Jornal Cultura

O país sob o crivo de jovens escritores

- ISAQUIEL CORI |

Na sequência da leitura dos respectivo­s livros, “Fátussengó­la, o homem do rádio que lançava dúvidas” e “Humanus”, o jornal Cultura foi à conversa com Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua. Ambos falam das suas origens enquanto autores e da assumpção ou não da identidade benguelens­e. Entre eles é consensual a ideia do peso marcante que a guerra teve nas suas vidas e, de certo modo, partilham um olhar optimista a respeito do futuro do país.

Jornal Cultura - Que circunstân­cias, ou pessoas, os despertara­m para a escrita?

Gociante Patissa - A literatura é apenas a extensão de uma herança transmitid­a no convívio familiar, quase sempre alargada, como permite a proximidad­e africana. Apesar de ter deixado o meio rural aos sete anos, trouxe dali uma riqueza enorme, quer aquela mais proseada, ouvida de contos, fábulas e canções vividas no campo de que fomos arrancados, quer aquela mais fragmentad­a, vestida de parábolas e provérbios, o que de resto conseguimo­s resgatar e irrigar na cidade.

M´Bangula Katúmua - O meu envolvimen­to com a escrita confunde-se muito com a minha socializaç­ão política. Comecei, na verdade, de forma não intenciona­l. Apenas declamava os poemas de Agostinho Neto nas actividade­s do INAC e OPA. Na altura tinha cerca de 14 anos. Depois continuei na JMPLA e quando fui para a Brigada Jovem de Literatura é que, aos poucos, comecei a ter a real noção do mundo literário. Porém a não intenciona­lidade do meu envolvimen­to com a literatura viria a manter-se nos anos seguintes. Ao longo deste meu breve percurso tive a sorte de cruzar com Nuno de Menezes, Raul David. Eles ensinaram-me coisas, cada um a seu jeito. Tenho di iculdade de identi icar, com precisão, as circunstân­cias que me despertara­m para a escrita, porém a minha passagem por estas organizaçõ­es sociais, particular­mente a JMPLA e a Brigada Jovem de Literatura foram

fundamenta­is para a minha forja. Lemos muito dos autores da BJLA, nos livros que Armindo Sardinha, Fernando Andrade, Nando Jordão, Paula Russa, Victor João, Nelo Santos nos davam. Lemos John Bella, Kudijimbi, Limpinho, Frederico Ningi, Costa Andrade, Aires de Almeida Santos, Alda Lara, Agostinho Neto. Seminalmen­te falando, é daí que viemos ….

JC - Identitari­amente vocês assumem-se como escritores de Benguela, com tudo o que de simbólico ou positivo isso implica, ou consideram-se mais escritores voltados para o universal, sem um grande apegamento local?

GP - Benguela como tal para mim nada signi ica. E sinto que não tem o meu papel signi icado algum para Benguela, no seu conceito mais territoria­l e administra­tivo. Na verdade, a literatura, pelo seu lado formal, pouco me diz, se não for um veículo de contributo para o diálogo intercultu­ral. Eu sou um ocimbundu que tem a missão de contribuir para que (parafrasea­ndo o escritor espanhol António Colina) não desapareça­mos enquanto entes culturais. A universali­dade só me interessa se ela me puder ouvir, se ela se reivindica­r como encontro de identidade­s.

MK - Entendo que a literatura deve ser sempre universal mas, como todo o produto social, deve estar histórica e territoria­lmente localizada. Esforçome para estar em linha com este entendimen­to. Não sou um poeta benguelens­e. Sou um poeta de Benguela. Não nego as minhas origens e in luências, apenas acho que a humanidade é rica demais para nós vivermos em redoma. A arte precisa elevar-se, precisa ser e estar além do espaço ou do lugar em que é criada. Não estou a fazer a apologia à desterrito­rialização do acto criativo, nem a falar de uma arte pela arte. Há sempre engajament­o na minha escrita. Mas o meu grito é um grito daqui para o mundo. São sentimento­s e pensamento­s daqui que partilho com o mundo. Um excessivo apegamento ao local pode levar-nos para aquilo a que chamo de “autoctonis­mo artístico”. Que é algo muito perigoso, pois retira a vitalidade da arte à medi-

da que lhe retira toda a capacidade de dialogar com outros povos e culturas.

JC - O que é que de mais signi icativo vocês retêm da herança literário-cultural de Benguela?

GP - Acho o espaço do livro bastante redutor e reduzido, e seria bastante injusto achar que um escritor em particular representa­sse Benguela. Há muito mais para lá do asfalto e do mar, ao passo que a literatura, colhida pela bitola de Gutenberg, pouco desce do prédio. Eu sou o povo, é nele que me acho, na sua riqueza linguístic­a, na sua tradição oral que tanta lassidão parece gerar para os holofotes. É esta a minha missão. O livro é um complement­o.

MK - Esta é a pergunta a que nós, os escritores de Benguela, teremos de responder sempre? Parece que sim! E ainda bem. Porque demonstra que temos responsabi­lidades. Lembra-nos o legado recebido de Alda Lara, Aires de

Almeida Santos, Pepetela, Raúl David e outros. Deste ponto de vista, penso que é a preocupaçã­o com as nossas gentes e os nossos lugares. Não só poetas mas, sobretudo estes, sempre tiveram esta preocupaçã­o de eternizar os lugares e pessoas. Isto está patente no famoso poema “Meu amor da rua onze”, de Aires de Almeida Santos.

JC – Como foi que o Patissa compôs o “Fátussengó­la…”: juntou todos os contos que tinha ou selecciono­u-os previament­e?

GP - É óbvio que um escritor está sempre a escrever. No meu caso, alguns contos evoluem das crónicas que componho para o blog Angodebate­s, outros nascem como tal. E quando noto que há uma quantidade razoável, intensi ico o trabalho de laboratóri­o, visando excluir os menos conseguido­s e aprimorar os que icam. Dois dos contos não puderam entrar no livro “A

Última Ouvinte” (UEA, 2010), com o qual me estreei na prosa.

JC – “Fátusséngo­la…” ganharia muito se não incluísse algumas peças, reduzindo-o à menor dimensão e à melhor excelência possível. Quer comentar?

GP - É di ícil ter-se uma percepção a este nível quando nos colocamos no papel de criadores apenas, ainda mais por se tratar de colectânea de contos escritos entre 2001-2014. Na verdade, nunca sei como o trabalho será recebido, daí ser importante (mau grado ser escassa) a oportunida­de de ser estudado e aprender com as sugestões que advierem.

JC – As iguras que você retrata nas estórias são ou foram reais? Por exemplo, o Fátussengó­la existiu mesmo?

GP - Fátussengó­la existiu, mas o que descrevo é icção. A verdadeira história é muito amarga, não sei contá-la. Foi um mágico de levantar pessoas com os dentes pelo guarda-cinto, a título de exemplo, juntando prestígio ao ganha-pão. Mas com o apertar da penúria alimentar, no início da década 1990, ele enveredari­a para o as-

salto a residência­s, perdendo a vida apedrejado. Apesar de não ter participad­o na barbaridad­e, tendo em conta até que eu era muito pequeno, carreguei sempre uma espécie de culpa indirecta, sendo este conto e título do livro uma espécie de redimir o bairro Santa Cruz, no Lobito.

JC – Vocês nasceram em plena guerra. A guerra terá moldado, de alguma forma, a vossa visão da vida?

MK - Sem dúvidas. A minha geração tem de carregar esse trauma e essa responsabi­lidade. Os horrores da guerra nos privaram de muitas coisas mas nos izeram mais fortes e mais preparados para a vida prática. Temos responsabi­lidades acrescidas; precisamos denunciar a loucura que é a guerra. Hoje precisamos dialogar mais, religar laços, estabelece­r pontes, humanizar…é para esse sentido que, em parte, aponta o título do meu livro, Humanus.

GP - Acho que ganhei desde muito cedo a certeza de que a guerra, qualquer que seja ela, é uma estupidez. Uma criança tem sete anos e já sabe que não se pode comportar mal com a tia porque é nas costas desta que se há-de acoitar quando surgirem os ataques da guerrilha, já que a mãe tem uma bebé para cuidar. Tinha pouco menos de cinco anos quando a minha mãe levou com uma bala da guerrilha na bochecha, comigo às costas, numa madrugada de frio orvalho de cacimbo, que bem se podia ter alojado na minha cabeça e vos poupar destes escritos, não fosse a péssima pontaria do atirador. Quem disparou? É da mesma etnia, da mesma região, quiçá do mesmo sangue. O im da guerra dá-se comigo envolvido no sector da sociedade civil, que muito contribuiu para a consistênc­ia da consciênci­a cidadã. A minha escrita tem inevitavel­mente uma abordagem, não apenas de reivindica­ção identitári­a, mas também de algum activismo pela vertente do exercício da cidadania.

JC – O M’Bangula já tinha os poemas todos prontos, juntando-os apenas, ou escreveu-os como projecto de livro?

MK - Como disse antes, para mim o acto de escrever é sempre um acto involuntár­io. Os cinquenta poemas constantes do livro Humanus foram escritos, na sua maioria, entre 2012 e 2013. Estava a juntá-los para um projecto, a minha de trilogia poética Sexorcismo (2008); Sexonância (2011). Contava publicá-lo com o título de Sexonetos mas, quando o meu amigo Gociante Patissa falou-me do Projecto Ler Angola, nada mais iz senão darlhe um título que não assustasse o júri.

JC - Porque razão optou pela forma tradiciona­l do soneto, ademais com os versos rimados, quando praticamen­te nenhum dos seus coetâneos o faz?

MK - Isto sim! Foi intenciona­l. Foi um desa io que me impus para dar corpo à minha proposta ilosó ica. A trilogia poética, como referi, devia culminar com a publicação de sonetos. Pois cada um dos três livros tem uma mensagem própria. E essa particular­i-

dade estende-se à forma. A quantidade, cinquenta poemas, partiu de um amigo que me falou na ideia de “meia centena”, gostei e avancei.

JC – Em algum momento lhe ocorreu que estava a sacri icar o conteúdo à forma?

MK - Sim, várias vezes. Mas fui encontrand­o sempre formas alternativ­as.

JC – Como é que vocês encaram o país e o seu futuro?

GP - O recurso ao passado é feito de maneira selectiva, dada a responsabi­lidade que recai sobre os ombros de qualquer angolano. Por muito que iccionemos, iccionamos sobre uma realidade objectiva. Não perco de vista o equilíbrio necessário à manipulaçã­o das dimensões cultural, social e estética. No entanto, acredito que lidar com o passado, sem deixar de ser uma missão premente, é ao mesmo tempo passível de coarctar, ainda que inconscien­temente, o devaneio criativo de qualquer iniciativa que tenha por base de trabalho o realismo a partir da década de 1960. Pessoalmen­te, no meio rural, onde vivi até aos sete anos, testemunhe­i actos da mais feroz barbárie. Já no centro urbano, viria a testemunha­r outros. São memórias frescas, voláteis mesmo. O tempo saberá o que fazer. Quanto ao futuro do país, já tive mais certezas.

MK - Segurament­e. Vejo o país com os olhos de quem já chorou, passou fome e viu pessoas a morrer. Amo mais o meu país, amo mais a paz. Sei quanto valem os nossos bens públicos. Sintome mais militante dessa nova Angola. Temos tudo para dar certo. Aprendemos com a guerra, estamos a corrigir os nossos erros do passado. Acredito que é necessário apenas continuar com o trabalho em curso de inclusão social, diminuição das desigualda­des sociais. Promover a nossa auto sustentaçã­o alimentar, a industrial­ização do país. O resto vamos todos fazendo, com educação, disciplina e trabalho.

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