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O BARQUEIRO E A KIANDA CONTO de Namibiano Ferreira

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O Barqueiro, ágil de braços e musculado, ximbicava o dongo que deslizava carícia macia sobre o meu corpo. Era vigoroso o Barqueiro e parecia não se cansar. Este era o seu destino e o dongo mesmo, só um prolongame­nto do seu próprio corpo, da sua própria alma. Eu também nunca me canso. Sou um tempo líquido a escorrer por dois lábios de margens. Este renovar do meu corpo, a cada instante, não impede que seu seja o narrador líquido destas estórias. Eu sou Kubanganza­nene, o Rio. Um rio não corre nunca a mesma água. O que ica do meu Ego são as minhas memórias, aprisionad­as ao corpo-barro das margens que apreendem a vida dos homens e do mundo. Eu deslizo, sou o sangue da Terra, sou veia e este também é o meu destino, meu eterno destino e sou feliz. No entanto, não me peçam explicaçõe­s de coisa alguma porque não sei explicar coisa nenhuma. A minha Filoso ia, se existe, é simples e rasa. Limito-me a observar e a narrar os factos tal qual acontecera­m ou tal e qual chegaram até mim. A minha Meta ísica resumese a este constante e eterno luir. O Barqueiro transporta­va no dongo pessoas e mercadoria­s entre uma e outra nargem do meu corpo. O vigor dos seus braços, o dongo e eu, o Rio, éramos a trindade que diariament­e sustentava a sua família. O Barqueiro acreditava na Kianda, senhora das águas e sonhava um dia havia de encontrá-la. As kiandas habitam o meu corpo e todo o corpo líquido do sangue da Terra. A mais ponderosa de todas as kiandas vive nas águas amargas de Kalunga, que são salgadas como o sangue dos homens. O Barqueiro sabia como agradar e invocar a protecção desta ponderosa divindade. Ofereci-a-lhe presentes: colares de missanga, espelhos, pentes e brincos, en im coisas que todas as kiandas sabem apreciar. O Barqueiro, sonhava conhecer a lendária beleza e talvez amar a Kianda porém, não era ingénuo e sabia também da crueldade e dos castigos que elas in lingem aos homens para punir a ingratidão e avareza da alma humana. A vingança e a punição de uma kianda é coisa de eternidade, não há perdão. Muitas vezes o ouvia dizer: “As kiandas não são boas nem más; são Justas.” E fazia recair uma especial acentuação na última palavra. Uma vez, à hora do almoço, ouvi mesmo o nosso Barqueiro contar aos outros barqueiros, uma estória que, segundo ele, lhe havia sido contada por um sekulu dos luenas e era assim: “Há muito, muito tempo mesmo lá na Chana da Cameia, onde há mais água do que terra, havia um kimbo que vivia próspero e feliz. Viviam na fartura da pesca da toqueia e não se esqueciam de agraciar as kiandas com oferendas de valor. Porém, houve um soba ganancioso que começou a limitar as oferendas do seu kimbo. E em vez de oferendas dignas passou a dar nas kiandas coisas sem valor. Um dia os homens partiram para vários dias de caça, a toqueia, tão abundante outrora, era agora pouca e havia que procurar comida para um povo que tinha crescido graças aos anos fartos de toqueia. No kimbo, lá no meio da Chana, icaram só as mulheres, os velhos e as crianças. Assim que os homens se perderam na imensidão louca da Chana apareceu no kimbo uma mulher velha, mesmo de pele cheia de tempo, vestia trapos sujos e tão velhos como ela. Toda a sua igura parecia era um kazumbi de assustar. Pedia comida e um pouco de descanso. As mulheres recusaram ouvir as súplicas da velha sekula e ainda mandaram os miúdos lhe apedrejar e açularam só kwata-kwata nos cães, enxutando a velha para fora do kimbo e lhe recusando um pouco de funje mesmo frio e do dia anterior. Quando os homens regressara­m da caça, carregados de boa carne, não encontrara­m o kimbo. No lugar dele existia agora uma lagoa de águas profundas e cristalina­s. Os homens assustados e de olhos esbugalhad­os de terror começaram só ouvir gritos e súplicas de socorro de mulheres e o choro de crianças. Mais assustados icaram porque reconhecer­am as vozes das suas mulheres e o choro dos seus filhos e filhas. Xé, mas de onde vinham esses gritos, essas súplicas esse choro sofrido das crianças? Vinham da própria lagoa que tinha aparecido no lugar do kimbo. No fundo das águas cristalina­s, lá estava o kimbo com as cubatas, os cães, as mulheres e as crianças. Tudo tentaram para os libertarem mas impossível, desconsegu­iram sempre… A velha sekula era uma kianda disfarçada que castigou a avareza e a falta de compaixão das pessoas daquele kimbo da Chana da Cameia. Dizem mesmo que ainda hoje, quem passar por lá, fica só a ouvir aquele choro dos candengues e as súplicas misturadas nos gritos das mulheres. Dos homens, nada mais se soube, dizem por lá que nunca mais conseguira­m constituir famílias.” Esta estória, a favorita do Barqueiro, era para ele uma certeza da existência destas divindades. E mesmo quem é que recolhia as oferendas que ele deixava regularmen­te nas margens do rio? As mulheres não porque tinham respeito e sobretudo pavor. Só podiam ser as kiandas! Todas as tardes, depois do trabalho. O Barqueiro escondia-se nos canaviais na esperança de encontrar a Kianda. Ele sabia que ela existia, pópilas, não era só à toa essa estória lá da Chana, e as oferendas que desapareci­am da margem do rio!? Xé, essas kiandas eram seres existentes, só podia mesmo. Estes eram pensamento­s que o Barqueiro me confessava. A persistênc­ia e a paciência do Barqueiro em breve foram recompensa­das. Num desses ins de tarde estando ele escondido entre os canaviais que se estendem pelas minhas margens, uma estranha aparição surgiu do nada. Estranhame­nte a água parou, nem vibrações nem o cantar habitual da água, o ventou serenou. Um momento em que o tempo, juro, parou. A pouca distância o Barqueiro, viu sair das águas do meu corpo uma silhueta de mulher. Bela, demasiado bela, de seios rijos, dois maboques a escorrerem pequeninas gotículas de água prateada. Só com o busto fora de água, a sublime aparição de mulher começou a banhar-se e novamente a água não crepitava, icava só assim quieta sem bulir, sem mexer mesmo nada-nada. Era como se tudo fosse parte de um único elemento: água. Imóvel, o Barqueiro admirava fascinado e uma rede de pensamente­s invadiu a sua cabeça: como apareceu assim do quase nada? É mulher ou kianda? E a água não vibrava, não cantava mema-mema-mema… Mas que feitiço é esse, Nzambi, meu pai!

Um desejo ardente percorreu o corpo do Barqueiro, aquele desejo quente e húmido quando um homem deseja uma mulher. Quem era aquela beldade de pele negra que re letia o dourado-âmbar do por-do-sol em pequenas bolinhas de prata? Sobre a pele escorriam-lhe pequeninos olhos de luz prateada, pérolas e missangas de um brilho místico. Os seios eram frutas a pedirem para serem tocados e mordidos num rasgo de suculento néctar.

Enfeitiçad­o pela visão e acocorado no canavial o Barqueiro acabou por revelar a sua presença, fazendo bulir a água num chapinhar que atraiu a atenção da mulher que se dirigiu na direção do Barqueiro saudando: “Moro keni! Eu sou a Kianda do rio. O Barqueiro titubeou uma quase inaudível resposta e, apoplético, viu a Kianda aproximar- se ainda mais, emergir completame­nte das águas e à medida que saía do meu corpo-rio, a parte de peixe ia se transforma­ndo em perfeito corpo de mulher, um tufo de pelos púbicos, cobertos de pequenos e luminiscen­tes pontinhos de água, sorria entre coxas grossas e duras a prometer uma mbunda farta de mulher. O Barqueiro levantou-se revelando a erecção que lhe in lamava a natureza. A Kianda sorriu, estendeu-lhe a mão direita e num suave deslize afagoulhe as mãos. Depois, estalou o polegar contra o dedo médio e levando a mão ao peito disse ao Barqueiro: “Amarás a Kianda no segredo do rio, prometes?!” O Barqueiro prometeu e amou a Kianda no segredo do crepúsculo de todas as tardes.

Mas a natureza do homem não perdoa. Tarde ou cedo a vaidade de macho não resiste em guardar um segredo destes. É necessário ao seu orgulho macho vangloriar-se das sua façanhas sexuais. Entre conversas com outros barqueiros, o Barqueiro revelou as tardes de amor com a Kianda fazendo os outros homens morrer de uma súbita inveja que se tranformou em desconfian­ça, desacredit­ação e, em pouco tempo, virou gozo e riso entre os barqueiros do rio. Eu ouvi com estes ouvidos líquidos de água. O Barqueiro ferido no seu orgulho disse: “Vocês, homens invejosos, venham esta tarde nos canaviais do rio, eu estarei lá amando a Kianda. Eu, e mais ninguém.”

Os barqueiros do rio foram. Escondidos nos canaviais, viram a Kianda aparecer, acariciar o Barqueiro e depois rolarem na margem molhada das minhas águas. Porém a Kianda já sabia de tudo, as kiandas sabem sem- pre de todas as coisas. O plano de vingança e punição já estava traçado. A Kianda do rio nunca mais voultou a encontrar- se com o Barqueiro, mas isso não foi a punição para o homem. O castigo veio quando, o Barqueiro, querendo satisfazer a sua necessidad­e de macho, verificou aterrado, que a natureza que lhe pendia entre as coxas, não passava, agora, de uma natu- reza morta. A impotência do Barqueiro voou de kimbo em kimbo por entre os lábios e as risadinhas maldosas das mulheres.

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