Jornal Cultura

OMER IANTES DO MATO

CONTO de Inácio Rebelo de Andrade

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[Depois de bem comidos], Aristides, Armando e Sebastião passaram então à loja, que ocupava toda a parte direita da casa.

Sem horário de trabalho, era uma loja igual a tantas outras que comerciava­m naquela época com os negros. Mais armazém do que estabeleci­mento de venda, guardava lá dentro uma profusão enorme de artigos, que pareciam não ter relação entre si. Havia de tudo: nas prateleira­s corridas, peças de pintado, utensílios de mesa de esmalte e alumínio (canecas, pratos, travessas), miudezas de retrosaria (carros de linhas, agulhas, botões), pulseiras reluzentes de latão e colares coloridos de missangas; sobre o pavimento, espiras de tabaco escuro, fardos de pexelim e toqueia, sacos de fuba[ g] e feijão; ao fundo, postos de pé e com as torneiras em baixo, dois barris de vinho.

Outros produtos deviam estar ali certamente, embora invisíveis: os cheiros que pairavam no ar não podiam provir só da mercadoria exposta, mas de alguma crueira, óleo de palma e petróleo guardados em qualquer sítio.

Por duas janelas estreitas que não abriam nunca, o sol entrava como que a medo, iluminando mal o ambiente. Quem se encontrass­e aí pela primeira vez, icaria surpreendi­do; admirado com o que via, teria nesse momento a impressão de que estava num sítio estranho, tão sombrio e misterioso como a caverna de Aladino.

Tolhido pela surpresa, Armando não disse nada; mas minutos depois, desabafava consigo próprio que era num lugar insólito como aquele, perdido no fim de mundo, que teria de lutar pelo futuro.

Mas como? Alguém poria as inanças em ordem vendendo a retalho tantas bugigangas? Ganharia sequer o su iciente para pagar aos fornecedor­es?

Parecendo vaidoso do seu estabeleci­mento, Aristides observou:

— Como estão a ver, não é com artigos valiosos que ganho e amealho uns cobres. Coitados dos bés!: eles jamais poderiam pagar coisas caras.

Formulou então a regra essencial que qualquer comerciant­e digno do nome devia cumprir para ter sucesso:

— Olhinhos!, olhinhos! O que há a fazer é comprar bem e vender melhor!

Duas ou três horas mais tarde, Armando compreende­ria o signi icado de tal asserção.

De quindas na cabeça com os produtos colhidos das lavras, as mulheres vinham da mata, atravessav­am em ila ruidosa o terreiro e entravam na loja; com um esforço que parecia desmesurad­o para os seus braços frágeis, alijavam a carga na balança.

Aristides pegava nos pesos, dava uma volta ao balcão, tapava com o corpo a luz esmaecida que passava pelas janelas. Desde que iniciava essa espécie de ritual, não se calava: em voz alta, meio em umbundo, meio em português, fazia as perguntas e dava as respostas.

No momento adequado, ingia fazer contas de cabeça, para concluir:

— Ora bem, vejamos, tantos quilos a tantos angolares dá tanto...

É claro que aqueles « tantos » todos ficavam sempre aquém, quer dos quilos indicados pela balança, quer dos angolares que deviam resultar da conta.

As mulheres coçavam a carapinha e franziam a testa. Com a ponta acesa do cigarro metida dentro da boca, não protestava­m, pelo menos explicitam­ente. Quando recebiam a quantia anunciada, permanecia­m de mão estendida, mostrando assim que aquele lombongo era pouco. Tão pouco que não chegava quase para pagar a fuba, o peixe seco e os condutos que compravam de seguida.

Aristides observava a propósito que o dinheiro era um maganão, ladino que nem um azougue: tão depressa lhe saía da gaveta quanto lhe entrava no bolso.

Quem não tivesse jeito para o o ício, que fosse cavar batatas e mudasse de ramo...

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