Reflexões avulsas a propósito
1 - Depois de quase duas décadas a conviver por dever de o ício e amizade com homens e mulheres das letras, e com os aspirantes a essa condição, adensou-se em mim essa constatação: os escritores, mesmo sendo muitos deles leitores compulsivos, raramente lêem os livros dos seus confrades. Paradoxalmente.
Quando indagados, naquilo que é uma pergunta recorrente, a respeito do panorama actual da Literatura Angolana (LA) - é disso que estamos a falar - e se enxergam ou não a emergência de novos talentos, a resposta oscila entre um vago “as coisas vão bem, melhor do que nunca” e um fugidio “os jovens lêem pouco, têm de ler muito mais”.
Para piorar as coisas, quando se procede ao lançamento de uma obra literária a maior preocupação de grande parte da imprensa é questionar o autor sobre o que ele escreveu, passando então o discurso sobre a sua própria obra a vigorar como a “verdade” da sua obra.
Se, no caso de um autor já bastante conhecido (“consagrado”) a sua opinião é geralmente encarada como uma pista de interpretação, no caso de autores quase desconhecidos essa opinião ressalta, entretanto, como uma nota de vaidade e presunção.
Aqui chegamos ao cerne da questão: a gritante falta de leitores quali icados (a crítica literária de cariz aca- démico ou jornalístico) que chamem a atenção para o conteúdo dos livros e lancem luz para o que de melhor se vai escrevendo e publicando, atraindo mais leitores, e contribuindo assim para que se saia do actual circo literário em que abundam os autores e escasseia o conhecimento a respeito das respectivas obras.
Esse circo em que os holofotes estão todos apontados para o autor, sem que o público conheça realmente o seu universo criativo-literário, deslumbra toda uma multidão de jovens ansiosos por uma saída na vida, convencidos de que a fama (a condição de “celebridade” ou “ igura pública”) é uma boa forma de estar na vida.
Toda essa realidade prejudica os verdadeiros e promissores novos talentos, que realmente existem na nossa literatura.
2 - Com a edição da segunda colecção dos clássicos da LA, a que se vai seguir a terceira no próximo ano, ica facilitada a tarefa de pais e educadores interessados em dotar os seus pupilos com o essencial da cultura literária do país. Mais do que da cultura literária estamos a referir-nos ao imaginário colectivo, com todo o simbolismo inerente, e a aspectos da história percebidos e narrados com alma e coração.
... E fecha-se o círculo das reclamações a respeito da falta no mercado de obras fundacionais e fundamentais da LA. Indo mais longe, ousamos dizer que todo o cidadão angolano que se pretenda culto e conhecedor das idiossincrasias do seu país deve, necessariamente, ler senão todos a maioria dos livros propostos nas colecções Clássicos da Literatura Angolana. Concordando-se ou não com essa designação, há-de convir que lá está a maioria dos principais autores da história da LA.
3 - Os jovens escritores e amantes das letras podem então estabelecer pela leitura o enriquecedor diálogo com os escritores mais velhos, vivos ou mortos, apreendendo as nuances da tradição literária, as técnicas inerentes e as várias maneiras criativas de ser angolano.
Essa etapa de formação do escritor, que não dispensa a leitura dos clássicos da literatura universal, é o caminho das pedras ou se quisermos, a travessia do deserto, feita de muita solidão e de confronto com o abismo do eu. Longe do tumultuoso circo literário.
4 - A recém-publicada “Colecção Novos Autores”, do projecto Ler Angola, e que integra onze autores, alguns dos quais marinheiros de segunda ou terceira viagem, deve ser lida, independentemente dos critérios de escolha, com a maior atenção. Não que, como disse Divaldo Martins, o coordenador do projecto, se esteja a espera do aparecimento de um génio das letras. Se se constatar a existência de um novo autor inspirado, trabalhador e imaginativo, bem que já nos podemos dar por satisfeitos.