CARLOS LAMARTINE MAIS DE MEIO SÉCULO DE SEMBA
No ano que, em Portugal, icou marcado por duas estreias fundamentais (Os Gatos Não Têm Vertigens e Os Maias - Cenas da Vida Romântica), também nos restantes países do mundo lusófono assistimos a propostas de peso e de relevo, com profusão de documentários valiosíssimos e alguma icção de (muita) qualidade. A sempiterna questão daescassez de inanciamentos parece ser compensada por verdadeiro talento e uma resiliência a toda a prova. A arte é uma forma de resistência e de renascimento. O cinema traz-nos vida, cria vida e verosimilhança: quando tudo parece já ter sido inventado, surge um novo olhar que baralha os consensos cinzentos e rede ine conceitos.
Quanto ao cinema de autor e ao cinema independente, que circula predominantemente em festivais, enfrenta inúmeras barreiras até tornar-se viável comercialmente e gerar um mínimo de receitas. Nollywood, a grande fábrica de ilmes em vídeo da Nigéria, é um exemplo de visão e sucesso comercial nesta área e capta, desde há algum tempo, as atenções do Ocidente, e de festivais de referência como Cannes. Será esta a via? Talvez seja possível conciliar entretenimento de qualidade e cinema comercialmente viável.
Sembène Ousmane, o incontornável realizador senegalês, dizia : «Os políticos fazem cinema, nós fazemos ilmes». Vamos tentar perceber de que matéria são feitos os ilmes nos espaços geo-culturais em que vivemos, à luz das minhas escolhas, como sempre refutáveis, relativas aos ilmes mais recentes.
Queremos um cinema plural e com vitalidade, que construa um bocadinho de futuro todos os dias. Nós, espectadores atentos, ansiamos por essa oportunidade de deslumbramento.
ACALANTO – Drama de Arturo Sabóia, 4 premiações no 4º Festival Curtas COREMAS (país: Brasil). Uma comovente interpretação cinematográ ica do conto «A Carta» de Mia Couto. Um ilho que parte de casa escreve uma única carta à sua mãe, uma velha senhora analfabeta; esta ampara-se na simpatia de um notário, que lhe lê vezes sem conta essa missiva de há anos atrás, acrescentando pormenores, recriando-a e fazendo reviver o ilho desaparecido. Dessa relação construída nasce uma cumplicidade tocante, tão fundamental para um como para outro. Um diálogo feito de fantasia, ternura e silêncios. As performances dos veteranos Léa García e Luiz Carlos Vasconcelos acrescentam doçura e sobriedade a este drama tenso e intenso.
CAVALO DINHEIRO – Drama de Pedro Costa, Prémio Leopardo de Melhor Realizador, Festival de Lucarno (país: Portugal). Muita tinta tem corrido sobre esta obra que reúne consenso em torno da sua originalidade e qualidade. O emigrante caboverdiano Ventura, debilitado e envelhecido, conduz-nos a uma viagem aos infernos através dos seus delírios, registada pela câmara de Pedro Costa. O ilme atravessa várias épocas, sugere um olhar introspectivo mas não exclui outras leituras, como icou provado pela aceitação internacional do ilme. É um ilme belo, esplendoroso, que narra e simultaneamente liberta a imaginação. A medida do tempo é única e este escorre pelo personagem como se não pudesse ser compartimentado. O futuro mostrará que ciclo se termina, inicia ou se anuncia com Cavalo Dinheiro.
O GRANDE KILAPY- Comédia dramática de Zézé Gamboa, premiada no Festival Caminhos do Cinema Português (países implicados: Angola/ Portugal/ Brasil). A crónica de um bom malandro luandense, Joãozinho das Garotas, que driblou com o Estado Novo na década de 70 e viveu principescamente entre belas mulheres, automóveis de luxo e um curso que ia fazendo sem pressa, no Técnico, em Lisboa. Uma igura solidária como poucas, capaz de arriscar a própria vida, subsidiariamente engajado, não em nome de convicções mas apenas por amizade. Joãozinho ou Gold inger terá sido também um burlão e amante descomplexado dos prazeres da vida sem questionamentos maiores, oscilando entre a frivolidade e um estilo inconfundível, unanimemente reconhecido. Zézé assina aqui a sua segunda longa, após O Herói, de 2004, um ilme igualmente bem aceite pela crítica e pelo público.
OS GATOS NÃO TÊM VERTIGENS – Drama de António Pedro Vasconcelos (país: Portugal). A minha tentação é dizer apenas: Maria do Céu Guerra. Para mim basta, incondicionalmente. Mas o grilo falante não nos dá tranquilidade e obriga-nos a ir um pouco mais longe; seria injusto não mencionar a magní ica prestação do resto do elenco e a vigorosa ousadia do argumento: uma viúva idosa que se envolve afectivamente com um rapaz, não é de todo cliché (pareceu-me ouvir esta crítica nalgum lado); tal situação, inabitual, é ainda alvo de um marcado e previsível preconceito, mesmo entre as camadas sociais ditas «esclarecidas», seja lá o que isso for em termos globais. Alvo de maledicência e chacota quase garantidas. Mas o mérito do ilme não se resume a essa ligação amorosa, chamando também a atenção de forma contundente para o isolamento dos idosos e a delinquência juvenil, numa sociedade em que as pessoas se atravessam sem se verem.
OS MAIAS – CENAS DA VIDA ROMÂNTICA – Drama de João Botelho (país: Portugal). O cinema português ofereceu-nos este ano mais do que um motivo de orgulho, contando, neste ilme, com um elenco prodigioso: Graciano Dias, Maria Flor, João Perry, Catarina Wallenstein e Rita Blanco, entre outros. Esta nova adaptação de Os Maias, romance fundamental de Eça de Queirós, consegue surpreender e propor um olhar fresco sobre a obra, apostando em cenários operáticos (à semelhança de outra obra literária adaptada com sucesso para o cinema em 2012, Anna Karenina, com a acção a desenrolar-se também no século XIX). O clássico romance transposto para o grande ecrã conta-nos o percurso trágico de Carlos da Maia, médico, que regressa a Lisboa no inal do século XIX, para alegria do seu avô Afonso da Maia. Sempre rodeado de amigos e levando uma vida ociosa, Carlos acaba por apaixonar-se por uma misteriosa e esplêndida mulher construindo os alicerces do drama que o há-de consumir através de uma paixão arrebatadora e incestuosa.
Diante dos nossos olhos desenha-se uma Lisboa que reencontramos na actualidade, sugerindo destinos e fatalidades de um país que, impregnado de tiques e incongruências, se descobre imerso em si mesmo.
IMPUNIDADES CRIMINOSAS – Drama de Sol de Carvalho, segundo uma história original de Maria José Artur, premiado no FEStin 2014 (países implicados: Moçambique/ Portugal). Sara é uma reclusa, condenada pelo assassinato do marido, ao cabo de um longo historial de violência doméstica. Chiquinho Paixão, chefe de gangue local, reclama à viúva uma dívida contraída pelo seu marido e pretende forçá-la a casar-se consigo. Ela decide então evadirse e refugiar-se na sua aldeia natal, tentando escapar a essa e outras perseguições. Neste thriller produzido com fundos próprios, Sara simboliza provavelmente as diversas formas de violência contra as mulheres numa atmosfera permanentemente tensa, e também uma certa ideia de redenção, ilustrada por uma resistência activa. Nunca é demais conferir visibilidade a esta temática (violência de género num contexto de violência social), e o cinema é um meio e icaz para o fazer. Neste caso com uma sobriedade e delicadeza dignos de nota, pois, como a irma o cineasta: «é no interior das pessoas, mais do que no corpo, que a violência se manifesta, magoa e perdura e é pelo interior que a libertação é possível».
IRMÃ DULCE – Drama biográ ico de Vicente Amorim (país: Brasil). A Irmã Dulce, conhecida por «Anjo Bom da Bahia», chegou