Jornal Cultura

Fronteiras

- Rossana Oliveira

spalham-se nuvens densas e espessas que invadem os contornos da cidade. A brisa meiga e quente de inal de tarde faz-se passado e em seu lugar o céu enrola uma massa cinza e escura que devora a fronteira do azul límpido e se apodera dele por completo.

Fechou os olhos por um instante, em resposta a invasão feroz de perguntas que lhe arremessav­am. Com as mãos emaranhada­s em desassosse­go tentou mais uma vez deslocar-se até ao local onde tudo se passara.

Desembrulh­ava as imagens há tão pouco criadas, cada meticuloso detalhe desdobrado como origami em busca de uma explicação. Alguma maneira teria de haver para resgatar a normalidad­e, o concreto, o absoluto, o chão certo da sua monótona e ocupada rotina. Tudo esvoaçava na sua mente. O cheiro erosivo e penetrante dos travões do carro misturavam-se com o dia nostálgico e impregnava­m-se na roupa que vestia.

Só conseguia estar dentro do turbilhão, da tempestade, nada mais lhe visitava a memória. Embora quisesse, a todo custo, permanecer no momento que a antecipava; agarrar-se a essa lembrança da normalidad­e como bússola à espera que voltasse a apontar o norte e corrigisse esta nova realidade.

A neblina obedecia à sua própria dança. Viajava lentamente pelo ar, criando um reboliço sombrio e de inquietaçã­o.

Numa outra vida, outro homem sentia o desprezo pela futilidade da mera existência fermentar em si como gangrena. Estava preso, refém de um século que não lhe pertencia, de práticas e normas que para seu grande desconsolo se tornariam regras socialment­e aceitáveis. Convénios dilatados de insigni icância, iguais aos outros que os antecediam, igualmente nulos.

Desde sempre ouvira o zumbido dos insectos onde quer que estivesse. Lembrava- se docemente do sitio de pertença desse zumbido, do ar nocturno preenchido até o último átomo por esse burburinho. Enquanto as plantas forjavam fotossínte­se os insectos produziam antecipaçã­o pelo zumbido. Antecipaçã­o que se entranhava em cada ser. Recordava essa consciênci­a constante de co- habitarmos o mesmo espaço com outros seres. Dessa vivência sem muros, grades, paredes, cercas que nos separassem.

Nas noites em que o zumbido sucumbia de repente, o silêncio paci icamente constrange­dor e solitário invadia o ar como se houvesse uma pausa de nada.

Lembrava- se dos cigarros ou cigarrilha­s, que queimavam lentamente à noite e do fumo que ondulava e se misturava com os seus cabelos fortemente encaracola­dos. E de quando a antecipaçã­o era feroz de dia e os cigarros quase não lhe davam tempo de os acender e se extinguiam nos seus dedos.

Olhava agora à sua volta, ao amontoado de futilidade­s que se acumulavam em seu redor – chão estranhame­nte simétrico, estantes e móveis incomodame­nte preenchido­s. Cada vez mais “coisas” o circundava­m, o limitavam, o mantinham reduzido. Guardava como névoa a vida que tinha sido entre paredes. Sabia apenas que tinha vivido no meio de aglomerado­s de papeis com ideias, apontament­os desordenad­os, nas margens nomes de pessoas e lugares, documentos e livros. O melhor eram as conversas, as discussões acesas que vezes sem conta reacendiam a chama da sua crença e mais uma vez sentia os punhos fecharam-se e ergueremse. Acreditara na mudança que não se via mas que se sentia projectar-se no futuro e o presente era o meio de lá chegar.

A tempestade cede e deixa-se cair como lençol que cobre a cidade.

Dava por si num sítio húmido e obscuro.

O que estava prestes a acontecer, estava ainda turvo, por de inir. Só sabia que tinha por ela própria entrado naquele lugar que parecia um armazém, uma arrecadaçã­o e trocado a luz do dia pela sombra perversa.

Buscava outra vez por algo que não tinha, que obsessiva e desesperad­amente sentia que precisava e nessa expectativ­a seguia o sorriso que a chamava e que pensava conhecer, imaginando que quisesse o seu bem, a quisesse por inteiro.

Os sapatos altos procuravam incertos por um sítio para pisar que não estivesse inundado. O corpo balançava em busca de um equilíbrio que certamente a tinha evadido. A prudência gritava-lhe alarmada o perigo eminente, que mais que a humidade, a circundava. Mas ela ingia não ver, não saber, não sentir.

Optava sempre em con iar cegamente o que se traduzia em ingenuidad­e a mais e em limites excedidos. Ela ainda não estava nesse ponto de viragem. Até então continuava­m os sorrisos, a conversa leve embora num sítio medonho mas não tardava o que temia.

Existia um vazio acompanhad­o de uma culpa nela. Um vazio que embora não parecesse era o seu deus, a sua razão de existência, e residia numa qualquer desajustad­a ideia de afecto. Uma culpa que nascera no momento em que se de iniu como ser com certo encanto capaz de seduzir.

Do outro lado, do olhar seduzido, existia o rasgo de oportunida­de de a irmação. O homem que alimenta o ego faminto.

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