DE VOLTA A ANGOLA NAS PA AVRAS UE E A ME ENSINOU A ESCREVER
Otempo passou. Dois anos e pouco de comissão forçadamente cumprida. Erachegada a hora de regressar à metrópole. E na manhãzinha de 14 de Janeiro de 1968, o Vera Cruz, que dois anos antes me tinha levado até Angola, levantou ferro, feito favela lutuante, deixando o porto de Luanda, serenamente, como que para me deixar matar as saudades que já sentia da Gente e da Terra que me tiveram, e da sua capital que, sob amena neblina, estava mais bonita do que nunca. Mas que poderia eu fazer, senão aceitar a realidade que eu próprio não me atrevera a alterar?!
No convvés, onde já quase ninguém permanecia – sinal de que quase todo o contingente a bordo, de cerca de 2500 almas, estava ansioso por virar de initivamente as costas à vida a que se sujeitara durante tanto tempo – me deixei icar, envolto numa inesperada nostalgia, e comecei a pensar.
A pensar no que me fora dado apreender durante o tempo em que Angola me tivera, no que eu mesmo sofrera e no que sofreram outros, no que vira e ouvira e no que aprendera com tudo o que à minha volta acontecera.
E lembrei- me das Gentes negras recrutadas nas regiões de onde eram nativas para trabalharem fora delas, inclusive nas zonas de guerrilha, sujeitando- se a ser por ela consideradas inimigas.
E lembrei-me dessas Gentes que se sentiam desintegradas, onde o único meio de comunicação com as tropas e fazendeiros eraa língua portuguesa, mal falada, como convinha ao próprio regime e a quem as explorava, devolvendo-as às suas terras, no inal dos contratos, com uns sacos de fuba, uns trapos estampados para as mulheres e “dez reis de mel coado” para os homens.
E lembrei-me dos aproveitamentos obtidos pelas tropas do exército português, relativamente a elementos negros, ao convocá-los para fazerem de guias, tornando-os traidores em relação aos seus concidadãos guerrilheiros.
E lembrei-me das condições em que viviam as populações afastadas das cidades e vilas. Totalmente abandonadas à sua sorte, sem assistência na doença, sem escolas, sem comunicações, sem nada que se relacionasse com a civilização, apesar de Portugal, o país colonizador, se dizer uma nação civilizada. E lembrei-me dos operários negros, quali icados ou não, que auferiam salários muito inferiores aos dos seus colegas europeus que, a seu lado, não faziam mais do que eles.
E lembrei-me de ter visto gente branca a comerciar latas de produtos de conserva, vazias e recuperadas para o efeito, como se de faiança se tratasse, para Gente negra utilizar como loiça de cozinha.
E lembrei-me das contribuições em espécie que a Gente da sanzala de Malele – certamente como todas as que arrancavam da sua própria Terra, em qualquer im-do-mundo angolano, o magro sustento com que sobrevivias – era obrigada a pagar ao Estado.
E lembrei- me das lavras que alimentavam a Gente da guerrilha e que a tropa destruía, como forma de a obrigar a uma espécie de nomadismo forçado.
E lembrei- me das palavras do camionista durante uma longa e solitária viagem pela estrada do Caxito – Uíge, ao fazer- me sentir que seguia com mais segurança a seu lado do que integrado numa coluna militar, recordando também a posterior dica, captada em Luanda, relativamente a uma ou outra saca de sal ou de cereal deixadas cair dos camiões na lonjura das estradas do Norte.
E lembrei- me dos que tinham sido mortos, em Luanda, no Natal de 1966, pelas forças do regime. Centenas, segundo as informações que me chegaram, na altura, por correspondência epistolar.
E supus que se permanecesse nessa Terra poderia vir a ter muitos mais motivos de que me lembrar para sobre eles meditar. E supus ainda que se em Angola icasse poderia não resistir à tentação, à necessidade e ao dever de me manifestar contra tal estado de coisas, e acabar por sofrer as presumíveis consequências.
E senti receio, um receio que parecia justi icar a minha decisão de regressar a Portugal. E julguei-me, nesse momento, um cobarde por sentir esse receio e por me acomodar perante a consciência que ia tendo sobre o que me fora dado observar. Mas, que poderia eu fazer?!
Via Luanda já de longe quando decidi descer ao cubículo que me tinham reservado. Deitei-me e tentei adormecer, mas mergulhei numa espécie de angústia existencial de que haveriam de icar resquícios para sempre.
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Nunca mais esqueci os Povos de Angola, com os quais me identi ico. E três anos depois do meu regresso a Portugal, elaborei o poema que a seguir transcrevo.