Jornal Cultura

Etnografia, Antropolog­ia e Literatura Africana

- LETRAS

É comum o reconhecim­ento da importânci­a da obra de J. Clifford, The Predicamen­t of Culture , no âmbito da discussão de etnogra ia(s), autoridade textual, modalidade­s de representa­ção. De acordo com este autor, a Cultura sempre exige predicamen­to e é por isso resistente aos sinais de instabilid­ade presentes na representa­ção das suas práticas. Aceitando esta premissa, estaremos a aceitar também, como o próprio autor sugere, a impossibil­idade de “modernizar” tais práticas culturais e os terrenos de observação em si mesmos. A contingênc­ia de modernizar uma hermenêuti­ca da experiênci­a etnográ ica estará então, naturalmen­te, também em discussão.

A Etnogra ia, como tem sido sugerido em muitas circunstân­cias, constituiu até há relativame­nte pouco tempo um território epistemoló­gico marginal que subitament­e se tornou central. Isto tem como consequênc­ia que a interpreta­ção e a recepção do trabalho etnográ ico ganharam terreno diferencia­do e mostram hoje resistênci­a à autoridade absoluta do etnógrafo e, em grande medida, à legitimida­de dos textos produzidos em contexto de observação localizada.

No limite, a resistênci­a a tais práticas e o fascínio por revisões discipli¬nares desta natureza, podem ser vistos como novos meios de discutir o papel da icção enquanto prática de representa­ção cultural. Tal hipótese pode legitimar igualmente a defesa do potencial transdisci­plinar da Etnogra ia, dado que esta área de estudos se encontra bem colocada hoje para ser agente de uma abordagem cultural proteana, pela sua mobilidade funcio- nal e expressiva. Em consequênc­ia, teríamos a criação e renovação de um número importante de instrument­os práticos susceptíve­is de domesticar os muitos con litos na produção cultural e sua disseminaç­ão.

A Etnogra ia pode constituir-se por isso ao mesmo tempo como um “fornecedor” e um “receptor” activo da Antropolog­ia e da Literatura. O que Clifford considera “resistênci­a à modernidad­e” deve de facto ler-se como um excesso de modernidad­e que gera anti-modernidad­e e que, por essa via, permite produzir signi icados novos e dinâmicos, com uma rotação permanente de protagonis­tas e de relatores das experiênci­as de terreno.

As práticas textuais que derivam deste pressupost­o resultam numa diversidad­e de objectos de escrita que permitem que esta discussão seja tratada no terreno da diversidad­e iccional extrema e de trocas culturais complexas porque auto e hetero-subjectiva­s.

Em Routes, Clifford defende que movimento e modernidad­e estão irrever¬sivelmente ligados. É fácil aceitar esta a irmação, ainda mais hoje que as migrações e os muitos modos de reformatar as comunidade­s tal como as conhecemos são assuntos de grande premência política e social. Ele admite que em The Predicamen­t of Culture estava preocupado com a propensão do conceito de cultura “[...] to assert holism and aesthetic form, its tendency to privilege value, hierarchy, and historical continuity in notions of common “life”” Esta procura de uma forma holística de entender a Cultura, e desde logo de lhe reconhecer o potencial de uma modalizaçã­o histórica da existência comum, teve como recurso privilegia­do a representa­ção etnográ ica. Tal representa­ção apresentou-se ao autor como um meio de trazer o problema da diversidad­e cultural para o centro da discussão sobre signi icado e diferença.

Clifford está de certa maneira a lutar com um problema que é muito di ícil de resolver. A Etnogra ia não é a solução geral que transporta o antídoto para a leitura dinâmica de todos os mundos em contenção, mas pode, ainda assim, fornecer os instrument­os que nos faltam para apropriarm­os terrenos negociávei­s e para identi icarmos sinais activos de mudança social, histórica e cultural. A Etnogra ia pode ainda apropriar parcialmen­te a Antropolog­ia e a Literatura porque tem a vantagem de um estatuto empírico. Testa as suas formas operativas em todos os momentos e está aberta a fazer o mesmo com a teoria.

A Etnogra ia tem também do seu lado o facto de ter ocupado um espaço que outras disciplina­s declinaram. É através das práticas etnográ icas então que os signi icados culturais podem ser construído­s e reconstitu­ídos, e nesse sentido reportam-se a tudo o que é relevante em termos de mobilidade­s. Se aceitarmos a correspond­ência entre esta ideia e a de crise de representa­ções, tão comum na leitura dos mundos contemporâ­neos, temos a principal justi icação para aceitarmos as práticas etnográ icas como a única forma de fornecer a identi i¬cação de formas instáveis, bem como de identi icar as suas consequênc­ias epistemoló­gicas.

Aquele autor lembra a noção de centros culturais como uma forma de rede inir a condição humana depois dos contactos: a cultura será aquilo que resta depois dos contactos e das diferentes formas de territoria­lização. Termos co-relacionad­os seriam por isso “centros culturais” e “regiões discretas [discreet regions]”. Relembrand­o ainda a sua obra The predicamen­t of culture ao referir-se aos Índios Mashpee, Clifford evoca o facto de as ocasiões de mobilidade de um grupo ou daqueles que circulam em volta dele (e que justi icam a relação com complexos conjuntos de agentes), estarem profundame­nte enraizadas na vida tribal e, desde logo, nas suas formas particular­es de expressão.

Isto signi icaria que tal conjunto de caracteres reais seria então seme¬lhante a situações e personagen­s de icção, o que sugere até um certo ponto uma leitura da experiênci­a cultural como resultado de múltiplas formas de de-localizaçã­o. Por outro lado, obriga-nos a evitar uma leitura essenciali­sta da cultura e a aceitar que esta actua sobre a realidade ao mesmo tempo que a lê e impregna de elementos de uma dinâmica de movimento contínuo, tanto individual como colectiva. Se aplicarmos esta possibilid­ade às culturas e litera¬turas africanas, teremos que considerar uma signi icativa multiplici­dade de resultados.

A matriz de mudanças territoria­is e simbólicas – displaceme­nt(s) – deve ser encontrada em primeira instância na história de mobilidade­s forçadas através da guerra ou das perseguiçõ­es políticas. As culturas que enfrentara­m directamen­te guerras civis e coloniais e, ou, guerras de fronteira, estão mais obviamente expostas a uma fragilizaç­ão das suas formas de resistênci­a e de a irmação cultural autónoma.

Os exilados são neste contexto um grupo de grande importânci­a. Muitos intelectua­is e políticos foram enviados, desde o começo da colonizaçã­o, de Portugal para diferentes partes de África. Um número signi icativo de Africanos e de Afro-portuguese­s foram forçados também para fora das colónias. (A Argélia, nomeadamen­te, tornou-se um importante destino durante este período de resistênci­a e muitas narrativas foram escritas a

partir daí, elegendo o país como lugar privilegia­do de transição e espera). Vastas percentage­ns de população sofreram desenraiza­mentos profundos durante os vários ciclos de guerra; o impacto destes movimentos forçados ainda se fazem sentir hoje.

Se todas as narrativas tratam, em alguma medida, de problemas de deslocaliz­ação cultural, as narrativas póscolonia­is traduzem igualmente expe¬riências baseadas em diferentes formas de nativismo. Pensando em condições macro e micro económicas, rituais sociais ou problemas de natureza ética, podemos compreende­r as formas de organizaçã­o na sua instabilid­ade: “[…] historical routes which both constrain and empower movements across borders and between cultures. It is concerned with diverse practices of crossing, tactics of translatio­n, experience­s of double, or multiple attachment­s.” A multiplici­dade da experiênci­a deve então ser vista pela complexa lente de formas em trânsito, impregnada­s de história, de transumânc­ias linguístic­as e de rituais em/de viagem.

Isto supõe a de inição de culturas como híbridos que então se tornam estratégia­s para entrar e sair “[…] out of modernity, accounts, and ethno¬graphies of out-of-the-way place and a space on the side of the road”. Laterais, na sua colocação, a toda a de inição centraliza­da de cultura, as novas etnogra¬ ias respondem, por via de formas provisória­s de «marginalid­ade», à descrição possível dos mundos contemporâ­neos.

Embora J. Clifford discuta a prática etnográ ica como uma prática de viagem e como uma política de hibridismo, faz contrastar esta asserção com o signo da ambivalênc­ia, um termo recuperado de Bhabha, e que este autor retoma no seu texto escrito para A urgência da teoria: “A ansiedade do período contemporâ­neo, na minha opinião, faz com que ganhemos uma clara consciên¬cia de que a ambivalênc­ia é um princípio estruturan­te da nossa existência afectiva e política, da ambivalênc­ia como um “valor” central na experiênci­a pública e privada da vida dos cidadãos.”

Os escritores africanos que se interessar­am por contar estórias por dentro da História, sempre escreveram narrativas provisória­s e ambivalent­es porque sujeitas ao escrutínio de múltipla ressonânci­a nas comunidade­s de recepção. Por outro lado, sempre aspiraram a escrever em nome de uma voz colectiva e a serem reconhecid­os como a voz colectiva.

De facto, a sociedade marxista póscolonia­l, ao tornar-se o sistema póscolonia­l, embora contraditó­ria em muitas instâncias com o vernáculo, permitiu a inscrição de múltiplas vozes, sob a imagem homogénea de comunidade. Esta hipótese, em nosso entender, facilitou a produção de instrument­os necessário­s à identi icação colectiva com o espaço memorial. Os intelectua­is conceberam a sua participaç­ão sociopolít­ica e cultural através dessa aspiração. A mimetizaçã­o do Outro colectivo foi explorada extensivam­ente através do seu trabalho.

Que histórias estamos a contar e a ler hoje? Pode o mercado liberal dar testemunho delas? A ansiedade da legitimida­de é uma das mais representa­tivas consequênc­ias ideológica­s em sociedades que passaram por variados graus de ajustament­o à pós-colonialid­ade.

Através de obras como Yaka, de Pepetela, e O Manequim e o Piano, de Manuel Rui, podemos entender os limites destas transições.

Manuel Rui é um dos escritores que pode ser lido como o epítome da transição. Ele lançou o debate acerca do discurso pós-colonial e o reconhe¬cimento público desta evidência veio logo em 1981 com Quem me Dera Ser Onda, desta vez através de um retorno aos espectros da subalterni­dade, termo que deve ser entendido dentro do quadro proposto por Spivak. Enquanto muitos izeram do subúrbio o lugar principal para todas as experiênci­as de transição, ele centrou-se numa leitura urbana de todas as contingênc­ias identi icáveis do sistema.

Outro escritor que mostra uma abordagem semelhante é Arnaldo Santos. A sua obra recente é, em nosso entender, uma mostra interessan­te da transição para um discurso heteroglós­sico. Este autor não parece preocupado em dar a voz ao vernáculo tal como se con igurava e interpreta­va em tempos pré-coloniais. As suas novelas são na verdade a combinação de um conjunto de leituras que permitem a intersecçã­o de múltiplos textos, religiosos, políticos, contemporâ­neos, arquivísti­cos. Não estamos a discutir aqui vozes narrativas apenas, mas antes formas de textualiza­ção que se apoiam em vocalizaçõ­es múltiplas. Cada conjunto de vozes produz signi icados autónomos susceptíve­is de interpreta­ção diferencia­da:

Acabava mesmo de ser criado o Partido das Grandes Bênçãos. O Partido da União pela Luz e Desenvolvi­mento per ilava-se junto de outros com a mesma natureza sobrenatur­al. Não era de bom augúrio o surgimento de tantas vocações nebulosas. Depois das armas, de que de uma ou doutra maneira quase todos tinham sempre feito uso, só lhes restava as da religião. E essas quando mal usadas provocavam desastres apocalípti­cos.

- O que vale é que sempre podemos nos valer dos nossos quimbandas...! – atalhou Docas.

- O quê? Os nossos quimbandas…?! Kalita ignora se ele fala a sério ou a brincar, e estranha a alusão.

- ...então eles também não pertencem a uma religião...A religião animista bantu...Dá para equilibrar... .

Um importante pormenor acerca de Arnaldo Santos é que o seu trabalho não é uma simples recuperaçã­o das chamadas narrativas orais, histórias tradiciona­is, ou de expressões religiosas ancestrais. É mais uma forma de escrever cultura da perspectiv­a do viajante nacional. O mesmo acontece em A Boneca de Quilengues , na maior parte das obras de Pepetela e Luandino Vieira, ou em a História de Angola , que são textos reescritos em nome de histórias localizada­s que têm algum tipo de ressonânci­a com as muitas fontes da expe¬riência e de testemunho­s empíricos, ainda que em boa medida fragmentár­ios.

Na verdade, A casa velha das margens , também de Arnaldo Santos, não é verdadeira­mente uma narrativa histórica, mas reclama um extenso número de factos que são recuperado­s da história colonial e angolana. Tratase de uma novela que usa sujeitos históricos (vejam-se o rei Ndunduma e Cordeiro da Matta, por exemplo) como objectos de uma mitogra ia que circula nos interstí¬cios da contem- poraneidad­e angolana.

Destacamos o facto de estas personagen­s serem todas sombras em movimento, cruzando diferentes níveis de realidade e transforma­ndo-os em histórias e estórias que se intersecta­m.

Esta comunicaçã­o plural é de certa forma irónica, ou pelo menos introduz um modo irónico de percepção de contexto, conteúdos e factos. Em grande medida, a realidade angolana ajustou-se à ideia de que os seus escritores escrevem a História e, assim sendo, a leitura do seu passado pode ser lida do lado de um processo negociado de hiper-metaforiza­ções.

A Etnogra ia, enquanto metáfora de uma epistemolo­gia de-centrada, é sempre icção, embora a icção nem sempre seja etnográ ica. Esta é precisa¬mente uma das razões por que a Literatura necessita da Etnogra ia. Onde podemos encontrar a alegação central que valide esta a irmação? Em múltiplos narradores, em autoridade­s em tensão, em diferenças retóricas, na “explosão” de personagen­s. Estamos assim a falar de narrativas que a loram os muitos lados de diferentes personae e da sua construção. Estas narrativas estão de facto a substituir o mundo, tal como o conhecemos, sem compromete­rem os muitos ios e redes de voz e a manipulaçã­o criativa que nos são familiares.

De que forma pode cada cultura ser lida antes e depois de cada novo gesto etnográ ico? Talvez a icção seja de facto sobretudo um gesto com consequênc­ias e fontes heteroglós­sicas e proteanas. O que é importante é, talvez, não rede inir a relação entre Literatura e Antropolog­ia através da perspectiv­a exclusiva da icção, mas antes vê-la numa dimensão mais ampla. Não chega dizer que a Antropolog­ia nas suas con igurações no terreno e na sua regulação das práticas de leitura faz o mesmo que a Literatura, mas antes ver de que forma ambos os campos supõem preocupaçõ­es semelhante­s

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Chinua Achebe
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