DESERTOS E OUTRAS UTOPIAS
A chuva novembrina de Lisboa apanhou-me certa vez a caminho de uma exposição intitulada A City Called Mirage, da autoria de Kiluanji Kia Henda, artista plástico angolano com uma relevante trajectória internacional, que expôs individualmente na Galeria Filomena Soares.
Pareceu-me ser a chuva um bom augúrio – os meus mais recentes encontros com manifestações artísticas têm acontecido, nos últimos tempos, debaixo de chuva intensa; para além desse pormenor, achei curioso que fosse precisamentea chuva a conduzir-meà interpretação do deserto, tema central da exposição.
Estariam os elementos a conspirar para me proporcionar um espectáculo sobre esse amor fusional de contrastes?
Mas, comecemos pelo princípio, (se princípio há): como nasceu esta obra poética e pós-moderna? Kiluanji estava no sul de Angola quando, ao atravessar uma cidade quase desaparecida em meio ao deserto do Namibe, se deparou com uma tabuleta enferrujada onde se lia apenas: «Miragem». Essa palavra tornou-se num símbolo e na faísca que viria a gerar a cidade homónima e imaginária, que me acolheu nesta exposição.
A ampla sala da galeria, profusamente iluminada, apresentou-me à obra do artista e à sua coerente narrativa sobre o deserto, o caos, o futuro e a desumanização das cidades.O conceito conhecido como dubaização, sempre presente neste espaço, corresponde a um fenómeno urbanístico baseado numa arquitectura feita para ser vista, espectacular, centrada na imagem e distanciada das vivências e da cultura local;neste contexto, tudo é possível em função dos desejos megalómanos de quem pretende redesenhar o mundo apagando a História sem contemplações e servindo-se da terra como de uma folha virgem. Trata-se de construir cenários, mais do que cidades, onde a aparência assume estatuto de real.
Em Settings for an Imaginary Landscape, uma das partes desta exposição (que acordou em mim a belíssima melodia de Inútil Paisagem, um clássico de Tom Jobim), vemos quatro fotogra ias sobre a construção de uma estrada na Namíbia, em que não se vislumbra fronteira temporal; im e princípio são apenas conceitos abstractos diante dos montículos de areia que mais parecem rebeldes erupções de lava seca num cenário terraplanado (como que um parto tardio que a natureza já não pôde omitir nem evitar).
Numa mistura de materiais e de linguagens, entre a escultura e a fotogra ia, Kiluanji consegue arrastar-nos numa viagem intemporal através da solidão a da beleza áspera do deserto, que não é senão o re lexo das nossas próprias ausências e silêncios, num lugar cujos limites a vista não alcança e que esconde atrás de dunas promessas de um futuro insuspeito ou de uma miragem puri icadora e redentora. O artista propõe-nos uma re lexão estética e social sobre o nosso modelo de partilha e convívio, e uma séria interrogação sobre a nossa função neste pedacinho de tempo que se dilui diante da eternidade, entre aconstrução das cidades e a sua própria decadência, ilustrada pelas estruturas de aço que nos surgem como esqueleto vital e consequente ruína de si mesmo.
Na visão de Kiluanji, a cidade devora o planeta que a devora também, implacável e insaciável, buscando nela a matéria-prima que lhe foi roubada. É um planeta esventrado e insubmisso que responde reactivamente aos seus predadores.
O trabalho do artista, tão técnico quanto meramente estético, foi realizado em várias cidades ( Daca, Amman, Karachi, Lisboa, Luanda, Mani- la, Nova Iorque, Paris, Rio de Janeiro, Sharjah e Windhoek) e com a colaboração de numerosos parceiros de áreas complementares e sobreponíveis (como arquitectos, actores e músicos).
Kiluanji busca na História a justi icação de uma estética a desenvolver, nomeadamente nos desenhos de areia da cultura Tchokwe, que ele estiliza e interpreta à sua maneira contemporânea, globalizada, e virada para o amanhã, ao invés da intenção original desses desenhos, que se destinavam a narrar gra icamente histórias do antigamente.
A sua obra interpela o mundo, com sensibilidadepolitica e um certo humor poético que lhe aligeira o tom e a torna mais socialmente inteligível. Perdemo- nos de angústia no cenário pós apocalíptico, de um profundo vazio existencial, mas tambémencontramos nesses mesmíssimos grãos de areia a matéria- prima em que nos fundiremos todos um dia, quando todos os metais retirados da terra se voltarem a desfazer no subsolo.
E o deserto, todos os desertos, os da terra e os da alma, os das gentes e os da indiferença, os do caos e os do abismo, remetem-me invariavelmente para as linhas da grande poeta universalista, a mauritanaMariem Mint Derwich, onde o amor, a ausência, a memória e o longínquo se misturam com areia e temperaturas desumanas, sobre-humanas. E por isso lhe deixo a última palavra:
«[…]J'ai la tête vers le ciel renversée et je le regarde, de ce lointain où je m'envole,
je le regarde dormir dans ma mémoire
je pose ma main sur son bras et dénoue mes doigts
et je lui dis mes horizons, mes exils, mes chants des dunes, mes chants des vents[…]»