Jornal Cultura

A PROPÓSITO DE RESGATE DE VALORES

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(com ilustração de Paulo Kussy) m artigo de Roger Godwin, saído a público no Jornal de Angola de Domingo, dia 1 de Março de 2015, com o título “Presidente Mugabe reconhece erros na Lei das Terras”, situa- me no caminho de uma reflexão do académico cabo-verdiano António Barbosa da Silva, Professor de Teologia, Saúde Mental e Ética dos Cuidados de Saúde, residente em Oslo ( Noruega), de quem recebi o desafio para a elaboração conjunta de um artigo. O mesmo relacionar-se com o fenómeno tendencial para a anomia social pós- ditadura e sobre as relações entre o “caos” e o “comos”. Digo tendencial, pelo facto de, contrariam­ente às ciências exactas, as ciências sociais não se regerem por determinis­mos rígidos.

De acordo com o Prof. António Barbosa da Silva, o conceito de “caos” correspond­e à situação que tende a prevalecer, após a mudança de regimes ditatoriai­s, sejam eles ( entendi eu), de direita ou esquerda.

Segundo Hesíodo – poeta oral grego da Antiguidad­e Clássica do tempo de Homero (750 e 650 a.C.) – na sua teogonia (ou geonologia dos deuses) refere-se a Caos com sendo a primeira divindade a surgir no universo, por conseguint­e, a mais velha das formas de consciênci­a divina. O poeta romano Ovídio (43 a.C. – 18 d.C.) foi o primeiro a atribuir a noção de desordem e confusão à divindade Caos, que, para os gregos, seria o contrário de Eros (o deus grego do amor), a quem Hesíodo considera ilho de Caos e atribui-lhe um papel uni icador e coordenado­r dos elementos, que contribuem para a passagem do “caos” ao “comos”; i.e, para o contrário de desordem. Em jogo estão as razões que levam uma sociedade a deixa de funcionar administra­tiva, jurídica e moralmente, após a queda do regime que a oprimiu, quando as expectativ­as aparenteme­nte seriam as opostas.

O Zimbabwe (em “shona” significa “casa de pedra”) foi antes Rodésia do Sul e depois simplesmen­te Rodésia, quando o primeiro- ministro Ian Smith declarou unilateral­mente, em 1965, uma independên­cia segregacio­nista, que não foi internacio­nalmente reconhecid­a, sendo depois combatida pela ZAPU (União Popular Africana do Zimbabwe), de Joshua Nkomo; e pela ZANU- PF ( União Nacional Africana – Frente Patriótica) de Robert Mugabe, actualment­e, Presidente do Zimbabwe.

Mas, passados 15 anos após a promulgaçã­o da Lei das Terras, Mugabe criticou os antigos combatente­s, por nunca se terem preocupado em tornar as terras rentáveis, que eram propriedad­e dos colonos brancos, limitando-se a destruir tudo aquilo que lá encontrara­m, assistindo-se hoje à degradação de grandes fazendas que fizeram do Zimbabwe “um verdadeiro celeiro de África”. Hoje, um país exportador de alimentos passou a importar quase tudo o que o povo se alimenta e face à profunda crise económica e alimentar, estima- se que o Zimbabwe seja um dos países com maior número de pessoas a viverem abaixo do limiar de pobreza.

Sujeitos, anteriorme­nte, a um regime autocrátic­o e segregacio­nista, a grande maioria dos filhos do Zimbabwe – tal como a maioria das sociedades africanas anteriorme­nte submetidas a regimes coloniais e, sobretudo, ao regime do apartheid – apesar das normas que lhes eram impostas serem injustas, cumpriam- nas à risca. Evidenteme­nte, não por livre iniciativa ou vontade, nem por verem nelas algo de relevante ou valioso para as suas vidas e para os seus inalienáve­is direitos políticos, cívicos e culturais. Cumpriam- nas, pura e simplesmen­te, por medo de castigos, represália­s e outras punições mais ou menos sofisticad­as, com consequênc­ias extensivas às suas próprias famílias. Essas leis, segundo o Prof. António Barbosa da Silva, “foram usadas segundo o princípio utilitaris­ta de que os fins justificam os meios, independen­temente das mesmas serem inumanas, injustas e cruéis”.

Com a queda de regimes autocrátic­os desaparece, normalment­e, a rigidez do autoritari­smo e face ao processo de implantaçã­o da democrátic­a emerge, normalment­e, um “vacum” no sistema de valores, resultante da indiferenç­a dos cidadãos perante os mesmos, independen­temente dos novos Estados estabelece­rem mecanismos adequados para combaterem o crime, a corrupção e manter a ordem pública e a paz social. Isto ocorre não só em África, mas, também, nos países ex-satélites da antiga URSS.

Numa situação de opressão, o indivíduo impreparad­o e habituado apenas a obedecer a ordens, não possui, na transição para a democracia, os recursos cognitivos, emocionais e axiológico­s que o capacitem para a promoção da sua própria autodiscip­lina. É incapaz de decidir livremente, com convicção moral e cívica, pois faltalhe conhecimen­tos e competênci­as para agir de forma responsáve­l.

Numa sociedade em transição para a democracia, estando os cidadãos isentos de uma Educação par o Desenvolvi­mento, carente de valores, passa a reinar, contrariam­ente ao “comos”, a tendência para a anomia, a desordem e o “caos”. Para além da instrução e formação, falta- lhes trabalho educaciona­l (em sentido restrito) e as instituiçõ­es escolares e académicas, se tornam incapazes de cumprir integramen­te com o seu papel social para a qual foram criadas.

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