Jornal Cultura

VIA-A SEMPRE ALI SENTADA A LER

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Na Vila do Cadaval, longe dos prédios, das ruas, do tráfego, da confusão, existe uma grande área com um riacho, patos e relva com algumas árvores plantadas aqui e ali, só para embelezare­m.

Muitas vezes vou para ali para ler ou escrever. Ah, é verdade, nas margens do riacho foram colocados bancos. Eu escolho sempre um, por acaso é o último, que ica a pouca distância da casa dos patos. É uma família numerosa. Tem o pato e a pata com uma prole de onze patinhos. Eu gosto de os ver, todos em ila indiana quando a mãe (penso que é a mãe...não sei porquê, mas o pato e a pata são iguais...) os chama para irem para dentro de água. É curiosa a disciplina deles. Caminham com os bicos coladas ao rabo uns dos outros.

Vão dizer que este jardim paradisíac­o está cheio de gente a desfrutá-lo! hehehehe, eu sabia que iam pensar isso!

Mas não, lamento, ele está sempre às moscas...Bem...é um modo de escrever...estou lá eu e...ah, é verdade, ia-me esquecendo, há uma menina. Uma jovem, aparentand­o ter vinte e tal anos. Bonita, elegante descontraí­da. Ela também se senta sempre no mesmo banco. E ica ao lado do meu! É o penúltimo. Como o meu banco é o último, eu para lá chegar, tenho de passar pelo dela. E encontro-a sempre a ler.

Nota-se que está concentrad­a na leitura de tal modo que nem se apercebe que, por vezes, ela toma posições pouco discretas, digamos assim...

Como eu também gosto de livros e de ler, é claro que ao passar faço o possível para ver qual o título do livro. Mania minha. Mas nunca consegui ver!

Ela coloca-se em posições tais que eu não consigo ver o raio do título.

Como o meu banco fica ao lado do dela, frequentem­ente, tento olhar, para ver se consigo saber que livro ela está a ler. Por vezes, as posições dela são de tal modo ousadas, que eu tenho de desviar o olhar. Claro que desvio o olhar, sou uma pessoa educada, caramba! Agora, também é verdade, que eu podia ser um pouco menos educado...

Então tento voltar para a minha leitura, só que ultimament­e não tenho conseguido. Gosto mais de olhar para os patos!

Ontem, que fez um dia de Sol radioso e quente, por volta das três horas, depois de tomar um café, fui até ao Jardim. A caminho de lá, vi ao longe que a menina já estava no seu lugar habitual. Foi então que decidi que lhe ia perguntar o título do livro. Pensei que certamente não me iria levar a mal.

É curioso, como num sítio tão pequeno como é o Cadaval, eu não tenha conhecido aquela linda jovem. Geralmente, todos nos conhecemos uns aos outros. Aquela moça eu não conhecia, embora já estivesse habituado a ela há uns meses, desde que comecei a frequentar o jardim.

Aproximei-me dela, parei a mais ou menos, um metro de distância e preparava-me para interpelá-la quando reparei que o livro estava de cabeça para baixo. Ela estava tão concentrad­a que nem deu pela minha presença.

Hesitei. Achei aquilo tão estranho que decidi perguntar mesmo. Então disse, "boa tarde, menina, posso fazerlhe uma pergunta?"

Foi então que se deu algo que me chocou! Ela com um sorriso amável, levantou a cabeça e olhou para um local onde eu não estava. Respondeu-me, "boa tarde, não me diga que a minha mãe não me pôde vir buscar e mandou o senhor." "A sua mãe? Buscá-la?, não, não eu só lhe queria fazer uma pergunta, mas se a incomodo vou já embora", disse eu. "Não perturba nada, até lhe agradeço conversar um pouco consigo", respondeu ela.

Fiquei mesmo perturbado. Vi que ela não olhava para o lugar certo onde eu estava e procurava escutar os ruídos feitos por mim para me localizar. Sim, ela era cega.

Eu sentei-me ao seu lado. Tinha milhões de perguntas para lhe fazer, mas só me lembrei de lhe perguntar esta: Porque razão a menina vem para aqui todos os dias, com um livro, se não pode ler?

Ela respondeu:

Primeiro, porque adorava poder ler. As pessoas que podem e sabem ler, não sabem o desperdíci­o das suas vidas, não lerem.

Segundo, porque aqui posso escutar os ruídos ao longe, o esvoaçar das Aves, os patos a nadar, os latidos dos cães que vêm para aqui brincar, as vozes ao longe rindo ou falando, en im ouço tudo o que o Mundo pode dar.

Terceiro, porque com o livro nas mãos, vou juntando os ruídos conforme quero e imagino, e componho as histórias que o livro podia contar e, ico apalpando o papel das páginas, imaginando que estou a ler.

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