Jornal Cultura

: o menino que foi brincar num palácio de formigas

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA|

Um colibri, um desses beija- lor que eu mais adoro e entendo, as penas pretas de veludo e do tamanho da falange de um dedo mindinho , veio ter comigo estes dias e me disse, O teu irmão de letras, o Manoel de Barros, com quem falavas pelos versos, desde o dia 13 de Novembro que foi cumprir o seu maior sonho de brincar num palácio de formigas.

A notícia não me surpreende­u. O meu irmão de poesia, o Manoel de Barros, sempre gostou de brincar, como todos os poetas. Sentava-se sobre o capim da sua casa lá no mato e falava com as coisas mais chãs deste mundo: as formigas, as lesmas, os lagartos, as cobras, os pregos e os restos de ferrugem, as folhas das árvores e os pássaros e os loucos. Por isso, a sua poesia é a voz de um anjo que não conhecia o céu, só conhecia o barro, porque o barro é o espelho do céu, para quem, como o Manoel, tinha os olhos beijados pelo fogo eterno da infância.

Eu sempre soube que o Manoel de Barros é um poeta muito radical, na sua condição de entortar as palavras até elas caberem no canto de um colibri, ou num buraco de toupeira. Por isso, não me surpreende­u a notícia desse colibri preto e reluzente como a chaparia de um monolugar. Há dias pra estar em cima da terra e dias pra descer ao submundo das coisas. Como disse há milénios o profeta Hermes Trimegisto, O que está em cima é o que está em baixo.

Do que foi falando às coisas aparenteme­nte insensívei­s com as quais icava horas a io a conversar, transcreve­mo-vos aqui estes pedaços de iluminação poética.

___________________________ incêndio. Quando o rio está começando um peixe, Ele me coisa Ele me rã Ele me árvore . De tarde um velho tocará sua lauta para inverter os ocasos. II Conheço de palma os dementes de rio. Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama e de Rogaciano. Todos catavam pregos na beira do rio para en iar no horizonte. Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas de Corumbá. Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas. VI Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. -Gostar de fazer defeitos na frase e muito saudável, o Padre me disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas. . . E se riu. Você não é de bugre? – ele continuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por desvios , não anda em estradas - Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática. XI Bernardo é quase árvore. Silêncio dele é tão alto que os passarinho­s ouvem de longe E vêm pousar em seu ombro. Seu olho renova as tardes. Guarda num velho baú seus instrument­os de trabalho 1 abridor de amanhecer 1 prego que farfalha 1 encolhedor de rios – e 1 esticador de horizontes. (Bernardo consegue esticar o horizonte usando 3 ios de teias de aranha. A coisa ica bem esticada.) Bernardo desregula a natureza: Seu olho aumenta o poente. (Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletu­de?). XII Estou atravessan­do um período de árvore. O chão tem gula de meu olho por motivo que meu olho tem escó- rias de árvore. O chão deseja meu olho vazado pra fazer parte do cisco que se acumula debaixo das árvores. O chão tem gula de meu olho por motivo que meu olho possui um coisário de nadeiras. O chão tem gula de meu olho pelo mesmo motivo que ele tem gula por pregos por latas por folhas. A gula do chão vai comer o meu olho. No meu morrer tem uma dor de árvore. XIII De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o mato e a fome tomavam conta das casas, dos seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados. Ali me anonimei de árvore. Me arrastei por beiradas de muros cariados desde Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o poeta Cesar Vallejo), Orellana e Mocomonco – no Peru. Achava que a partir de ser inseto o homem poderia entender melhor a meta ísica. Eu precisava de icar pregado nas coisas vegetalmen­te e achar o que não procurava. Naqueles relentos de pedra e lagartos, gostava de conversar com idiotas de estrada e maluquinho­s de mosca. Caminhei sobre grotas e lajes de urubus. Vi outonos mantidos por cigarras. Vi lamas fascinando borboletas. E aquelas permanênci­as nos relentos faziam-me alcançar os deslimites do Ser. Meu verbo adquiriu espessura de gosma. Fui adotado em lodo . Já se viam vestígios de mim nos lagartos. Todas as minhas palavras já estavam consagrada­s de pedras. Dobravam-se lírios para os meus tropos. Penso que essa viagem me socorreu a pássaros. Não era mais a denúncia das palavras que me importava mas a parte selvagem delas, os seus refolhos, as suas entraduras. Foi então que comecei a lecionar andorinhas.

Manoel de Barros

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Manoel de Barros, FOTO Armanda, GOMBAOlive­ira

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