DEBATIDA A FRONTEIRA ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA
A União dos Escritores Angolanos (UEA) promoveu, no passado dia 25/03, uma palestra sobre «a fronteira entre a história e a literatura», que teve como orador o académico Francisco Soares, com uma presença aproximada de 40 almas, entre fazedores de arte, estudantes, professores, deputados e jornalistas. O evento, enquadrado no projecto denominado «Maka à Quarta-Feira», de iniciativa da UEA, contou com a parceria da representação provincial do Ministério da Cultura.
Na sua qualidade de an itrião, o Director Provincial da Cultura, Mário Kajibanga, revelou que a palestra engrossa os festejos dos 40 anos de independência de Angola. Aquele governante mostrou-se ainda satisfeito pelo facto de Benguela ter sido escolhida para acolher a «Maka», já que, ao longo da sua existência, o evento só bene iciava a classe intelectual da capital do país, só tendo variado uma vez na província do Bengo.
E para o Secretário-geral da UEA, Carmo Neto, é incontornável visitar Benguela quando se fala da fronteira entre a história e a literatura, tendo em conta que a cidade é marcada por eminentes traços que ajudaram a construir a instituição literária que dirige. Onde termina a história e começa a arte O académico Francisco Soares (FS) considerou, durante a palestra, como sendo interminável a relação entre a história e a literatura. «A base do historiador ou da investigação cientí ica é a realidade histórica; a base do artista é a imaginação. Neste caso, com a imaginação histórica, teremos, por exemplo, um romance histórico», disse.
No que à literatura angolana respeita, o palestrante citou algumas obras que constituem amostra de romance histórico, nomeadamente, «O Ministro», de Uanhênga Xitu, «O Segredo da Morta», de Assis Júnior e, ainda, «Mayombe», de Pepetela. «São romances, mas também têm o seu componente de literatura testemunhal», concluiu o orador.
Entre as questões da plateia, uma foi no sentido de sondar o posicionamento da academia diante de «vivências» enquanto género, tendo em conta o subjectivismo inerente na manipulação de dados. Tal inquietação foi baseada numa passagem de David Mestre, excerto do prefácio ao livro «Crónicas de Ontem – para ouvir e contar», de Raul David, editado pela UEA em 1989, que reproduzimos pela sua relevância:
«Esta característica – se assim lhe podemos chamar – de andar e ver para relatar depois, antiga como os velhos impérios do continente, atravessa o texto numa oratória diagonal determinada pelo vulto da aculturação, em que se confrontam e experimentam impulsos de vária ordem num retrato sem retoque, de nitidez irregular à vista desarmada, que instala o autor – sem que talvez tenha sido essa a sua intenção inicial – como pioneiro de um género que, sendo de grande relevo hoje em dia, não encontrou ainda, entre nós, estatura própria: o testemunho.»
Em resposta, FS assegurou que a história vai buscar fontes à literatura, uma vez que o testemunho vivencial traz traz-nos muitas vezes dados que a história não nos pode dar, por se tratar de vivências pessoais. «O historiador pode dizer que o governador de Benguela, no ano 2015, era Isaac dos Anjos. Certo. Mas a moamba que ele comia como era feita? Que moamba é que se comia aqui nessa altura? Isso seria crónica da literatura testemunhal. Através desta, o historiador tem outra compreensão dos fenómenos estudados», argumentou FS.
Os participantes icaram ainda a saber pela voz do palestrante que Pepetela, na construção do romance «Mayombe», iccionou com base numa pesquisa documental. Ou seja, vários comunicados das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) nos anos de guerra pós-colonial coincidem com o retratado na obra. Uma vez integrante e com acesso privilegiado, o autor construiu o seu romance testemunhal.
FS quali icou de urgente e fundamental o estudo do género testemunhal, que acabará fornecendo insumos tanto para o estudioso se literatura como para o estudioso da história. «Nestes géneros, que são considerados de margem, porque não estão rigorosamente bem de inidos, as pessoas se expressam mais livremente», a iançou. Acácias rubras são símbolo da maçonaria Um dos autores muito citados por FS foi Augusto Bastos, «não branco», que chegou ao cargo de governador de Benguela na era colonial, ainda que por pouco tempo, devendo-se o seu afastamento a factores de ordem rácica. Foi durante este período que a cidade conheceu, no dizer do palestrante, um crescimento mais racional, com o alargamento de avenidas e o início da emissão local de cartas de condução. Por ele também, a cidade passou a «confundir-se» com as acácias, mas muito longe de motivações ecológicas.
«Não que não houvesse acácias aqui. Havia. Mas não na Casa da Sociedade do Comércio (actual comité do partido no poder). Para quem vai ao arquivo, anos 1940-50, tem lá a história sobre as acácias. Esta plantação pela cidade só se dá, sobretudo, em consequência do domínio da Kuribeka sobre a cidade. Porque a acácia rubra é símbolo de eternidade, da maçonaria. A Kuribeka era maçonaria.» Segundo ainda FS, dá-se numa altura em que os maçons, não obstante o modo secreto de operar, ocupavam postos-chave no aparelho administrativo e não só. «São autoridades nas instituições comerciais, nos sindicatos, nos jornais, na intelectualidade, e eles resolvem pôr a sua marca, que é a acácia rubra, espalhada por toda a cidade», sublinhou FS. Desa ios à recolha e divulgação Francisco Soares defendeu a promoção da investigação e sua consequente publicação, bem como a formação de professores, os universitários e os do ensino médio, de forma a melhor multiplicarem conhecimentos entre os estudantes. Advogou, por outro lado, que se tire proveito da Internet e outras plataformas digitais para a divulgação de obras. «Se você quiser ler um escritor angolano, como o Augusto Bastos, não se encontram livros dele. Mas se houvesse PDF, a pessoa vai à Internet, descarrega o e-book [livro no formato electrónico] e lê em casa. É também um bom método de leitura», referiu FS.
Por seu turno, Carmo Neto referiu que a UEA, enquanto editora com vocação literária, acolhe iniciativas que visem resgatar e eternizar a memória colectiva nacional. É disto exemplo o «Boletim Cultura da Sociedade Cultural de Angola», co-autoria de Irene Guerra Marques e Carlos Ferreira, editado em 2014.