A METÁFORA DO MAR NA POÉTICA DE AGOSTINHO NETO
NA POÉTICA DE AGOSTINHO NETO
A nível dos estudos semióticos, a metáfora transpõe o valor que lhe é atribuído pelas gramáticas tradicionais; ela vai além da “simples” comparação abreviada. Esta estratégia semiótica tem sido recuperada pelos cultores de textos literários, de forma intencional, com vista a reportar um “circunstancial” da sua época e da sua sociedade. Tal sucede com Agostinho Neto, o poeta da Esperança, que usa a palavra “mar”, para designar quer morte, quer separação de uma mãe dos seus ilhos que vão para o contrato, para a morte, kalunga. Essa posição de Neto resulta do conhecimento que tem da cultura bantu, pois, nas línguas Umbundu e Kimbundu, as palavras mar e morte são representadas por um único signo linguístico, kalunga.
Da Metodologia Literária
No domínio da crítica literária, a poética de Agostinho Neto tem merecido inúmeras reflexões. Por exemplo, em 2014, o professor Pires Laranjeira e a investigadora Ana Rocha organizaram uma obra com o título A Noção de Ser, uma coletânea de textos sobre a poesia de Neto produzidos em diferentes épocas e em diferentes países que, em minha opinião, reflectem o modelo literário positivista: há, na maior parte dos artigos, alusão sobre a vida e a obra do poeta; a influência do Meto- dismo e do Marxismo “na” e “para” a sua produção literária. É com base nisso que críticos como Leonel Cosme, Salvato Trigo e César Viana referem- se a Neto como o “épico africano”, “o evangelista”; “o dialéctico” “o messias” e, se não mesmo, o “Dom Sebastião” dos portugueses.
Em função disso, decidi reler a poética de Agostinho Neto numa perspectiva diferente da referenciada acima e abrir novas “pistas” de leituras sobre a produção literária do poeta em questão para que, num futuro próximo, se venha a falar de Neto quer como um “construtor de metáforas”, quer como um “internacionalizador da cultura angolana”.
Desta forma, estaria a convidar a “comunidade leitora” a encarar a produção literária de Agostinho Neto como procedimento semântico-formal e como um veículo de (re) descoberta e de transmissão do acervo histórico e cultural da sociedade angolana, pois, tal como demonstrarei nessa comunicação, Neto usa a palavra “mar” com intenção estética e cultural, ou seja, faz a transposição de valores signi icativos de uma palavra para outra e procura internacionalizar um dado cultural não visto, por exemplo, em algumas línguas novilatinas como o português, o espanhol e o francês: a representação de duas palavras (mar e morte) por um único signo linguístico.
Do Signo Mar à Internacionalização de uma Cultura
A produção literária de Agostinho Neto é sobretudo poética, com excepção de um número de textos escritos em prosa como o conto Náusea de que farei referência a seguir e alguns ensaios sobre a cultura angolana reunidos na obra Ainda o Meu Sonho. Com base nisso, houve quem pudesse pensar, com alguma razão, que Agostinho Neto se “encobria” na poesia para expressar o seu “eu” africano, angolano e universal, uma posição perfeitamente compreensível, se, como o professor Massaud Moisés, citado por António Quino (2014:29), concebermos a poesia como a expressão do eu por meio de metáforas.
Esta proposição resulta do facto de que, na poética de Neto, o autor textual transfere o signi icado da palavra morte para a palavra mar que, a meu ver, é uma estratégia adoptada pelo poeta de forma intencional com o objectivo de demonstrar e a irmar ao mundo que o conceito que se tem sobre a vida ou sobre as coisas pode variar de região a região, de cultura a cultura. Do conto Náusea nota-se muito bem esta transposição de valores signi icativos de uma palavra para outra e, neste particular, da palavra “morte” para a palavra “mar”:
Velho João olhava de novo a areia e monologava intimamente: Mu´alunga. A morte. Esta água! Esta água salgada é perdição. […]. O primo Xico tinha morrido ali no mar grande. Morreu a engolir água. Kalunga. […].E o mar é sempre Kalunga. A morte (Neto, 2006:25).
Assim, a palavra mar deixa de apresentar o seu signi icado de base e passa a carregar traços signi icativos como perdição, separação, morte. A inal, o conhecido comércio triangular que levou inúmeros ilhos de África para o mundo fora e que impossibilitou, em parte, o desenvolvimento demográ ico e estrutural do “continente berço” foi realizado por meio do mar. A ida dos ilhos de África, através do mar, para América representava uma viagem sem retorno, perda de um ilho que ajudaria e cuidaria da sua “Mãe”; que daria matrimónio a uma ilha de África e, por conseguinte, ofereceria, como toda a mãe deseja, mais um ilho a África. Por isso, quem, pelo mar viaja, uai mu´alunga (foi para morte).
Nesta conformidade, o mar, para Agostinho Neto, não representa “extensão de água salgada”, mas, sim, elemento de uma “separação infinda” em que tanto “quem vai” como “quem fica” não tem possibilidade de esperar pelo reencontro do “Rosto” do “Outro” enquanto proximidade e dignidade, o que passa a constituir um inimigo da tranquilidade das pessoas, um opositor da vida, o promotor da morte. Daí o reforço propositado: “E o mar é sempre morte. Kalunga”.
Tal como em Náusea, a oscilação signi icativa da palavra mar é veri icada, de forma explícita, em três poemas da obra A Renúncia Impossível, nomeadamente “Explicação”, “Kalunga” e “Noite Escura”. Em Sagrada Esperança, a palavra mar aparece com valores signi icativos oscilantes, de forma explícita, nos poemas “Partida para o Contrato”, “Con iança” e “Massacre de São Tomé e Príncipe”. Porém, além destes poemas, é possível observar que, de forma implícita, a palavra mar aparece em quase toda a poética de Agostinho Neto. Basta olhar para “a mãe cujos ilhos partiram”; “os servidores da South” e para “o choro que cansou o mundo”, para que se possa notar a presença do mar como o “nguma” da gente angolana e africana.
No poema “Explicação”, d’A Renúncia Impossível, palavras como “mar”, “porto” e “ondas” contêm o mesmo valor signi icativo, i.e., estão todas ligadas ao sofrimento, à tristeza e à submissão humana, tornando, desta forma, a vida de quem se encontra neste lado do Atlântico num autêntico “drama da História”, sem sentido existencial e, por este facto, a vida passa a ser uma rotina “tediante” destituída de adorno e de prazer, o que motivaria qualquer pessoa a adiantar “a hora da traição”:
[…] Que me importa/ o perfume das rosas/os lirismos da vida/se meus irmãos têm fome?/ Todo o meu ser se debruça ante o drama da História/que nos legou/esta alma de triste submissão e sofrimento// Todo o