Fronteiras
spalham-se nuvens densas e espessas que invadem os contornos da cidade. A brisa meiga e quente de inal de tarde faz-se passado e em seu lugar o céu enrola uma massa cinza e escura que devora a fronteira do azul límpido e se apodera dele por completo.
Fechou os olhos por um instante, em resposta a invasão feroz de perguntas que lhe arremessavam. Com as mãos emaranhadas em desassossego tentou mais uma vez deslocar-se até ao local onde tudo se passara.
Desembrulhava as imagens há tão pouco criadas, cada meticuloso detalhe desdobrado como origami em busca de uma explicação. Alguma maneira teria de haver para resgatar a normalidade, o concreto, o absoluto, o chão certo da sua monótona e ocupada rotina. Tudo esvoaçava na sua mente. O cheiro erosivo e penetrante dos travões do carro misturavam-se com o dia nostálgico e impregnavam-se na roupa que vestia.
Só conseguia estar dentro do turbilhão, da tempestade, nada mais lhe visitava a memória. Embora quisesse, a todo custo, permanecer no momento que a antecipava; agarrar-se a essa lembrança da normalidade como bússola à espera que voltasse a apontar o norte e corrigisse esta nova realidade.
A neblina obedecia à sua própria dança. Viajava lentamente pelo ar, criando um reboliço sombrio e de inquietação.
Numa outra vida, outro homem sentia o desprezo pela futilidade da mera existência fermentar em si como gangrena. Estava preso, refém de um século que não lhe pertencia, de práticas e normas que para seu grande desconsolo se tornariam regras socialmente aceitáveis. Convénios dilatados de insigni icância, iguais aos outros que os antecediam, igualmente nulos.
Desde sempre ouvira o zumbido dos insectos onde quer que estivesse. Lembrava- se docemente do sitio de pertença desse zumbido, do ar nocturno preenchido até o último átomo por esse burburinho. Enquanto as plantas forjavam fotossíntese os insectos produziam antecipação pelo zumbido. Antecipação que se entranhava em cada ser. Recordava essa consciência constante de co- habitarmos o mesmo espaço com outros seres. Dessa vivência sem muros, grades, paredes, cercas que nos separassem.
Nas noites em que o zumbido sucumbia de repente, o silêncio paci icamente constrangedor e solitário invadia o ar como se houvesse uma pausa de nada.
Lembrava- se dos cigarros ou cigarrilhas, que queimavam lentamente à noite e do fumo que ondulava e se misturava com os seus cabelos fortemente encaracolados. E de quando a antecipação era feroz de dia e os cigarros quase não lhe davam tempo de os acender e se extinguiam nos seus dedos.
Olhava agora à sua volta, ao amontoado de futilidades que se acumulavam em seu redor – chão estranhamente simétrico, estantes e móveis incomodamente preenchidos. Cada vez mais “coisas” o circundavam, o limitavam, o mantinham reduzido. Guardava como névoa a vida que tinha sido entre paredes. Sabia apenas que tinha vivido no meio de aglomerados de papeis com ideias, apontamentos desordenados, nas margens nomes de pessoas e lugares, documentos e livros. O melhor eram as conversas, as discussões acesas que vezes sem conta reacendiam a chama da sua crença e mais uma vez sentia os punhos fecharam-se e ergueremse. Acreditara na mudança que não se via mas que se sentia projectar-se no futuro e o presente era o meio de lá chegar.
A tempestade cede e deixa-se cair como lençol que cobre a cidade.
Dava por si num sítio húmido e obscuro.
O que estava prestes a acontecer, estava ainda turvo, por de inir. Só sabia que tinha por ela própria entrado naquele lugar que parecia um armazém, uma arrecadação e trocado a luz do dia pela sombra perversa.
Buscava outra vez por algo que não tinha, que obsessiva e desesperadamente sentia que precisava e nessa expectativa seguia o sorriso que a chamava e que pensava conhecer, imaginando que quisesse o seu bem, a quisesse por inteiro.
Os sapatos altos procuravam incertos por um sítio para pisar que não estivesse inundado. O corpo balançava em busca de um equilíbrio que certamente a tinha evadido. A prudência gritava-lhe alarmada o perigo eminente, que mais que a humidade, a circundava. Mas ela ingia não ver, não saber, não sentir.
Optava sempre em con iar cegamente o que se traduzia em ingenuidade a mais e em limites excedidos. Ela ainda não estava nesse ponto de viragem. Até então continuavam os sorrisos, a conversa leve embora num sítio medonho mas não tardava o que temia.
Existia um vazio acompanhado de uma culpa nela. Um vazio que embora não parecesse era o seu deus, a sua razão de existência, e residia numa qualquer desajustada ideia de afecto. Uma culpa que nascera no momento em que se de iniu como ser com certo encanto capaz de seduzir.
Do outro lado, do olhar seduzido, existia o rasgo de oportunidade de a irmação. O homem que alimenta o ego faminto.