ELOGIO DA CIVILIDADE CARTILHA DA ÉTICA
Cartilha da ética
Não posso deixar de agradecer a todos os que se interessam pela Ética. É quase um acto heróico, senão mesmo louco, da sua parte, nos tempos que correm. Este interesse pela Ética pode até ser considerado imoral, no nosso Moçambique de hoje. É, pelo menos, anormal.
É que... abra-se um jornal, ou uma revista de ocasião; ligue-se uma qualquer estação de rádio ou um canal de televisão; seja notícia, debate ou reunião: desleixo, roubalheira, corrupção. Para onde quer que nos viremos, daremos de caras, olhos e ouvidos, com toda a certeza, com uma multidão de vozes desfraldadas na mais desgarrada acusação:
Acusa o cidadão comum a polícia de estar corrompida pelas redes de imigração ilegal, e esta aponta, acto contínuo, a palavra ainda fumegante da acusação, contra os o iciais da migração, que culpam sem sequer pensarem, a companhia de aviação, a qual diz logo, sem hesitar, que a responsabilidade é da embaixada no país de onde vem o avião. Não lhes importa que sejam todos eles elos da mesma cadeia de acção.
Queixam-se os cidadãos alcunhados de carenciados, da roubalheira que constituem os excessos que ostentam os funcionários da miríade de organizações que os invadem em nome da ajuda às populações, funcionários que, por sua vez, se escudam apontando acusadoramente a garrafa de água mineral ainda fresca ao sistema local de governação, sem se importarem com o facto de se dizerem entre eles, parceiros de cooperação.
Lamenta o professor a demissão dos pais; denunciam os pais a incompetência do professor; e culpam a ambos, e mais aos alunos, e à pobreza, e ao colonialismo e à conjuntura internacional, e à globalização, os funcionários do sector da Educação.
É visível e audível em todos os órgãos de informação. Não é minha invenção. Cada um aponta a todos os que o rodeiam, quantos dedos tem em cada mão, disparando em rajada em todas as direcções, fazendo, assim, de si próprio o único cidadão imaculado, pobre vítima de toda esta decrépita situação! A culpa é sempre dos outros. Mesmo quando eles sejam parte de nós. Mesmo que eles sejam produto de nós.
É que, a pergunta que não quer calar é esta: serão todos aqueles a quem cada um de nós acusa a cada dia que passa de serem agentes da imoralidade, eremitas? Não terão todos eles pais, irmãos, cônjuges, ilhos, vizinhos, colegas e amigos? Claro que têm. Mas, então... serão todas essas pessoas, extraterrestres? Não, não são. São pessoas bem conhecidas. Sabem quem elas são? Somos nós, aqui nesta sala, nós lá fora nas ruas, nós nos prédios e nas repartições, nas escolas e nos hospitais, nos cafés e nas salas de reuniões. Somos todos nós, que passamos a vida a apontar os dedos uns aos outros.
Com isso, não andaremos nós, a inal, e aí sim, com toda a razão, a queixarmo-nos mas é de nós mesmos? A inal, como disse Confúcio ( ilósofo Chinês, 551 a.C.479 a.C.), “O homem de bem exige tudo de si próprio. O homem medíocre espera tudo dos outros”.
Ora, todos os acusados possuem uma justi icação que os desculpabiliza perante si mesmos da sua actuação: o professor vende notas aos alunos, alegando que tem que pagar por fora ao enfermeiro para este lhe facultar acesso ao médico; portanto, a culpa de ele vender notas, não é dele, é do enfermeiro; enfermeiro este que diz que precisa desses trocos para poder pagar ao polícia para o deixar passar sem os faróis que lhe roubaram; portanto a culpa de ele cobrar consultas, não é dele, é do polícia; polícia este que diz que sem essa renda paralela nunca haveria de conseguir pagar o fardamento escolar do seu ilho nem comprar notas ao professor, para o ilho passar de classe; portanto, a culpa de ele vender multas, não é dele, é do professor, aquele mesmo professor que vende notas aos alunos, alegando que tem de pagar ao enfermeiro, aquele mesmo que diz que tem de pagar ao polícia...
Faz até lembrar a história do indivíduo que conta, inconformado, a um amigo: “Este mundo está fora dos eixos. Já não há moral. Vê lá tu que on- tem, em plena igreja, um tipo ao meu lado acendeu o cigarro e pôs-se a fumar no meio da missa. Fiquei tão indignado que quase entornei a minha cerveja…”.
Todos nos queixamos, mas… e quem é que age?
A RESPONSABILIDADE ÉTICA
A responsabilidade ética e a moral da sociedade não são pertença da polícia, nem das instituições de justiça, nem dos outros agentes do Estado de quem nos queixamos ininterruptamente, meros instrumentos que são daquela que é a moral que é vigente na sociedade de onde eles mesmos vêem e a que pertencem. A responsabilidade ética é, sim, de cada cidadão. Se a imoralidade for uma prática admitida, silenciada e executada pelos cidadãos em geral, a polícia, a justiça e as autoridades em geral serão necessariamente imorais, também. De um ovo de galinha só pode sair um pinto de galinha!
É que o professor, o enfermeiro, o soldado e o polícia, o deputado e o ministro, o pulha e o ladrão, o canalha e o vilão, o corrupto, en im, quem são, a inal, senão os nossos ilhos, irmãos, familiares, vizinhos, amigos, colegas, ilhos dos nossos vizinhos, amigos dos nossos familiares, colegas dos nossos irmãos, ou seja… nós mesmos?
Quando vamos ao “Estrela” comprar piscas porque no-los roubaram na noite anterior, estamos a ser tão imorais como aquele co-cidadão que os roubou. Estamos a imitá-lo, contribuindo para que tal acto em vez de ser por todos condenado, porque imoral, acabe por ser por todos praticado, tornando-se assim um valor, em vez de um mal social.
Socorro-me uma vez mais de Confúcio quando disse: “Quando vires um homem bom, tenta imitá-lo; quando vires um homem mau, examina-te a ti mesmo”.
Não, de initivamente, não é o problema da escassez de pão. É a falta de ética social que faz com que nesta pátria todos ralhemos mas ninguém tenha razão.
Desengane-se quem pensa que esta atitude de acusar os outros para desviar a atenção de nós mesmos é nova. Não, ela é bem antiga. Já no chamado livro dos livros, nos é dito em Mateus 7:3-5:
“3Porque reparas no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho! 4 Como
ousas dizer ao teu irmão: “Deixa-me tirar o argueiro do teu olho”, tendo tu uma trave no teu! 5Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então verás para tirar o argueiro do olho do teu irmão”.
A Ética tem a ver, pois, com o comportamento próprio, e não com o dos outros, condição em que adquire a designação desclassi icada de “moralismo”. Ela é re lexão sobre o comportamento, mas não o dos outros e sim o próprio.
Mas a Ética não é apenas re lexão. Todos somos capazes de re lectir. A Ética tem a ver com o fazer, e não com o dizer. Por mais que falemos contra eles, haverá sempre corruptos enquanto houver quem os corrompa. Seja de forma passiva ou activa. Se nós não lhas comprarmos, os polícias deixarão de vender multas, os professores pararão de vender notas, os enfermeiros deixarão de vender consultas e até os ladrões deixarão de surripiar faróis. É só graças à cumplicidade de cada um de nós, que nos muitos Estrelas deste país que, nosso que é,é o que dele fazemos, espelha o que nós somos, é só com a nossa cumplicidade, dizia, que ali se cruzam e quase convivem, roubado, ladrão e comprador. De quem nos queixamos, então, se, a inal, as três mais não são do que facetas do mesmo cidadão, que de roubado se transforma, assim, em ladrão de si próprio?
A existência do corrupto só é possível se houver um agente corruptor. E quem é esse agente? É um de nós. Somos nós. Os dedos que apontamos aos corruptos estão geralmente enlameados de corrupção. O corruptor não é vítima, ele é o agente causador!
E se, como diz o ditado, “Uma imagem vale por mil palavras”, pois, um acto vale por mil imagens, já que quem faz não precisa sequer de falar. “Contra actos, não há argumentos”. O exemplo é o mais poderoso de todos os instrumentos da ética.
Mas, atenção: “Fazer o que está certo não é o problema. O problema é saber o que está certo” - disse Lyndon Johnson (36º Presidente dos EUA).
É que a Ética não é a mera observância da moral! A Ética é questionamento, é re lexão. E é opção. A obediência irre lectida é anti-ética. A obediência cega, sem ponderação das circunstâncias e das consequências, é cúmplice. Ela é o caldeirão onde a moral se transmuta em imoral e o imoral passa a ser coisa normal.
Por isso, jamais a obediência a uma ordem poderá ser esgrimida como justi icativa para fugir à responsabilidade que cada um de nós adquire sobre as consequências de qualquer acção por si praticada. Ou silenciada.
A ditadura, a descriminação, a violência, a corrupção e todas as outras formas de imoralidade só são possíveis por causa daqueles de nós que obedecem cegamente às ordens que lhes dão. Jamais haverá qualquer desses abusos se não houver executores irre lectidos. Ou deverei dizer, mesmo, irracionais? E esses executores, uma vez mais, somos todos nós que nos andamos por aí passivamente a queixar daqueles que (nos) mandam executar. Mas cujas ordens acatamos, em silêncio. E esse é que é o verdadeiro problema.
Como disse Martin Luter King: “O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons”.
Obedecemos, dizemos, por medo. O que pressupõe que sabemos que está errado aquilo que fazemos. Mas fazemo-lo, ainda assim. Ora, “Saber o que é certo e não fazê-lo é a pior cobardia”, disse Confúcio.
Mas, o medo não é só um acto de cobardia. É também um comportamento imoral. Porque o medo é parceiro, é cúmplice daquilo que se teme, pois essa coisa alimenta-se, sobrevive e agiganta-se apenas graças a esse mesmo medo. O medo é, assim, a causa de tudo aquilo que tememos.
A TEORIA DA JANELA QUEBRADA
Estamos perante uma crise de valores morais, diz-se à boca cheia em cada esquina – em mais uma manobra para atribuir a outrem a responsabilidade por tudo aquilo que anda mal. Estamos, então, manietados, encurralados, sem solução? Não, não estamos. Há solução, sim:
“A resposta tanto para a crise pessoal como para a crise colectiva é a mesma. E é simples. Pode ser representada numa única palavra: arbítrio. Ter arbítrio sobre os acontecimentos – a sensação de controlo – é algo drasticamente ausente da condição contemporânea. A sua captura está disponível através de um mecanismo simples: a acção. (…)é a acção – e apenas a acção – que muda as coisas. (…)É a acção dos indivíduos que maior efeito tem naqueles que o rodeiam (…) e, consequentemente, em todo o mundo” – Ross, Carne, “A Revolução sem Líder”.
Mas, como é que perdemos o controlo? A Teoria das Janelas Quebradas dá-nos a resposta: “Se uma janela está quebrada e não é consertada, quem passa por ali conclui que ninguém se importa com aquilo e que não há ninguém no controle. Em breve, outras janelas aparecerão quebradas, e a sensação de anarquia se espalhará do prédio para a rua, enviando a mensagem que ali vale tudo.” – Gladwell, Malcolm, “O Ponto da Virada”.
Então, que acção é esta de que nos fala Carne Ross, capaz de nos fazer retomar o controlo? Tem de ser uma acção vinda de cima, uma acção de grande vulto, realizada pelas autoridades ou por pessoas especialmente preparadas para isso? Não. A Teoria da Janela Quebrada diz-nos que a situação pode ser revertida “consertando-se detalhes mínimos do ambiente imediato”. (…) Podemos prevenir a ocorrência de delitos apenas limpando as paredes (…)”. – idem.
Só quando cada um de nós agir da forma que for mais correcta, cuidando de pensar nas consequências das suas acções, para escolher as opções que, bene iciando-nos, não prejudiquem, porém, a mais ninguém, e o izermos sem esperarmos premiação, nem temermos penalização, nem nos desculparmos com o que fazem todos os outros cidadãos, só aí poremos im às múltiplas formas de conduta e de acção imorais de que a todo o momento nos queixamos.
Por isso, não perguntem o que é que outrem deveria estar a fazer ou deveria ter feito. Perguntem-se, em todas as circunstâncias, em primeiro lugar, o que é que vocês próprios deveriam ter feito ou deverão fazer. E façam-no. Sem medo. Escolham, não obedeçam.
Estarei eu pr’aqui a fazer a apologia da desobediência civil, o apelo à revolta? Estou, com certeza. Mas não através da violência e sim, antes, através do exemplo bom, positivo, correcto. Próprio. De cada um. É isso que é a ética. Como disse Buda: “O ódio não destrói o ódio. Só o amor destrói o ódio. Sê como o sândalo, que perfuma o machado que o corta.”
Inundem, pois, todos aqueles que vos rodeiam com a fragrância intensa da vossa conduta. Eles se inebriarão, e estonteados pela doçura que dela emana, escolherão seguir o exemplo que vocês lhes dão. Assim, cada um de nós tornar-se-á muitos. E muitos de nós tornar-nos-emos ainda mais. E mais de nós, mudaremos o mundo. Sem uma palavra. Sem uma lamentação. Apenas com o poderoso exemplo da nossa própria acção.
Porque, como disse Hemingway um dia: “O mundo é um lugar encantador, pelo qual vale a pena lutar”. O nosso país também, digo eu. E só nós podemos fazer essa luta.
Cito, por isso, a terminar, Aldino Muianga, em “Nghamula”:
“Eu sou Nghamula, o homem do tchova Eu sou o condutor Tu és o combustível Ele é o cobrador Nós somos o motor da nossa Vida!”
Maputo, 03 de Novembro de 2012
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(*) Adaptado da intervenção de Carlos dos Santos, no lançamento do seu livro “Cartilha da Ética”, a 04 de Abril de 2011.