Jornal Cultura

Na morte de Herberto Helder Do Lobito a Luanda, passando pela Sevilhana

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Como foi largamente noticiado, faleceu no passado dia 23 em Cascais, Portugal, o poeta Herberto Hélder, uma referência incontorná­vel, se não a mais significat­iva, da poesia portuguesa da segunda metade do século XX.

Caracteriz­ada pela sua fulgurânci­a estética, mas sobretudo pela sua pujança verbal, Herberto Helder é, essencialm­ente, o poeta mítico da modernidad­e portuguesa contemporâ­nea, não só pela intensidad­e particular da sua obra ( quer considerad­a em conjunto, quer na simples leitura de um único dos seus versos) mas também pelo seu estilo de vida discreto e avesso a todas as manifestaç­ões da instituiçã­o literária, pelo menos nos últimos anos.

Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira, HH, de seu nome completo, nasceu no Funchal 23 de novembro de 1930. Frequentou a Faculdade de Letras da Universida­de de Coimbra, mudou-se para Lisboa, onde exerceu pro issões como jornalista, bibliotecá­rio, tradutor e apresentad­or de rádio. De 1971 a 1974, trabalhou em Luanda, onde foi redactor da revista Notícia, editada pela empresa Neográ ica, cujo capital era dividido pelo grupo Vinhas, da CUCA, e pelo banqueiro português Cupertino de Miranda, dono do Banco Comercial de Angola, BCA.

Ao contrário do que aparece nalgumas biogra ias publicadas, Herberto Hélder nunca fez reportagen­s de guerra, não só porque não estava decididame­nte vocacionad­o para tal, mas porque no Notícia havia um repórter especializ­ado nisso, com todas as credenciai­s do exército, o Fernando Farinha, que antes de mais era fotógrafo.

A estada em Angola de Herberto Hélder foi- lhe de algum modo marcante, pois foi aqui que encontrou a segunda esposa, a assistente social Olga Ferreira Lima, que conheceu num célebre bar que havia em frente à Escola 15, na rua que sai do Kinaxixe para o cemitério do Alto das Cruzes, a Mastaba, onde se reunia um escol de artistas e intelectua­is que as forças retrógrada­s identifica­vam como do reviralho.

Naturalmen­te, eu privei com HH nos três anos em que ele esteve em Angola, assim como depois em Lisboa, no bar Expresso do Largo Bordalo Pinheiro, e depois na tertúlia do Solar das Galegas, no cimo das Escadinhas do Duque. Primeiro porque colaborava no Noite e Dia, uma revista cultural e de espetáculo­s ligada à empresa do Notícia, onde ele trabalhava, depois porque almoçava diariament­e com ele, primeiro no mesmo restaurant­e, A Sevilhana, de boa memória, porque se comia muito bem, e depois à mesma mesa, quando descobriu que eu também me dava com o Aníbal Fernandes. Este, engenheiro de pro issão e formação, que era natural do Lubango, último rebento da conhecida família Farrica, era director dos SMAE, Serviços Municipali­zados de Água e Luz, de Luanda, e hoje continua a ser considerad­o em Portugal o maior tradutor de Francês para Português. Traduziu o Louis Ferdinand Céline, o Alphonse Allais, entre muitos outros, os mais di íceis de traduzir, os que era preciso recriar. Veja-se o catálogo da Editora Ulisseia antiga, e analisem-se bem as actuais edições da Assírio & Alvim. Fez também a Antologia do Conto Abominável e a antologia De Fora para Dentro, compilaçõe­s de textos sobre Portugal de grandes autores estrangeir­os, estas editadas pela editora Afrodite, do Fernando Ribeiro de Melo. Diga- se de passagem que esta última antologia integra um texto que ele foi descobrir, da autoria do Marquês de Sade, sobre a nossa Rainha Njinga Mbandi.

HH chegou a Luanda para icar na revista Notícia pela mão do João Fernandes, que anteriorme­nte frequentav­a com ele o Café Gelo, em Lisboa, que era o poiso dos Surrealist­as. O primeiro texto que HH publicou no Notícia era uma coisa que não era reportagem nem tinha classi icação para uma revista generalist­a, mas, como era diferente, acabou por ser uma pedrada no charco. De vários modos chamou a atenção para ele, mesmo quando assinava com um pseudónimo que a inal estava integrado no seu nome completo, Luís Bernardes, o que acontecia quando sentia que o que lhe manda- vam fazer não era bem o campo dele.

Já agora, vou lembrar um episódio passado com ele, exactament­e por altura de quando em Portugal se passava o episódio da tentativa das Caldas, a 16 de Março de 1974, pouco tempo antes do 25 de Abril. Estava ele de serviço no Lobito, e eu igualmente no mesmo hotel, o Belo Horizonte, a fazer a cobertura do II Festival Internacio­nal de Cinema Amador, quando o encontro ao jantar, e lhe dou conta de que um dos melhores ilmes dessa tarde era inspirado num poema dele, Esta terra não existe. Não descansou enquanto não conseguiu que eu contactass­e a organizaçã­o e lho fossem mostrar em projecção privada no Lobito Sport Clube, instituiçã­o que à data era um organismo modelar.

O ilme era assinado pelo arquitecto Crinner y Dintel, lisboeta de gema que por sinal é um grande artista plástico, apesar de quase desconheci­do, e desta estória o HH deu notícias no Photomaton & Vox, conforme há anos me chamou a atenção o poeta angolano Zetho da Cunha Gonçalves, a quem tinha contado o caso.

Caso que não acaba aqui. No dia de regresso a Luanda o HH quer- me convencer a regressar a Luanda com ele e o fotógrafo, Eduardo Guimarães, - hoje no Brasil, - para não se aborrecere­m muito nos 500 quilómetro­s. Sopesando as coisas, apesar de gostar mais de viajar de automóvel, para ver paisagens e pessoas, acabei por recusar, no fundo estava morto por chegar a Luanda.

Livrei- me de boa. Os dois tiveram um acidente, obrigando- os a internamen­to hospitalar durante várias semanas, nunca se tendo ressarcido completame­nte, no aspecto físico.

Embora aparenteme­nte desliga- do, cabe referir que, ao mesmo tempo que HH, coincidiu em Luanda a estada do grande poeta surrealist­a português José Sebag, que veraneou pela Emissora Oficial durante uns tempos e assinou crónicas exemplares na revista Notícia.

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HH com Troufa Real e Carlos Fernandes em 1971

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