Jornal Cultura

A METÁFORA DO MAR NA POÉTICA DE AGOSTINHO NETO

NA POÉTICA DE AGOSTINHO NETO

- DAVID SUELELA

A nível dos estudos semióticos, a metáfora transpõe o valor que lhe é atribuído pelas gramáticas tradiciona­is; ela vai além da “simples” comparação abreviada. Esta estratégia semiótica tem sido recuperada pelos cultores de textos literários, de forma intenciona­l, com vista a reportar um “circunstan­cial” da sua época e da sua sociedade. Tal sucede com Agostinho Neto, o poeta da Esperança, que usa a palavra “mar”, para designar quer morte, quer separação de uma mãe dos seus ilhos que vão para o contrato, para a morte, kalunga. Essa posição de Neto resulta do conhecimen­to que tem da cultura bantu, pois, nas línguas Umbundu e Kimbundu, as palavras mar e morte são representa­das por um único signo linguístic­o, kalunga.

Da Metodologi­a Literária

No domínio da crítica literária, a poética de Agostinho Neto tem merecido inúmeras reflexões. Por exemplo, em 2014, o professor Pires Laranjeira e a investigad­ora Ana Rocha organizara­m uma obra com o título A Noção de Ser, uma coletânea de textos sobre a poesia de Neto produzidos em diferentes épocas e em diferentes países que, em minha opinião, reflectem o modelo literário positivist­a: há, na maior parte dos artigos, alusão sobre a vida e a obra do poeta; a influência do Meto- dismo e do Marxismo “na” e “para” a sua produção literária. É com base nisso que críticos como Leonel Cosme, Salvato Trigo e César Viana referem- se a Neto como o “épico africano”, “o evangelist­a”; “o dialéctico” “o messias” e, se não mesmo, o “Dom Sebastião” dos portuguese­s.

Em função disso, decidi reler a poética de Agostinho Neto numa perspectiv­a diferente da referencia­da acima e abrir novas “pistas” de leituras sobre a produção literária do poeta em questão para que, num futuro próximo, se venha a falar de Neto quer como um “construtor de metáforas”, quer como um “internacio­nalizador da cultura angolana”.

Desta forma, estaria a convidar a “comunidade leitora” a encarar a produção literária de Agostinho Neto como procedimen­to semântico-formal e como um veículo de (re) descoberta e de transmissã­o do acervo histórico e cultural da sociedade angolana, pois, tal como demonstrar­ei nessa comunicaçã­o, Neto usa a palavra “mar” com intenção estética e cultural, ou seja, faz a transposiç­ão de valores signi icativos de uma palavra para outra e procura internacio­nalizar um dado cultural não visto, por exemplo, em algumas línguas novilatina­s como o português, o espanhol e o francês: a representa­ção de duas palavras (mar e morte) por um único signo linguístic­o.

Do Signo Mar à Internacio­nalização de uma Cultura

A produção literária de Agostinho Neto é sobretudo poética, com excepção de um número de textos escritos em prosa como o conto Náusea de que farei referência a seguir e alguns ensaios sobre a cultura angolana reunidos na obra Ainda o Meu Sonho. Com base nisso, houve quem pudesse pensar, com alguma razão, que Agostinho Neto se “encobria” na poesia para expressar o seu “eu” africano, angolano e universal, uma posição perfeitame­nte compreensí­vel, se, como o professor Massaud Moisés, citado por António Quino (2014:29), concebermo­s a poesia como a expressão do eu por meio de metáforas.

Esta proposição resulta do facto de que, na poética de Neto, o autor textual transfere o signi icado da palavra morte para a palavra mar que, a meu ver, é uma estratégia adoptada pelo poeta de forma intenciona­l com o objectivo de demonstrar e a irmar ao mundo que o conceito que se tem sobre a vida ou sobre as coisas pode variar de região a região, de cultura a cultura. Do conto Náusea nota-se muito bem esta transposiç­ão de valores signi icativos de uma palavra para outra e, neste particular, da palavra “morte” para a palavra “mar”:

Velho João olhava de novo a areia e monologava intimament­e: Mu´alunga. A morte. Esta água! Esta água salgada é perdição. […]. O primo Xico tinha morrido ali no mar grande. Morreu a engolir água. Kalunga. […].E o mar é sempre Kalunga. A morte (Neto, 2006:25).

Assim, a palavra mar deixa de apresentar o seu signi icado de base e passa a carregar traços signi icativos como perdição, separação, morte. A inal, o conhecido comércio triangular que levou inúmeros ilhos de África para o mundo fora e que impossibil­itou, em parte, o desenvolvi­mento demográ ico e estrutural do “continente berço” foi realizado por meio do mar. A ida dos ilhos de África, através do mar, para América representa­va uma viagem sem retorno, perda de um ilho que ajudaria e cuidaria da sua “Mãe”; que daria matrimónio a uma ilha de África e, por conseguint­e, ofereceria, como toda a mãe deseja, mais um ilho a África. Por isso, quem, pelo mar viaja, uai mu´alunga (foi para morte).

Nesta conformida­de, o mar, para Agostinho Neto, não representa “extensão de água salgada”, mas, sim, elemento de uma “separação infinda” em que tanto “quem vai” como “quem fica” não tem possibilid­ade de esperar pelo reencontro do “Rosto” do “Outro” enquanto proximidad­e e dignidade, o que passa a constituir um inimigo da tranquilid­ade das pessoas, um opositor da vida, o promotor da morte. Daí o reforço propositad­o: “E o mar é sempre morte. Kalunga”.

Tal como em Náusea, a oscilação signi icativa da palavra mar é veri icada, de forma explícita, em três poemas da obra A Renúncia Impossível, nomeadamen­te “Explicação”, “Kalunga” e “Noite Escura”. Em Sagrada Esperança, a palavra mar aparece com valores signi icativos oscilantes, de forma explícita, nos poemas “Partida para o Contrato”, “Con iança” e “Massacre de São Tomé e Príncipe”. Porém, além destes poemas, é possível observar que, de forma implícita, a palavra mar aparece em quase toda a poética de Agostinho Neto. Basta olhar para “a mãe cujos ilhos partiram”; “os servidores da South” e para “o choro que cansou o mundo”, para que se possa notar a presença do mar como o “nguma” da gente angolana e africana.

No poema “Explicação”, d’A Renúncia Impossível, palavras como “mar”, “porto” e “ondas” contêm o mesmo valor signi icativo, i.e., estão todas ligadas ao sofrimento, à tristeza e à submissão humana, tornando, desta forma, a vida de quem se encontra neste lado do Atlântico num autêntico “drama da História”, sem sentido existencia­l e, por este facto, a vida passa a ser uma rotina “tediante” destituída de adorno e de prazer, o que motivaria qualquer pessoa a adiantar “a hora da traição”:

[…] Que me importa/ o perfume das rosas/os lirismos da vida/se meus irmãos têm fome?/ Todo o meu ser se debruça ante o drama da História/que nos legou/esta alma de triste submissão e sofrimento// Todo o

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