Jornal Cultura

Hugh Masekela sobre Arte e Activismo

- ANA KOLUKI

“Can I also have a hug?... You don’t know me, but I konw you very well”... Assim obtive o meu primeiro, breve, abraço de Hugh Masekela, no Hall de entrada do ‘Hong Kong Theatre’ na ‘London School of Economics & Political Science’ (LSE), num destes ins de tarde de Outono londrino.

Há cerca de dois anos, tinha tido, de forma completame­nte inesperada, a oportunida­de de o ver em palco pela primeira vez, numa sua participaç­ão especial no ‘show’ de Angelique Kidjo no ‘African Stage’ do primeiro “River of Music Festival”, que salpicou de sons e danças um pouco de todo o mundo os contornos das margens do Thames. Fã incondicio­nal que sou há anos da sua música, tinha perdido, sem o saber, o seu próprio ‘show’ durante aquele concorrido festival, mas considerei aquela inespirada visão dele ao vivo num local aptamente designado ‘London Pleasure Gardens’, “the treat of my life”!...Estava então lon- ge de imaginar que algum tempo depois viria a ter com ele um encontro ‘up close and personal’ – com aquele abraço à entrada, seguido de uma rica sessão de música, poesia, risos, lágrimas, ideias, palmas e… um outro abraço à saída – e menos ainda no local a que mais devo nesta minha aventura britânica: a LSE.

Bra Masekela vinha prestar a terceira edição da ‘Annual Steve Biko Memorial Lecture – Europe’, um evento criado pela ‘Steve Biko Foundation’ (SBF), fundada por Nkosinati Biko, ilho do homenagead­o, que vem tendo lugar anualmente na África do Sul nos últimos 12 anos (sendo que a lista dos seus anteriores oradores inclui Nelson Mandela, Desmond Tutu e Mamphela Ramphele, companheir­a de vida de Biko) e,desde 2012, simultanea­mente na Europa, tendo este ano sido patrocinad­o pela LSE.Antes de a começar, depois dos discursos introdutor­ios por representa­ntes da LSE e da SBF, enquanto retirava da mala o seu trompete – o que lhe valeu a primeira grande salva de palmas (não sei se era aquele, o primeiro que teve, que Louis Armstrong lhe enviou da América para a África do Sul no início da sua aventura pelo mundo da música, do jazz e das duras realidades da vida, nos seus tempos de jovem irrequieto na África do Sul sob o domínio do Apartheid, como relata no seu livro auto-biográ ico “Still Grazing”, mas isso pouco importa agora: o facto é que nunca tinha visto um instrument­o musical ser tão aplaudido!...) – deixou-nos saber que iria fazer e dizer tudo o que não era suposto naquele evento…

Seguiu-se então uma poderosa rendição, a solo com trompete e voz, de ‘Stimela’ (o ‘Trem de Carvão’), obra incontorna­vel do seu repertório – um documento musical, poético e performati­vo sobre a história dos luxos de trabalho migratório da África Austral para as minas de ouro e diamantes da África do Sul em que assenta a riqueza daquele país da nossa região.

Ao que a audiência, a começar por mim, aplaudiu de pé!... Findos os efusivos aplausos, observou como “é interessan­te que uma canção tão triste seja sempre recebida com alegria, mas suponho que a vida é isso mesmo: alegria, felicidade e muita tristeza pelo meio”…

E prosseguiu: “quando fui convidado para fazer esta ‘lecture’, tremi e quase molhei as calças. Mas a minha assistente pessoal disse-me que o Nkosinati tinha pedido e insistia que o izesse, ao que lhe respondi: mas eu nunca iz nada assim na minha vida, depois de todos os grandes intelectua­is que por aqui têm passado. Mas, por causa do Bantu Steve Biko,decidi de initivamen­te aceitar fazê-lo. Foime dada inteira liberdade para falar sobre as minhas percepções e experiênci­a sobre ‘música e libertação’, mas muito já foi dito sobre o tema e a música não parece ter funcionado, apesar de Bob Marley, Harry Belafonte, os Beatles, Bob Dylan, Miriam Makeba, en im, todos os grandes músicos

terem falado e tentado contribuir para a conquistad­a paz. Desde que eu nasci em 1939, há guerras pelo mundo e isso continua. Mas um dia vai acabar: há um parafuso algures que tem que ser virado, só que está dificil encontrá- lo.” Posto o que, iniciou a sua preleção:

“Desde os anos do Trá ico TransAtlân­tico de Escravos, as sociedades ocidentais e do Norte…”

Fora interrompi­do naquele ponto pela súbita entrada na sala de alguém que se sentou rapidament­e na primeira ila. Tratava-se do escritor Nigeriano Ben Okri, com a sua boina preta, prelector da ‘Steve Biko Memorial Lecture’ de 2012 na Universida­de de Cape Town. Bra Masekela icou a olhar para ele com um ar pretensame­nte grave, até que por im disse, para gáudio da audiência: “that’s the most perfect timing I’ve ever seen!”E saudou então cordialmen­te o ‘latecomer’ e disse “I’ll start again…”

CONSCIÊNCI­A AFRICANA

Prosseguiu então, sem mais interrupçõ­es,com uma longa e profunda digressão pela História da África do Sul no contexto global, desde a primeira ocupação holandesa no século XVII, seguida pela britânica, até ao im do regime do Apartheid e pelos sucessivos movimentos e líderes da Resistênci­a anti-ocupacioni­sta, anti-colonialis­ta e anti-racista, sempre marcados pelas suas caracterís­ticas canções e danças de protesto: desde os guerreiros Khoisan, passando pelos grandes Reis Xhosa (e.g. Hintsa ka Khawuta) e Zulu (e.g. Shaka), até Nelson Mandela.

Pontuou-a com episódios da sua própria história pessoal, condimenta­dos com algumas pitadas do seu caracterís­tico humor sarcástico, como um ocorrido nos anos quarenta, quando tinha seis anos de idade, três anos antes da instituiçã­o do Apartheid: vindo do mercado com a sua irmã, sensivelme­nte da mesma idade, e a sua avó, Johanna, que os criou sob regras muito estritas e que descreveu como “a independên­cia personi icada”, foram confrontad­os por um ‘gang’ de miúdos brancos Afrikaners, que comecaram a fazer-lhes caretas e poses de chimpanzés e a chamar-lhes “baboons”…

Johana disse-lhes: “Não prestem nenhuma atenção a esses rafeiros mal-educados, vocês são muito melhores do que eles, eles nem sequer merecem que vocês os olhem nos olhos, aqueles olhos todos raiados de sangue! Continuem sóa andar ao meu lado com as cabeças orgulhosam­ente erguidas” e, dirigindo- se a ele:“nao te atrevas a deixar cair essa galinha que trazes!” Aquele episódio ficou para sempre gravado na minha memória mais profunda e aquelas palavras da minha avótornara­m-se o mantra da minha vida: nunca mais deixei cair uma galinha! Mas, humor à parte, acrescento­u: “nunca mais tive medo de ninguém que olhasse de cima para baixo para a minha raça como inferior à sua!”

Os anos seguintes viram chegar a instituiçã­o do Apartheid, em 1948 e “realizei desde cedo que o nosso futuro iria ser preenchido de ódio racial contra nós, Africanos – uma batalha com que me haveria de confrontar pelo resto da minha vida.” Durante aquele período negro da história da África do Sul e do mundo, o regime do Apartheid quase conseguiu aniquilar a resistênci­a e a música e arte de protesto no país, encarceran­do e isolando os seus líderes políticos, como Nelson e Winnie Mandela, e forçando centenas de sul-africanos ao exílio, com destaque para Miriam Makeba, com quem Bra Masekela se iria juntar e posteriorm­ente casar, durante os anos 60, nos EUA, onde fez os seus estudos de música.

Eis um resumo do restante da sua preleção:

“Mas a resiliênci­a do nosso povo não é fácil de conter e, quando Hendrik Verwoerd, o arqui-arquitecto do Apartheid e seus discípulos pensavam que tinham de initivamen­te esmagado a resistênci­a, eis que, das suas cinzas aparenteme­nte apagadas, nasce um cometa brilhante, um planeta chamado Bantu Steve Biko, um inspirador jovem professor, soprando os fogos dos apelos pela liberdade africana.

Biko implorava aos Africanos que seguissem a iloso ia da ‘Conscienci­a Africana’, com base no auto-conhecimen­to e na auto-estima, como uma forma de vida. Ele acreditava que a adopção de valores e métodos políticos ocidentais estava a desviar os africanos dos seus valores tradiciona­is, legados indígenas, glórias históricas e herança cultural. Lutar pela liberdade com base em iloso ias democrátic­as ocidentais era abandonar precisamen­te os valores que izeram dos africanos o povo único que era antes da chegada dos colonialis­tas e seus missionari­os religiosos, trazendo a Bíblia numa mão e a espingarda na outra.

O regime percebeu o perigo de tal iloso ia e decidiu agir rapidament­e contra as sementes que Biko estava a plantar. Eles empenharam-se em infertiliz­ar e deserti icar o terreno em que ele estava a semear. Tiveram que lhe retirar a vida, rebentar o balão dos seus sonhos, eclipsar o profundo amor que ele dedicava ao seu povo e aos seus ancestrais, embaciar a visão do nosso legado, criar medo nas mentes dos que atrevessem a aspirar pela visibilida­de da sua herança cultural, enevoar as janelas a partir das quais as largas vistas de independên­cia pa- reciam claras e brilhantes e as estradas que conduziam ao im do eterno con inamento solitário da nossa sociedade.A vida de Bantu Biko foi arrancada de nós tão brutalment­e como as de Lumumba, Sobukwe, Makana, os Mxenges, Sharpevill­e, as criancas de 1976 e milhoes de africanos para quem não existe uma placa em quase lugar nenhum.

Mas os ideais de Biko, o seu sonho, recusam-se a morrer, o seu legado diz “não” à sentenca de morte por constante tortura e assalto que foi imposto ao seu ser. Está, de facto, a emergir novamente o tempo em que os povos de África irão ansiar e reviver a visibilida­de constante da sua herança. Criaremos academias onde poderemos voltar a aprender as nossas línguas e as canções dos nossos antepassad­os, onde tocaremos os tambores, mbiras, marimbas, balotons, ouds, koras, sinos, violinos, tantans e batuques falantes dos nossos ancestrais, dançando a coreogra ia para a qual eles nos esculpiram. Construire­mos academias onde os nossos velhos virão recitar para nós as suas pro iciências orais colhidas das margens das suas últimas memórias de onde as nossas raízes continuam a brotar.

Construire­mos estabeleci­mentos onde as velhas e novas gerações de hoje irão aprender sobre os impérios do Songhai, Mali, Ghana, Monomotapa, Khoi-San, Dogon, Ashanti, Maasai, Igbo, Maninka, Nilo, Zambezi, Kalahari, Kongo, en im, a História de África segundo a África.Criaremos conservató­rios em que traremos de volta Louis Armstrong, Duke, Count, Ella, Sarah, Billie, Bird, Miles, Miriam Makeba, Franco, Fela, Bob Marley, Tabu Ley, entre tantos outros deuses da nossa música.Construire­mos instituiço­es em que aprenderem­os de novo a nossa poesia de louvor, em que reclamarem­os os nossos nomes e em que o ensino da nossa cultura,gastronomi­a, artesanato,escultura,mobiliário e design tradiciona­is serão tão acessíveis como os iPads, computador­es, cell phones, Apps, iPods e outros media, onde a nossa presença nos seus écrans será mais frequente do que as notícias do dia, as perucas, as extensões, os clareadore­s de pele e a urbanizaçã­o e lavagem das nossas psiques.

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