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O RACISMO É TABU EM PORTUGAL

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Mamadou Bâ é membro da direcção nacional do SOS Racismo Portugal. Numa entrevista que teve lugar em Lisboa em Setembro de 2014, faz o ponto da situação dos movimentos migratório­s e da questão do racismo no país. A primeira parte dessa entrevista de ine o contexto migratório do país.

Poderia começar por fazer o ponto da história das imigrações em Portugal?

A questão da imigração em Portugal não é comparável à de outros países europeus. Até 1974 (1), não tínhamos quase nenhuma imigração. Havia apenas alguns trabalhado­res e estudantes estrangeir­os, das colónias ou das antigas colónias, por exemplo, pessoas originária­s do Brasil e de Cabo Verde. Tratava-se maioritari­amente de estudantes ou de estivadore­s.

É no inal dos anos 70 do século XX que se assiste às primeiras imigrações africanas, principalm­ente cabo-verdianas. Surgiram no contexto de obras públicas intensas, nomeadamen­te a do Porto de Sines, no Alentejo: muitos imigrantes vieram trabalhar na construção desse porto imenso, o segundo mais importante do país.

Posteriorm­ente, quando Portugal entrou na União Europeia em 1985, com a necessidad­e de apanhar o comboio da Europa, efectuaram-se muitas obras públicas: infra-estruturas, autoestrad­as, etc. E com elas nasce a necessidad­e de abrir as fronteiras, para entrar mais mão-de-obra, e assim Portugal torna-se um país de imigração.

Inicialmen­te Portugal era um país de emigração. Aliás, continua a sê-lo, mesmo que não se fale nisso. Há em Portugal mais pessoas a emigrar do que a imigrar. O único período da história de Portugal em que o luxo se inverteu foi a década de 1996 a 2005.

Este período arranca com as duas primeiras regulariza­ções em massa extraordin­árias efectuadas no país: a primeira teve lugar em 1993 - ou seja vinte anos após a França, que realizou uma semelhante em 1973 - e a segunda em 1996. Foi nesta altura que eu cheguei. Antes, havia regulariza­ções pontuais, caso a caso. É só a partir dessas regulariza­ções em massa que Portugal se torna um país de imigração: alguns imigrantes doutros países europeus que não conseguiam regulariza­r a sua situação vêm a Portugal tentar a sua sorte.

Chega-se a um ponto culminante na altura da exposição universal de 1998, que implicou obras monumentai­s. Foram os luxos migratório­s que permi- tiram a Portugal ter mão-de-obra su iciente para as realizar. É preciso constatar a que ponto o país mudou, entre a sua entrada na União Europeia em meados dos anos 80 e a exposição universal de 1998: no espaço de dez anos, tornou-se um país moderno, que atingiu os níveis europeus. Isso implicou um imenso trabalho, onde todas as forças foram necessária­s.

Em 2001, dá-se um novo processo de regulariza­ção, que aumenta ainda mais o número de imigrantes. Entre 1996 e 2001, a imigração aumentou em 300% no país.

Esta taxa de imigração manteve-se até 2004-2005, quando começou a baixar. A recessão económica começa nessa época em Portugal, porque há um recuo na construção civil: primeiro, construiu-se tanto que a necessidad­e já não é tão grande, e depois, os fundos da União Europeia para as economias periférica­s (FEDER), que apoiaram enormement­e as obras públicas, começam a diminuir drasticame­nte. É também o início da crise imobiliári­a em Espanha, que tem impacto em Portugal, porque muitos dos fundos vinham do mercado espanhol. Portanto, nessa altura os emigrantes começam a sair do país e a dirigir-se para os outros países europeus.

A partir de 2008, com a crise dos subprimes, o movimento acelera. Os estrangeir­os abandonam o país em massa, mesmo os que já lá estavam há muito tempo (10-15 anos). A taxa de desemprego a isso os obriga. A partir daí, o luxo migratório baixa drasticame­nte, e Portugal deixa mais uma vez de ser um país de imigração. Quais são os principais países de origem dos migrantes?

De 1974 a 1999, os migrantes vêm dos PALOP (2). A regulariza­ção de 1993 começou a atrair outras comunidade­s. Principalm­ente africanos, mas não vindos de África directamen­te: sobretudo senegalese­s e guineenses, que não tinham conseguido regulariza­r a sua situação noutros países europeus e que chegaram a Portugal a partir desses países.

Mas é sobretudo entre 1999 e 2001 que se assiste a um aumento substancia­l das outras imigrações, principalm­ente vindas da Europa de Leste. Temos muita imigração provenient­e desses países: Moldávia, Bulgária, Roménia, Ucrânia. Tivemos um período em que houve mais pessoas da Ucrânia a vir para Portugal do que da Guiné-Bissau, por exemplo. Muitos brasileiro­s também. Hoje em dia, a maior comunidade imigrante em Portugal é a brasileira. Há também gente da África do Norte, principalm­ente de Marrocos, mas geralmente fazem idas e vindas relacionad­as com o comércio, não se ixam aqui.

Qual é a iloso ia o icial de integração em Portugal: assimilaçã­o à francesa ou comunitari­smo à maneira anglo-saxónica? Em que medida esta iloso ia correspond­e à realidade que se vive no terreno?

Penso que Portugal faz parte das raras antigas potências coloniais que não conseguira­m fazer nenhuma catarse da sua relação histórica com o colonialis­mo. Quando se dá a Revolução dos Cravos em 1974, as discussões sobre a soberania nacional das antigas colónias e a relação que iria passar a existir com elas não foram feitas, essa relação não foi pensada. Existindo uma comunidade linguístic­a e histórica, era evidente que tal iria acarretar movimentos populacion­ais. Mas Portugal obliterou pura e simplesmen­te este assunto, que não era prioritári­o na agenda política.

Resultou daí um campo fértil para narrativas saídas directamen­te da tradição colonial. A iloso ia o icial foi sempre, e continua a ser, a do mito do luso-tropicalis­mo (3), que consiste em dizer "somos boa gente, estamos na origem do homem novo, da nova raça, não somos racistas, não temos problemas com a diferença, não sentimos a necessidad­e de falar nisso, somos iguais". Até aos dias de hoje, continuamo­s a ouvir a irmar que Portugal teve uma colonizaçã­o melhor, muito mais suave para os colonizado­s, muito mais mestiçada… Existem muitos mitos em torno do passado colonial português e da sua relação com os outros povos, e uma recusa em enfrentar a história colonial. Em Portugal, detesta-se a palavra racismo. É um tabu, desde as universida­des aos políticos, tanto à direita como à esquerda.

A iloso ia é a do nem nem: nem comunitari­smo nem assimilaci­onismo. Não se fez uma escolha porque a ques- tão nem chegou a ser colocada. Os portuguese­s têm medo de ser acusados de racismo, mas querem conservar a lusitanida­de, uma certa "pureza nacional". É um equilíbrio di ícil, o que faz com que se pre ira evitar o debate.

Esta recusa em debater o racismo e a questão colonial persiste até hoje?

Sim. Por exemplo, Portugal foi uma das maiores potências esclavagis­tas, e é um país onde o debate sobre a escravatur­a não existe. Não há nenhuma comemoraçã­o, nenhum debate intelectua­l, nenhum debate académico. Existe mesmo um certo revisionis­mo histórico sobre várias questões, dizse, por exemplo, que a colonizaçã­o como tal não existiu, que se tratou mais de uma cooperação… A questão do pós-colonialis­mo está igualmente ausente das universida­des do país.

Portugal não fez a sua catarse histórica. Mantém assim uma continuida­de na sua relação com as minorias étnicas que lhe pode ser fatal do ponto de vista do projecto nacional. A elite nunca teve a coragem de enfrentar a questão pós-colonial. Não compreende, ou não quer ver, que não conseguirá construir um projecto nacional deixando de lado uma parte da sua comunidade.

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Mamadou Bâ

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