Jornal Cultura

DIÁSPORA

- CONTO DE CARMO NETO

Teórico era como a malta do bair- ções patriotas, soltas por vezes em Manuel Kassule, abraçado a Nina – É viável. Aguarde.– Respondeu ro chamava o Fernando Kassule na- digestão livresca que muito se ab- Leona, nas passadas bem desenha- secamente e encerrou o diálogo. quele tempo. De boina afundada na sorvia na época. Ali reencontro­u a das, vibrava o corpo todo e assim Todos de pé. Fernando Kassule farta cabeleira, voava num primeiro Nina Leona, menina com sinais de matavam saudades. Novamente à deu um passo em frente. Baixou a ca- andar de socas, calças boca de sino, mãe angolana e pai português no ca- voltada mesa, continuara­m a con- beça e apertou a mão do Administra- camisa cintada de pano cru dese- belo – a surpresa e a alegria daquele versa. Eram jovens. Alguns deles, no- dor. Abandonara­m a sala de audiên- nhavam- lhe a elegância. Vibrava ao dia – diante das mães postadas ali mes que preenchera­m a lista do qua- cias. Parecia mais animado. som dos merengues e sembas na com filhos ao colo e os jovens de pu- dro de honra do antigo liceu da capi- Surpreende­u-se fora do edifício moda, nas farras de largos construí- pilas dilatadas fixavam o olhar ao re- tal distrital. Topo cerebral era Ma- com os ardinas a convidar a compra dos de bambús. cém chegado. Mesmo com a senhora nuel Kassule, filho de antigo funcio- dos jornais. Letras garrafais titulavam

De regresso ao futuro presente, lá escuridão a mandar no espaço, mos- nário público bem-sucedido, cujo so- a sua entrevista: “A cidade teria um estava depois de cumprir o serviço trou a todos o recorte de um grande nho era vê- lo formado em medicina, jardim botânico”. As rádios e os canais militar obrigatóri­o, inflamado de jornal estrangeir­o em que o jornalis- no Ocidente. Ninguém dele imagina- de televisão também abriram com a juventude, o neto cristal da avó Ca- ta curioso quis saber do Manuel Kas- ria tanta turbulênci­a criativa sobre o notícia. Mas à noite, numa mesa de tarina Mande, velha crestada pelo sule, naquele momento habitante de projecto de um jardim botânico. bar, relatou o clima da audiência ao tempo e sulcada de velhice. Trému- uma trincheira de guerra, o que faria Moído pelo cansaço decidiram lado da Nina Leona vestida de uma la de bengala em setas corria com os em tempo de paz. Imperturbá­vel e descansar. A caminho da casa da Ni- blusa que deixavam os seios demasia- miúdos pelos carreiros do seu po- pensativo respondeu: na, sob o manto da noite em passos damente suspensos e os lábios carnu- mar, farto de bananeiras e grandes – Dedicar- me- ia à floricultu­ra. curtos e ligeiros, ela confidenci­ou- dos pedindo beijo. O amigo Barnabé abacateiro­s, pralémde mangas su- Quero também criar um jardim botâ- lhe que já havia conseguido a mar- aconselhou prudência e consulta a periorment­e adocicadas dos man- nico. Surpreendi­do e enjaulado no cação da audiência com o adminis- um bom quimbanda para o sucesso. gueirais do Quéssua. seu preconceit­o, deu por terminada trador da cidade, para o resgate le- Mau olhado podia interrompe­r o

O ranger do portão anunciou no- a entrevista. gal do terreno, herança familiar. projecto. Era demais, João Ferramen- vamente a presença do Manuel Kas- Todo o quintalsol­tou gargalhada­s. Antes daria entrevista à imprensa. ta, aliás, Galhetas na tropa, e agora sule, figura seca castigada pela Outras lembranças emergiram. Adormeceu leve. Dia seguinte à doutor administra­dor para decidir! guerra, na velha casa de adobe da Veio à tona o musculado instrutor conferênci­a de imprensa, vestido – As melhores combinaçõe­s de cor do céu e rodapé lilás. Vieram as- militar João Ferramenta. Soltava com cuidado, sempre na moda, diri- abundância de plantas do tamanho sobios de contentame­nto e o mes- náuseasno discurso, porque Manuel giu- se ao encontro. do país – deixava a frase sair leve en- mo grupo de outrora se refizera Kassule vivia matrimonia­lmente li- Durante minutos olhou pensativo tre os lábios para replicar o amigo. com a banca de jogo de damas e xa- gado à moda e quase era escravo no à volta da sala de audiência, indicada Na verdade, a sua alma explodira drez, no aconchego da larga varan- trato do cabelo. Não gostava do cabe- pela secretária. Sentou- se e, para de sonhos durante meses, costurara da sombreada, onde borboletea­va a lo curto. E contra ele o instrutor dis- ocupar o tempo, lia tranquilam­ente ideias sobre o futuro jardim botâni- fumaça dos últimos “acés”. parava pares de galhetas. Transfor- uma revista até o senhor administra- co, com flores das bermas dos cami-

Resplandec­ia. As recordaçõe­s via- mou os insultos para anedotas. Era dor da cidade fazer- se presente, pa- nhos anónimos de todo o país até jaram desde os tempos das reuniões um gozo a trovejar o espaço. trulhado por um funcionári­o de ócu- que numa tarde Barnabé ao entrar políticas sobre filósofos da moda, O som da música do cantor Barce- los escuros. para o quintal do Manuel Kassule a aos momentos das marchas ritma- ló de Carvalho agitou o clima e con- De pé, diante dele, esboçou reve- gaguejar, disse: das em delírio compassado por canvocou para a dança. rência com voz pausada, cumprimen- – Estão a vedar o terreno para o tou e sentou-se acedendo ao convite. jardim. Acto contínuo expôs os factos: E o indicador direcciona­va o local

– Ilustre dirigente, conforme ex- onde se viam chineses, angolanos e posição da senhora Nina Leona, a mi- portuguese­s. nha pretensão é a legalizaçã­o de um – Calma, conta bem essa história, projecto para um jardim botânico no vamos lá ver o que se passa.– Acon- terreno do meu falecido avô, aqui selhou a Nina Leona. bem próximo da administra­ção. Consolidad­os estavam já os alicer-

– Não– protestou o alto funcioná- ce prestes a arranhar os céus. rio, de pé elevando num gesto de –O quê? O que se está mesmo a er- oratória a mão no ar. – Hoje, todos guer? – Indagou Manuel Kassule. são donos dos espaços. Você andou Foi respondido com um seco “or- comigo na tropa! dens superiores”. E se fossem à ad-

– Sou herdeiro, – contrariou, ministraçã­o? Foi para lá que se diri- olhando para a figura que deixava giu com um reluzente cartão de vista transparec­er alguém conhecido e de um prestigiad­o deputado, mas a acrescento­u: – é o instrutor Galheta? secretária resumiu a fundamenta­ção

– Sou o doutor Fernando Ferra- no interesse público. menta. Galhetas é lá na recruta. O se- Evadiu-se Manuel Kassule da cida- nhor não veio cá dar lições! Exponha de para uma recôndita ilha despo- o seu assunto! voada abraçada pelo rio Kwanza, an-

– Pretendo edificar um jardim bo- tes que a fábrica de arranha- céus lá tânico com plantas de todas as espé- decidisse instalar a partilha da abun- cies de Angola, frondosas árvores dância e da carência com a Nina Leo- floridas. E um largo acolheria peixes. na. Para consolar a desilusão, escuta Incluiria pássaros multicolor­es. Se- com frequência a música ” Eu vou riam um espaço atraente e elegante. voltar”, do cantor Teta Lando.

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