Jornal Cultura

HISTÓRIA MILITAR DE ANGOLA

- ANTÓNIO JOSÉ TELO

Publicou-se em Luanda, em Abril de 2015, uma obra colectiva intitulada “História Militar de Angola”, coordenada pelo Tenente General Miguel Júnior e pelo Professor Manuel Maria Difuila, onde colaboram sete outros autores, todos Angolanos (Editora Kilombelom­be).

É uma obra pioneira, a primeira sobre a história militar de Angola feita depois da independên­cia e será uma referência incontorná­vel para toda a historiogr­a ia futura.

Fazer a história militar de Angola é um desa io imenso, muito em particular quando falamos de uma obra que procura sintetizar 500 anos. É um desa io imenso porque, em primeiro lugar, o território angolano é muito diversi icado e complexo, abarcando ao longo destes séculos sociedades muito variadas, com uma organizaçã­o militar própria e adaptada às suas circunstân­cias particular­es. Tudo se complica porque houve, não uma, mas muitos tipos de guerra e cada sociedade particular teve uma forma original de resistir à colonizaçã­o e procurar preservar as suas tradições, cultura e autonomia possível.

Houve de tudo um pouco, desde as sociedades que izeram pactos com os europeus para melhor se a irmar e até para submeter as vizinhas, até outras que resistiram frontalmen­te, lançando mão de todos os seus recursos e tentando formas inovadoras para se manterem. Ao longo de cinco séculos, como é fácil de imaginar a situação mudou muito e as sociedades que hoje faziam entendimen­tos e procuravam a cooperação, amanhã optavam pela resistênci­a militar frontal.

Mas não foram só lutas e guerras de resistênci­a que se travaram no território angolano. Registaram-se igualmente confrontos entre os poderes europeus, desde a conquista de grande parte de Angola pelos Países Baixos, até à sua reconquist­a a partir do Brasil depois de 1640, às tensões com os Belgas e Alemães no século XIX, à pressão Bóer sobre o Sul no im desse século, ou à guerra aberta com os alemães em Naulila (1914).

Para entender a complexida­de deste projecto basta recordar a imensa riqueza e variedade da história militar de Angola no último meio século. Angola foi o Estado que conheceu mais anos de guerra em todo o continente africano, com mais de três décadas de con litos permanente­s a partir de 1961. Nessas décadas, para além dos Angolanos, lutaram em Angola muitas outras nacionalid­ades de três continente­s: Portuguese­s, Cubanos, Sul-Africanos, para mencionar somente as nacionalid­ades mais representa­das, a que se podiam somar pequenos grupos de dezenas de outras. Cada uma destas nacionalid­ades trazia a sua forma própria de fazer a guerra, a sua estratégia peculiar, meios muito diferentes e tácticas e orgânicas a eles adaptadas. Todas elas mudaram e se adaptaram com a experiênci­a angolana que, durante décadas, foi a grande escola prática da arte militar em África, o laboratóri­o onde as últimas novidades a todos os níveis eram experiment­adas. Foram guerras de todos os tipos, desde massacres e tentativas de extermínio das populações, a guerras subversiva­s, contra-subversiva­s, insurrecio­nais ou regulares. Angola conheceu nomeadamen­te as maiores batalhas de blindados da África sub-sahariana, que no continente africano só foram excedidos pelos choques de blindados na Líbia e no Egipto, na 2ª Guerra Mundial, ou pelas guerras no Sinai entre árabes e israelitas. Estamos perante uma experiênci­a riquíssima e única, que serviu de berço para a actual Angola.

Por incrível que pareça, até hoje, 40 anos depois da independên­cia, não havia uma obra que procurasse fazer a síntese desta imensa experiênci­a, abarcando uma das mais importante­s vertentes da criação de Angola numa abordagem conjunta. Existiam, obviamente, muitas obras particular­es sobre este ou aquele con lito e sobre esta ou aquela operação ou batalha; havia também algumas obras de síntese mais ou menos vastas, sobretudo para o período colonial, onde se destaca o estudo de René Pellisier. Mas faltava a tentativa de juntar tudo, de procurar oferecer uma perspectiv­a de conjunto e abrangente. É esse imenso vazio que agora ica preenchido e não posso deixar de dar os mais calorosos parabéns aos coordenado­res e promotores da obra.

É uma obra inal e perfeita? Nada disso! Nenhuma obra é inal e fecha um assunto, por maior e mais completa que seja, enquanto a perfeição é um objectivo que não está ao alcance dos homens. Este livro é justamente o contrário: um primeiro passo, uma porta que se abre, uma a irmação da vontade e da maestria de uma primeira geração de historiado­res militares angolanos, que se desenha a traços grossos, ainda somente esboçados.

Merece especial destaque o texto inicial, da autoria do Tenente General Miguel Júnior. Merece destaque, em primeiro lugar, porque é o maior, cobrindo cerca de um terço do livro; não é para admirar que assim seja, pois abarca quatro dos cinco séculos contemplad­os, desde o XVI ao XIX. Mas a principal razão porque merece destaque não é o seu tamanho, ou a vastidão da temática abrangida, mas a sua qualidade. O autor recorre amplamente a fontes primárias, o que, só por si, faz a fronteira entre os amadores e os experiente­s nesta arte que é a História. Muitos pensam que a História é uma descrição, um amontoado de eventos interligad­os que se expõem com uma ordenação cronológic­a. A verdade, porém, é que a História, a que merece esse nome e a maiúscula, não é nada disso, mas sim uma explicação, uma construção lógica que procura conduzir a um entendimen­to superior do seu objecto, normalment­e através da aparência de uma mera discrição. A arte do historiado­r – e de uma arte se trata – é a de dar uma explicação através da aparente narração.

É justamente isso que Miguel Júnior faz, mostrando-se aqui como um historiado­r maduro e rigoroso, que vai às fontes primárias, que as cruza, que procura ligações e encadeamen­tos lógicos para chegar à sua explicação. Faz isto com a distanciaç­ão que caracteriz­a os historiado­res de gabarito, procurando cobrir com isenção não só a história da resistênci­a, mas também a da edi icação do edi ício militar do colonialis­mo, com ela intimament­e ligada e mesmo os signi icado e os formatos dos choques entre europeus no território de Angola.

Não escondo que nem todos os textos do livro têm uma qualidade semelhante e que é visível que este leque de historiado­res está em fases muito diferentes do seu percurso de vida. É normal que assim seja numa primeira obra, que icará para as gerações futuras como um marco no começo de uma estrada, a primeira tentativa de síntese, vasta e abrangente, da História Militar de Angola depois da independên­cia.

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