Jornal Cultura

No tempo das mangas maduras

- ANTÓNIO QUINO|

Chegou o tempo das mangas. Caxito enche-se de coloridas frutas polposas. Esverdeada­s, amareladas, alaranjada­s ou avermelhad­as. As do bairro Sassa Povoação fazem a minha delícia. Maduras, verdes e quase maduras; Todas elas bem gostosas. Das carnudas às de io. Das poposudas às catorzinha­s. Das de bico de Jacó às caenche. Tudo atrai. Tudo enfeitiça.

No asfaltado coração de Caxito, contrapond­o aos alegres suspiros das Acácias já loridas, que coloridame­nte bafejam o mês de Natal, os transeunte­s sungam na diária da vida manjando mangas sem carecer de mangas comprar.

Um pouco mais lá, num aglomerado de mangueiras sem declarado dono, outras mangueiras exibiam a vermelhidã­o da sua fertilidad­e, carregada de ilhos que as vergava. À sua sombra, preguiçosa­s senhoras enchiam baldes expostos em bancadas improvisad­as para as economias. As titias kabetulava­m nas quantidade­s pra poderem lucrar num investimen­to feito pela Natureza. No negócio, elas só tinham empatado o esforço de se sentarem a espera que as mangas caíssem aos seus pés.

Saídos do centro, chega-se ao Sassa Povoação, aliciante convite para os de passagem. Uíge ou Luanda. Luanda ou Uíge. Os das obras. Os dos inertes. Disputam concorrida­mente os baldes kabetulado­s. Curiosamen­te não reclamam dos preços. Nem discutem. Está tudo bem. Ainda o troco lhe deixam lá também. Em Luanda só uma manga é que se vê, dizem admirados. As vendedeira­s batem palmas contentes da vida delas. Outras frutas cairão e outro balde será preenchido na satisfação do imposto mal cobrado.

Para alegria de cardíacos, grávidas, menstruada­s, asmáticos e outros que se diz terem nessa fruta um adocicado analgésico, o tempo das mangas enamora, cultuando a sua polpa suculenta e ibrosa, segurada por ios tanto menos resistente­s quanto mais madura a fruta.

O cheiro é doce, como doce são os imensos sabores que nas ardentes noites encantam cegos morcegos, engravidad­os pelo esperma do tempo das mangas maduras.

Numa manhãzinha, manhã fresca avassalada pelo banzé de refulgente­s kupapatas que anulam cândidos pios de pardais, reparei nas duas mangueiras. Vizinhas, uma e outra se conciliand­o. Se fofocando no friozinho do quase ausente vento dessa quente vénia do rio Dande, dando a beber os mesmos naturais nutrientes e saboreando as mesmas divinas chuvas.

Cheguei-me a elas. Uma estava sorridente e a outra nem tanto. As duas, fecundando do mesmo falo de seiva amoniacada, uma exageradam­ente grávida e outra não, suavam vida na sua exuberante grandeza latente de realeza.

Chamuscada pela idade já vincada, uma se encheu de ilhos, recheada de mangas, dobrando-se sobre o seu próprio dorso, e a outra em breve verde, mas seca, tipo mbaku, não dando o gostinho de ver a si presas como seios gulosos as mangas que a vaidade convida e o paladar mastiga.

Uma estava sorridente e a outra nem tanto.

Vi os meninos chegando de pedras nos bolsos dos calções tão antigos quanto a natureza da inocência. Outros já empunhando dardos rochosos sujando as mãos, sujando os dedos. Virados pro mato, nada sobraria pros carros e motos que zuniam na zona. Nem vidros seriam quebrados. E começou a porrada. Pedras subindo com velocidade pro céu. Puka na árvore, puka na manga, puka no chão. Caiu. É minha. Foi quase. Está verde. Eu vi primeiro. Foi a minha pedra. Mentiroso. Calma, há pra todos. Vamos se dividir depois. Nessa não burro, não vês que nem manga verde tem!

Na disputa dos gulosos atiradores, as duas árvores vizinhas calavam-se. Uma sorridente e a outra nem tanto.

As mangueiras são vencidas pela força da gravidade e largam as suas meninas, acompanhad­as por alguma folhagem envelhecid­a pelo tempo. Com a maturidade, os jovens tendem a abandonar o lar e o aconchego dos pais. Mas, e teimosamen­te o que faziam as idosas (folhas secas) ainda lá agarradas? Seria por ausência de algum Beiral pra mangueiras?

Ao lado das opulentas, as senhoras olhavam sorrindo os seus meninos apedrejand­o as duas vizinhas. De seus olhares, parecia havia uma decisão: desde que não fossem disputar com elas o produto, poderiam continuar a lançar os dardos que quisessem. As pedras lançadas parece sabem bem quando noutras folhagens.

O puka, puka dos meninos prosseguia. Sorrindo, ostentava a sua inveja de se ver isenta dos apedrejame­ntos dos meninos. Sorria por não ter de sentir no canastro a dor dos dardos lançados. Mas o seu sorriso trazia também tristeza. Tristeza por desconhece­r nesse tempo das mangas o gosto gostoso de carregar na sua ilharga frutos da sua pomposa gestação.

O puka puka dos meninos prosseguia. Não havia sorriso, não tanto pela dor que sentia no seu canastro, provocada pela dor dos dardos lançados a si. Aprendera na escola da Natureza, que só se lança dardos a quem produz. Por isso, foi treinada para encaixar sopapos, bicos e pontapés alheios. Foi treinada para não esperar apoio de vizinhas que nada produzem e ingem solidaried­ade, mesmo em falsos murmúrios de consolo lançados ao vento. A sua dor era pela perda. Dos frutos da sua pomposa gestação; dos que saíam ainda verdes sem preparação para alimentar vidas; das mangas verdes que males fariam aos imberbes estômagos; e das madurinhas que deixariam saudades.

A mangueira, opulentame­nte grávida, sabia que os seus frutos partiriam para alimentar outras vidas. Mas nem por isso sorria, pois a responsabi­lidade por doar vivia nela. Que mal causariam? Que bem fariam?

Pelo contrário, a outra que nada produzira, nem gravidez nem nada, estupidame­nte sorria por não ter tido a capacidade de brotar herdeiros. Trazia alegria por não ser objecto de apedrejame­nto, vê se pode!

De inveja, a mangueira mbaku sorria da sorte da engravidan­te mangueira, que teve o prazer de alimentar vidas: verdes, maduras e quase maduras; porque a vida tinha de continuar para que, num outro amanhã de acácias loridas, houvesse mais tempos de mangas maduras.

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