Catana literária contra o colonialismo
LUUANDA – 1964/2014
"Vovó Xíxi e seu neto Zeca Santos", "A estória do ladrão e do papagaio" e "A estória da galinha e do ovo" são os títulos dos três contos que integram a antologia LUUANDA. Publicada em Luanda em 1963 e depois em Portugal em 1964, este livro revolucionou a trajectória da literatura angolana e foi, na verdadeira acepção da palavra, um daqueles fenómenos em que a palavra exerceu a função de lâmina, capaz de ferir como uma catana o sistema colonial português, naquilo que este tinha de mais representativo: o sentimento eurocêntrico da portugalidade e a pilhagem dos recursos dos povos do Ultramar.
Como apontou o professor Salvato Trigo, no passado dia 10 de Novembro, durante a sua intervenção no colóquio “De Luuanda (1964) a Luandino (2014): veredas”, organizado por iniciativa de Francisco Topa, da Faculdade de Letras do Porto, “foi por essa intervenção social da escrita que houve uma patética comoção nacional, amplamente mediatizada, à volta do prémio atribuído a Luuanda, porque, seguramente, os mais esclarecidos indefectíveis do regime colonial perceberam que esse livro, germinando a nacionalidade linguística, cultural e literária angolana, prenunciava a inevitabilidade da nacionalidade política.”
Passados quase 50 anos da atribuição do o 1º Prémio do Grande Prémio da Novelística, pela Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), em Lisboa, em 1965, quando já o seu autor estava preso no Tarrafal, e que conduziria ao encerramento da APE e à prisão dos membros do júri, a Universidade do Porto reuniu 25 a icionados da obra luandina, oriundos de Angola, Brasil, Espanha, Itália, Portugal, Polónia e Suécia, na ‘mui nobre e invicta cidade do Porto’, de 10 a 11 de Novembro de 2014, e que foi, simbolicamente, uma forma de celebrar a independência de Angola para a qual concorreram não só as catanas de ferro, mas também as catanas culturais.
Francisco Topa, professor de Literatura brasileira e Literatura angolana na Faculdade de Letras do Porto, que esteve à frente de tão merecida homenagem ao livro LUUANDA (Luandino Vieira foi peremptório, por altura do anúncio que lhe foi feito, em reiterar que não queria nenhuma homenagem ao autor, mas ao livro e que só participaria se houvesse a presença das autoridades académicas e culturais angolanas), confessou: “apercebime de que passava este ano o cinquentenário da publicação da obra, e que fazia todo o sentido assinalar isso, tanto mais que o autor está vivo. E sobre- tudo porque há, do meu ponto de vista, uma injustiça grande a reparar. A obra foi recebida há cinquenta anos em condições que são bem conhecidas, há uma dívida de Portugal e de Angola para com o Luandino Vieira, este colóquio tentou, modestamente, reparar essa dívida, e dar um abraço de gratidão ao autor.”
AFRICANIZAÇÃO DA LINGUAGEM LITERÁRIA
O colóquio “De Luuanda (1964) a Luandino (2014): veredas” abriu no dia 10 de Novembro, com a conferência de Salvato Trigo, da Universidade Fernando Pessoa, intitulada “Luuanda: nacionalização literária, reinvenção e angolanização da língua portuguesa”. “De forma muito resumptiva”, a irmou à dada altura da sua prelecção, “direi que Luuanda foi uma ruptura linguística no trajecto até então fei- to, em poesia ou em prosa, por Luandino Vieira, porque, como tive ocasião de escrever, num estudo de fundo que iz sobre o autor, “o seu texto lança as bases para uma profunda africanização da linguagem literária de raiz portuguesa, não só pela violação da norma, mas também, e principalmente, pela paixão neológica e analógica” ou metafórica, que aprendeu confessadamente em Sagarana, de João Guimarães Rosa. (....)
Luuanda, livro que marca o início da assunção duma escrita que se outra, para se angolanizar, linguística, estética e culturalmente, e a restante obra narrativa luandina ajustam- se plenamente à observação percuciente de Óscar Lopes: a tradutibilidade entre o português de lei, a sua fala angolana e as falas de línguas vernáculas; a criatividade contínua levada a limites como em João Vêncio: os seus amores; um discurso exuberante em paisagens ísicas e psicológicas, desenvolvido em rácimos, numa sintaxe mais de tabularidade do que de linearidade, e africanamente expeditiva, com profunda economia de meios lexicais e deícticos, desossi icam as estruturas da língua de colonização a contragosto tornada língua de libertação ou de proclamação duma independência literária, preexistente à independência política. (...)
Luandino, qual poeta do musseque, cumprindo o papel de aedo e de demiurgo da nacionalidade literária angolana , encontrou, portanto, no escritor brasileiro do Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa, o seu farol para traçar a nova rota da narrativa literária angolana, onde evoluem personagens tiradas da vida real para a icção numa técnica de composição e