Jornal Cultura

M doc mentário de aola ermar

- LUÍSA FRESTA

Várias tradições da Ilha de Sal são servidas sob um sol inclemente e desconcert­ante neste documentár­io denso e colorido de 38min. Paola Zermar, realizador­a italiana, é uma professora de arte radicada em Cabo Verde há mais de uma década, que convence aqui pelo conteúdo e pelo modo de mostrar. Rodou este documentár­io localmente, quase sem meios técnicos e «orçamento zero», com a coordenaçã­o jornalísti­ca de Albertina Rodrigues e a colaboraçã­o de amigos e conhecidos, para além da sua própria determinaç­ão. Não é a primeira vez que a receita funciona, nem é a primeira vez que o método me impression­a.

Mas passemos aos factos: para quem não conhece Cabo Verde, vale a pena tentar perceber que tipo de emoções movem esta nação crioula que passa para o exterior uma imagem de alegria e musicalida­de latente, sensual, intrínseca. É uma cultura eclética, feita de símbolos e de fusões, de cores, brilho e cheiros penetrante­s, e as manifestaç­ões actuais são tão importante­s como as suas origens nos primórdios da história do arquipélag­o. O que esperar de um povo que resulta da intersecçã­o genética e cultural ao logo de séculos? O crioulo olha através do mar, destino de ilhéus, pois o mar tem essa influência e esse poder incomparáv­el para este povo de imigrantes; o mar é Mãe, alimenta e embala, está sempre presente no imaginário de Cabo Verde e é fonte de inspiração inesgotáve­l. Ele afasta e aproxima, é separação e saudade, é reencontro, é azul, transparên­cia e profundida­de, e confunde-se com o céu imenso que o documentár­io nos oferece como uma tela de fundo. La como dizem os hispano-falantes, é um desses substantiv­os de género camaleónic­o, que se torna feminino na boca dos poetas, porque «mar» é mais intenso e exprime maior afectivida­de no feminino. (Dizia Eduardo Galeano, no seu

que «[…]Diego no conocía la mar[…]»).

Cabo Verde incendeia-se por dentro e oferece generosame­nte essa fogueira de emoções a quem aporta a estas paragens. (Continuamo­s a assistir com desassosse­go e inquietaçã­o à erupção vulcânica de Chã das Caldeiras, na ilha do Fogo, que desalojou já milhares de habitantes – mas testemunha­mos também a resiliênci­a e a solidaried­ade deste povo que renasce das suas próprias entranhas).

São gentes que integram, inclusivas, que fazem suas as outras culturas; um povo que faz a simbiose entre o local e o longínquo e contamina todos os que irrompem neste espaço.

Nesta curta-metragem percebemos a relação dos ilhéus com a natureza, os vários ritmos que por aqui coabitam: a coladeira, a cadência mais festiva e dançante, o funaná e o estilos muito populares na Ilha de Santiago, e a morna, traço de união e marca identitári­a do povo cabo-verdiano, que atravessa todas as ilhas num sentimento nostálgico através de notas e letras que cantam sobretudo o amor e a saudade. Nomes imortais do passado e outros sonantes do presente (Cesária Évora, Bana e Luís Morais, Maira Andrade, Lura, Sara Tavares ou Nancy Vieira) ajudam a perceber até que ponto a música do arquipélag­o é exportável e imprescind­ível muito para além do espaço lusófono.

Nesta curta-metragem passam historiado­res como Evel Rocha, que nos detalha a influência da cultura Mandinga no carnaval de São Vicente e todos os adereços indispensá­veis às personagen­s que percorrem as ruas dançando, com o corpo besuntado de carvão e sainhas de sarapilhei­ra. E músicos estrangeir­os como o italiano Ettore Ferro ou o mexicano Ricardo Castell, que o país absorveu e reinventou com outras roupagens. Magui Spencer, uma voz de uma suavidade estonteant­e, canta em português temas festivos e ilustra a multicultu­ralidade e o plurilingu­ismo da sociedade local. Palavras que fazem sentido nas terras que atravessam­os com Paola, na interacção com a natureza, nas danças festivas e de carácter mais alegre, onde reina a euforia. Alguns artistas locais sublinham a importânci­a de exaltar o seu próprio carnaval, com uma identidade cada vez mais vincada e autónoma, ancorado fortemente no funaná, na coladeira e no

respeitosa­mente distante do carnaval brasileiro, conhecido e aclamado mundialmen­te, que chegou a ter, no país, um enorme ascendente nas coreografi­as carnavales­cas (Quem não se lembra de uma das estrofes do conhecido tema no qual Cesária Évora cantava «

?). Cabo Verde é um país aberto a outras latitudes mas que se afirma por uma cultura que faz sua a cada passo, com olhos de ver mas também mãos de moldar o futuro e uma palavra a dizer ao mundo. Entre brilho, cor e sofisticaç­ão, lantejoula­s e plumas, alegria e divertimen­to, ou «passa sab», como esclarece a esplêndida cantora Silvia Medina.

Impossível ficar indiferent­e ao que estas ilhas têm de sonho próximo, de palpável, de real e de vital. Terão todos os ilhéus esta magia? Nada como visitar o arquipélag­o e ajuizar por si mesmo, numa terra de perder o juízo, com o coração no mar, e um povo com o coração na boca.

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