que icara suspenso, à espera da “melhor oportunidade”, desde que escrevi o último período daquela comunicação:
“Ele acreditara sempre que chegaria o dia do resgate e da concretização da ‘Sagrada Esperança’, ao im de um longo, polémico e aturado percurso - em que a sua poesia fora apenas uma das muitas armas usadas nas lutas desenvolvidas pelo caminho.”
Pois é chegado o tempo do reatamento, que a benevolêndia da CULTURA (face à extensão e quiçá inoportunidade daquele texto) encorajou, depois de centenas de livros e milhares de páginas produzidos em todo o mundo sobre aquele que é o grande Poeta Nacional e Fundador do Estado de Angola. E também Herói, porque vencedor de uma longa batalha, num percurso que durou todo o tempo da sua vida, em que a Poesia foi a catarse das energias acumuladas e reprimidas em prisões, desterros e separações da família, que só se restabeleceriam, qual Anteu, com o retorno à terramater. Nesta, poderia en im proclamar, como Torga, após várias jornadas pelo mundo:
Também só então Neto via ultrapassado o longo período em que o seu povo, aprisionado na Caverna colonial, apenas podia ver “passar sombras a tactear o Nada/ (…) rojando-se em esperanças/interrogando à morte/o que é a Vida.”
Passara o tempo caótico da Poesia para dar en im lugar ao tempo do homo politicus que se gerara logo na sua juventude (nenhum político nasce feito, faz-se), esse que Aristóteles de inia como não se bastando com a satisfação dos desejos pessoais, no seio da família ou da aldeia, alheio a responsabilidades e compromissos para com a pólis. No entendimento do ilósofo grego, o homem incapaz de comungar com a sociedade ou era um bruto ou uma divindade…
Agostinho Neto não se deixara sequer contaminar pelas emanações sedutoras de qualquer Parnaso ou pelo fascínio de qualquer Narciso ou Griot, recusando presumir-se tão-pouco “umbigo do mundo”, no dizer irónico de Alexandre Herculano quando retirado para a sua aldeia no vale de Santarém. Neto considerava-se, naturalmente, um homo politicus, mas disposto a ser concomitantemente um homo viator, por exigências de um compromisso com a luta do seu povo. Como não tinha vocação para áulico ou divindade (os seus ícones eram Ngola Kiluanji e Raínha Ginga), as suas viagens (nem sempre compreendidas por camaradas na guerrilha) não eram de evasão ou deleite, mas de propaganda revolucionária e em busca de apoios. Se por Áfricas, Europas, Ásias e Américas foi cumulado de honrarias, estas, ao invés do provérbio, não lhe mudaram os costumes, de modéstia e discrição – seus e da família, quando eventualmente o acompanhava nas viagens ou, em estado de provação permanente, nas cidades cosmopolitas ou nas aldeias do mato, com as mesmas incertezas e ansiedades com que esperara o termo das muitas prisões e desterros em que ele afrontara os demónios do martírio.
É sabido que todos os povos subjugados e por im libertos viram distinguidos os seus heróis e mártires nacionais. E que muitos outros, imersos na multidão anónima, só seriam lembrados em memoriais celebrativos da história colectiva ou em dramáticos poemas como o do moçambicano (por vida e morte) Reinaldo Ferreira: Tomese um homem. Feito de nada, como nós, E em tamanho natural. Embebaselhe a carne, Lentamente, Duma certeza aguda, irracional, Intensa como o ódio ou como a fome. Depois, perto do im, Agitese um pendão E toquese um clarim. Serve-se morto. Dos todavia nomeados, mas desavindos, ainda se poderia dizer, como escreveu Edmundo Rocha, referindo Viriato da Cruz: “Os únicos que o choraram foram três angolanos: a mãe, a mulher e a ilha.”
Agostinho Neto nunca esqueceu o custo humano das batalhas travadas por todo o seu povo para concretizar a Sagrada Esperança. Em l972 ele registava no último poema retirado do seu diário: Sobre o sangue quente do meu irmão Sacri icado pela pátria Construo o meu sonho de união Sobre o sangue ainda quente da minha irmã Assassinada pelos carrascos Reconstruo o meu sonho de unidade