Jornal Cultura

NAS ÁGUAS DO RIO KWANZA

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.- Derramara no chão o amor urdido em mil e uma noites de labor contra a penúria sem, contudo, almejar o verde tronco que encima um bago de feijão despido da veste que o sustém. 2.- Pegando o cabo da enxada com a mão direita, suspendeuo no ombro e pôs-se a caminho da lavra que o tinha, desde a infância até aquele doloroso instante, agachado em capinas e colheitas do que antes havia metido no solo inóspito daquele pobre canto do mundo. 3.- A aurora que o via passar com o cão à ilharga era a mesma que o esperava no dia a seguir, no mesmo sentido, de casa para o esperado plantio, revezando- se com o pôr- do- sol que o acompanhav­a de regresso a casa. 4.- A aurora e o pôr- do- sol, eles mesmos, dignos companheir­os de jornada, testemunha­vam- lhe o vigor dos passos que o capim molhado, ladeando o caminho, lhe ensopava os pés ao amanhecer; e os deixava secos ao fim da tarde, vitimados pelo ardente calor daquele que é tido por astro rei. 5.- A vontade de ter alguma coisa para comer superava a preguiça que o acompanhav­a por onde andasse, na vã tentativa de o abraçar para tê-lo como amigo. 6.- A escassez, temerosa de o ter distante da sua calorosa amizade, impediao de abraçar a ideia de nada fazer, facto que o deixaria à mercê da indigência que o esperava na esquina mais temida da invalidez. 7.Fonte do descalabro moral que ninguém tinha a intenção de ver, a ausência de água no chão onde planeara o trabalho era tal que vencia o vigor de um gigante treinado a viver num deserto. 8.- Munido de um querer para vencer uma batalha que parecia perdida, urdiu um gesto ousado que sublimava a vida ao invés da morte que o seguia inclemente, suspirando ao sentir que a ideia era um tesouro. 9.- Magicando o que seria o futuro, onde a alegria alternava a tristeza, viu que era vil não ter uma ideia capaz de suplantar o rigor da penúria que o engolia sem que alguém o acudisse. 10.- Convicto que o céu não lhe daria a água ansiada, pegou no farnel e o cão a seu lado e, em manhã de sol ardente, farejou o caminho a seguir e rumou para a margem do Kwanza onde mergulhou o corpo e a alma sedentos, sentindo a vida voltar de novo ao lugar que era seu; ao lugar onde era previsto estar presente para elevar o sentido que, enfim, merece.

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