OUTRAS HUMANIDADES, OUTROS CÂNONES II As literaturas em línguas vernáculas
Africana de Expressão Oral, uma versão da sua tese de doutoramento Contrariamente ao que sucede nos defendida em 1987. estudos literários africanos de língua Ao passarmos em revista a biblio- inglesa (África do Sul, Ghana, Nigéria, grafia produzida nos estudos literá- Zâmbia, Zimbabwe, Uganda, Tanzâ- rios africanos de língua inglesa e lín- nia) e língua francesa (Benim, Cama- gua francesa verifica-se que as litera- rões, Senegal, Mali, Gabão, Costa do turas orais e as línguas africanas cons- Marfim, Congo Democrático, Congo tituem campos autónomos de ensino e Brazzaville), são relativamente escas- investigação. Já na década de 70 do sé- sos os trabalhos dedicados às literatu- culo XX, Eno Belinga defendia que ras orais e às línguas vernáculas no es- «uma metodologia adequada para o paço de língua de portuguesa. O ensi- estudo da literatura oral pode e deve no e a investigação têm sido domina- ser proposta aos investigadores, estu- dos pelo fetichismo do texto literário dantes e professores, na medida em escrito em língua portuguesa. Tal si- que não se aborda um texto oral do tuação constitui um ponto crítico que mesmo modo que um texto escrito». É justifica o desenvolvimento de novas nesta senda que a entrada em cena de agendas e linhas de pesquisa, bem co- especialistas africanos alteraria o ru- mo a formação de novos cânones lite- mo deste domínio de estudos, após o rários para o estudo das literaturas período de autonomização da antro- dos países africanos de língua portu- pologia durante o qual foram publica- guesa. Os fundamentos que susten- dos os trabalhos de autores como Bro- tam semelhante perspectiva residem nislaw Malinowski, A. Radcliffe- no potencial epistemológico que o Brown, Franz Boas e outros. Segundo aprofundado conhecimento das lite- Isidore Okpewho, os estudos das lite- raturas orais e das línguas africanas raturas orais africanas registaram um representa. A sua importância revela- avanço, quando a partir das décadas se na construção das estratégias her- de 60 e 70 começaram a ser publica- menêuticas que tenham como finali- dos trabalhos que revolucionaram a dade a compreensão dos textos escri- abordagem da literatura oral enquan- tos em língua portuguesa, tendo em to arte verbal. Por exmplo: The Con- conta as suas variedades nacionais. As tent and the Form of Yoruba Ijala (O excepções são raras. As primeiras ex- Conteúdo e a Forma do Género Ijala periências ou tentativas remontam ao em Língua Yoruba) de S. Adeboye Ba- século XIX. Por exemplo, em Angola balola (1966); Heroic Poetry of Basot- ocorreram por iniciativa de Joaquim ho, (A Poesia Heróica dos Basotho) de Dias Cordeiro da Matta e Héli Chate- Daniel P. Kunene (1971); Guardians of lain. No século XX, registam- se os the Sacred Word, (Os Guardiões da Pa- primeiros trabalhos académicos lavra Sagrada) de Kofi Awoonor consagrados a esta problemática. É (1974); The Ozidi Saga (A Saga Ozidi) o caso do moçambicano Lourenço de John Pepper Clark-Bekederemo do Rosário que publicou A Narrativa (1977).
Hoje podemos dizer que as orali- orais cujas características constituem dades literárias em África contam determinações dos «indícios de orali- com investigadores e centros de pes- dade» como dizia Paul Zumthor. A ti- quisas, possuem instâncias edito- pificação de tais características tem riais próprias, além de o seu ensino permitido estudar a complexidade ser ministrado de modo especializa- dos seus mais relevantes traços defi- do. Mas não deixam de existir desa- nidores. Em African Oral Literature. fios epistemológicos que, aliás, são Background, Character and Continui- evidências que se impõem aos inves- ty (A Literatura Oral Africana. Histó- tigadores, quando se reconhece a im- ria, Caráter e Continuidade), livro de portância do domínio das línguas pa- Isidore Okpewho, constrói-se uma ro- ra melhor estudar os textos orais, busta proposta de abordagem teórica além do conhecimento antropológi- assente numa classificação geral das co das culturas originárias. categorias e géneros das oralidades
Entre as oralidades literárias e as li- africanas. Do ponto de vista institucio- teraturas em línguas africanas existe nal, a existência de aparatos teóricos e uma fronteira difusa, na medida em metodológicos construídos em obras que os textos que constituem o segun- como esta de Isidore Okpewho com- do grupo são por vezes assimilados às pletam os contornos de um campo au- versões escritas dos textos orais. Tra- tónomo dos estudos literários africa- ta-se de uma confusão metodológica nos que, quanto a mim, deve igual- que deixa de fazer sentido perante as mente mobilizar o ensino e a investi- exigências do registo, transcrição e gação entre os professores e estudan- tradução de textos primariamente tes dos países de língua portuguesa.