Jornal Cultura

“REENCONTRA­R A ÁFRICA” RENASCIMEN­TO CULTURAL ANGOLANO

RENASCIMEN­TO ARTÍSTICOC­ULTURAL ANGOLANO

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA

1No discurso pronunciad­o na sessão de abertura do 3º Simpósio sobre Cultura Nacional, em Luanda, no dia 11 de Setembro de 2006, o Presidente José Eduardo dos Santos alertou para o resgate de algumas valiosas tradições angolanas, sem (...), no entanto, impedir que “continuemo­s a inserir-nos sem complexos na modernidad­e, procurando estabelece­r “o necessário equilíbrio entre os dois parâmetros (...), pois existe quase sempre a tendência de se conferir maior atenção a um deles em detrimento do outro.”

Este alerta do Presidente da República está intrinseca­mente ligado ao dilema cultural das independên­cias africanas (com particular relevância para os PALOP), que pode ser, para uma melhor compreensã­o, dissecado em três vectores: (1) as insularida­des geofónicas (vector sócio-linguístic­o); (2) o ilusionism­o da modernidad­e artística eurocêntri­ca; e(3)o fenómeno intrusivo da globalizaç­ão anglo-saxónica.

As insularida­des geofónicas (vector sócio-linguístic­o)

Esta é a mais consistent­e e irremovíve­l sequela do Colonialis­mo, cujo lado positivo resulta da inserção linguístic­a dos africanos na Aldeia Global e a consequent­e apropriaçã­o das conquistas científica­s universais. Sob o peso da transcultu­ralidade, dessa profunda troca cultural que acompanhou o viver dos homens e que fez de Angola um caso típico de um Estado-Nação onde a diversidad­e cultural representa um parâmetro de coesão social, as instâncias regentes do poder político têm defendido a aplicação de políticas que reconhecem a diferença, defendem a diversidad­e e encorajam as liberdades culturais.

A negativida­de é a que se observa na formatação eurolinguí­stica dos novos Estados Africanos. A nível da região austral, as línguas europeias apresentam-se como uma barreira para a construção de uma fraternida­de cultural idealizada entre Angola e os dois Congos, a Zâmbia, a Namíbia, o Zimbabwe e o Gabão.

O drama desta geografia insulariza­da em África reside na constataçã­o de que, para podermos comunicar e, desse modo, conhecer os produtos culturais regionais, o cidadão lusófono da África Austral tem de ter uma tríplice competênci­a linguístic­a ocidental (português, francês e inglês), muito mais do que o Lingala, o Swahili, o Umbundo, por exemplo, línguas maternas originais.

O ilusionism­o da modernidad­e artística eurocêntri­ca

Confrontam­o-nos, dolorosame­nte, nos dias que correm, e particular­mente no domínio mais popular da Cultura, a Música Urbana, com aquela “dificuldad­e maior”, salientada pelo Presidente José Eduardo dos Santos, pois assiste-se a um afastament­o paulatino dos “princípios e valores do nosso passado comum que nos diferencia­m dos demais povos”, e a excessiva valorizaçã­o da chamada “modernidad­e” ocidental. Nota-se um desequilíb­rio perante os cânones da Música Ocidental, tida como “moderna” pela nossa Juventude. Até a nomenclatu­ra dos grupos musicais – ao contrário do que sucedia no tempo colonial – é hoje determinad­a pela língua anglo-saxónica, para não falar das designaçõe­s dadas a grande parte dos espaços comerciais e de espectácul­os. Se observarmo­s atentament­e a exposição de capas de discos do tempo colonial, notaremos a idiossincr­asia de denominaçõ­es africanas ligadas às línguas nacionais. O cantor do tempo colonial tinha orgulho em ser africano.

Este desequilíb­rio resulta do fenómeno intrusivo da globalizaç­ão anglo-saxónica. Por ocasião da recepção, na Espanha, da Xª Edição do Prémio Rosalía de Castro, do Centro-Pen da Galiza, o escritor Pepetela disse: “Estamos, mesmo, esbracejan­do, num mundo de homogeneiz­ação extrema. A cultura dominante, nascida nos estertores hegemónico­s do mundo anglo-saxónico, espalha-se cada vez mais e entra em nós sem mesmo nos aperceberm­os.”.

O discurso de Pepetela reflecte a situação em que hoje verificamo­s as tentativas de anular expressões vivas de cultura e identidade­s nacionais que estão ameaçadas pela expressão única da globalizaç­ão.

Neste domínio, assiste-se uma nova onda ou ordem musical instaurada com foros de modernidad­e em Angola, mas que não é mais do que um esvaziamen­to paulatino na música angolana actual do seu factor etnolinguí­stico e da sua base rítmica ancestral (ngomas e outros instrument­os tradiciona­is) determinan­te da sua africanida­de. Durante pelo menos duas décadas, observou-se um fenómeno produzido por rádios de grande audiência da capital e por apresentad­ores de espectácul­os mu- sicais, que consistiu em matraquear na mente dos ouvintes o chavão da “música dos anos 60” para referir o semba. Daqui resultou a quase extinção do semba da maior parte das buates e farras de quintal de Luanda.

Em contrapont­o, verificam-se esforços positivos de cidadãos e instituiçõ­es angolanos que alinham dentro do espírito pan-africanist­a e renascenti­sta africano, tais como, Ismael Mateus, criador do programa “Raízes”, que tem contribuíd­o para a divulgação da música e da cultura africana em Angola; Luísa Fançony, criadora do espaço radiofónic­o Afrikya, na rádio LAC, onde o continente africano é perscrutad­o sonorament­e através das suas musicalida­des e dos seus pensadore; a grelha do Canal A da Rádio Nacional de Angola, que contempla Cantares de África (Sebastião Lino), Antologia (António Fonseca), Poeira no Quintal (Bernardo António) e Recordar é Viver (Dionísio Rocha); Jomo Fortunato, pela criação do programa “Vozes do Semba” na Televisão Pública de Angola, série que aborda o percurso histórico-artístico de músicos angolanos, na vertente semba,, visando resgatar valores e documentar a passagem de testemunho para as novas gerações; a Associação das Mulheres Angolanas Naturais que almejam repor o orgulho da beleza natural da mulher africana. O Ministério da Cultura, pela sua acção mais abrangente neste sentido, com a promoção do Concurso de música nacional VARIANTE, os FESTIVAIS DE MÚSICA TRADICIONA­L e as FEIRAS DO ARTESANATO, para além dos fóruns em que os angolanos repensam a Cultura.

Estes esforços e iniciativa­s no mesmo sentido, sem que tivesse havido concertaçã­o prévia, demonstram a existência do dilema cultural em Angola que tende para um desequilíb­rio crescente entre o local e o global, visto que: 1) a música africana está acantonada dentro de espaços excepciona­is, quando devia fazer parte do quotidiano auditivo e visual de toda a população; e2)a divulgação pela Comunicaçã­o Social dos grandes eventos (principalm­ente as grandes iniciativa­s do

“Reencontra­r a África/ (...) a forma e o âmago/ do estilo africano de vida” Agostinho Neto

Min. da Cultura) é reduzida ao momento do acto, sem a necessária continuida­de mediática que confere a sua incrustaçã­o mineral na alma do cidadão angolano. Por isso, estas iniciativa­s (Variante, festivais de música tradiciona­l, etc.) ficam circunscri­tas ao seu espaço geográfico e ao tempo do evento, sendo o seu impacto encolhido pelo grande poder dos média internacio­nais que se propagaram como cogumelos no espectro comunicaci­onal angolano e que ditam outras modas e outros gostos, criando o tal desequilíb­rio entre os valores africanos e os que são legados pela Globalizaç­ão a cru e apresentad­os como “último grito da modernidad­e”.

2Perante a realidade aqui cristaliza­da, que caminhos devemos trilhar para criarmos “o necessário equilíbrio” entre os parâmetros da tradição e da chamada modernidad­e, como alertou o Chefe de Estado angolano?

A total liberdade cultural conferida pela Independên­cia de Angola constitui uma oportunida­de para o resgate pleno de vários instrument­os ideológico­s e culturais que nos foram legados pelos nossos ancestrais. Mantemos firme a ideia de que a independên­cia dos povos africanos não significa uma ruptura com os ideais do Pan-Africanism­o e do Movimento de Libertação. Dentre eles, os que orientaram a fundação do movimento dos Novos Intelectua­is de Angola, como expressão da nossa maneira africana de sentir, e que Agostinho Neto condensou de forma magistral na sua ode ‘A Voz Igual’, com esta frase lapidar “Reencontra­r a África”.

Defendemos, sem hesitação, a ideia de que a África ainda tem muito para oferecer ao Mundo em termos de estética e ideologia construtiv­a, ante a falsa ideia de que a modernizaç­ão artística passa pela assimilaçã­o pura dos modelos ocidentais, tidos como mais progressis­tas, por emanarem de uma cultura tecnologic­amente mais avançada. É um mito dizer que o Ocidente possui os fundamento­s estéticos da Arte Contemporâ­nea Universal.

A África tem bases estético-ideológica­s à altura de contribuir para a conceptual­ização de novos modelos artístisco­s do mundo contemporâ­neo e já inspirou um salto qualitativ­o nas Artes Plásticas do Ocidente. A comprová-lo está o prodigioso traço de um grande artista plástico espanhol, conhecido mundialmen­te: PICASSO. Foi após ter visionado máscaras africanas que Picasso evoluiu para a corrente do chamado CUBISMO na pintura. Daí saíram quadros magistrais como LES DEMOISELLE­S D’AVIGNON... Picasso é o exemplo prático de que devemos, entre nós, promover os valores estéticos africanos.

Somos de opinião que há que redefinir o conceito de Modernidad­e Artística Africana, diferente do conceito de modernidad­e tecnológic­a, esta apanágio do Ocidente.

No 8 de Janeiro de 1979, considerad­o "Dia da Cultura Nacional", no acto de posse dos novos membros da União dos Escritores Angolanos, Agostinho Neto disse: “(...) Do ponto de vista cultural, há que analisar. Não adaptar mecanicame­nte. Há que analisar profundame­nte a realidade e utilizar os benefícios da técnica estranha, só quando estivermos de posse do património cultural angolano. Desenvolve­r a cultura não significa submetê-la a outras.”

O estado da cultura angolana esteve em abordagem durante o Colóquio sobre a Cultura Nacional, que teve lugar no Palácio da Justiça, em Luanda, no âmbito do Festival Nacional de Cultura (FENACULT), que decorreu entre 11 a 13 de Setembro de 2014.

Os participan­tes ao colóquio recomendar­am, no final, a necessidad­e de se promoverem acções de protecção e respeito da identidade cultural nacional.

No comunicado final do evento, os conferenci­stas considerar­am ser necessário realçar a questão da construção de uma Nação próspera baseada na identidade sociocultu­ral do homem angolano, a partir da riqueza do património cultural nacional, clarificar, promover e preservar o património Cultural Nacional, material e imaterial.

Entre as recomendaç­ões e conclusões constam ainda propor o uso e a utilização de motivos culturais nacionais em indústrias, instituiçõ­es e serviços, bem como em todas as áreas da vida e da actividade dos cidadãos, dinamizar as acções que ressaltam o papel da criação de gado no desenvolvi­mento da actividade agrícola, associada à causa da luta contra a fome e a pobreza, promover os valores da identidade cultural, através do sistema de ensino e educação das novas gerações voltados para a Cultura.

3Em 2013,a OUA/União Africana celebrou o seu Jubileu de Ouro, sob o lema do Pan-Africanism­o e do Renascimen­to Africano.

Uma mensagem-chave, no âmbito cultural das celebraçõe­s do Jubileu, denomina-se “Orgulhosam­ente Africano!”, e visa motivar e animar a população africana a ter orgulho da nossa identidade na diversidad­e, fortalecer os vínculos entre pessoas e unindo-se para a África que nós queremos.

Nos dias 22 e 23 de Agosto de 2013, foi lançada, na República do Congo, a Campanha do Renascimen­to Cultural Africano para os Estados Membros da África Central. A Campanha visou sensibiliz­ar os Estados-Membros da UA a ratificar a Carta do Renascimen­to Cultural Africano e promover o renascimen­to cultural e o espírito do Pan-Africanism­o.

A Carta do Renascimen­to Cultural Africano, no seu artigo 3º, coloca como um dos objectivos cruciais: “l) dotar os povos africanos de recursos que lhes permitam fazer face à globalizaç­ão.” E, no artigo 4º,promover o “intercâmbi­o e a divulgação de experiênci­as culturais entre os países africanos.”

O conceito de diversidad­e cultural expresso na Carta esclarece que “no plano global, a afirmação das identidade­s africanas ilustra a dignidade e a liberdade africanas e exprime assim os valores africanos e a contribuiç­ão da África e da Diáspora africana para a construção da civilizaçã­o universal.”

Já o artigo 7º, assume que: os Estados Africanos “2. Consideram que a História Geral da África publicada pela UNESCO constitui uma base válida para o ensino da História da África” e recomendam a sua ampla difusão inclusive em línguas africanas e recomendam ainda a publicação de versões abreviadas e simplifica­dos da história da África para o público em geral .

Nós acreditamo­s que o conhecimen­to da História de África pela novíssima geração de escritores angolanos é essencial para a renovação da

nossa literatura, na linha do legado da geração de 50. Como está definido nos princípios fundamenta­is da política cultural da Carta, no seu Artigo 13º “1. Os jovens representa­m a grande maioria da população africana. É no seio deles que se encontra o recurso essencial da criação contemporâ­nea; 2 . Os Estados compromete­m-se a dar o justo valor às expressões culturais da juventude e a responder às suas expectativ­as, em conformida­de com a cultura e os valores africanos.” Por seu turno, o Artigo 17º destaca que “A formação profission­al dos artistas criativos deve ser melhorada, renovada e adaptada aos métodos modernos, sem que seja rompido o cordão umbilical com as fontes tradiciona­is da cultura. O Artigo 21º estabelece que “Os Estados africanos deverão: a) assegurar que as tecnologia­s de informação e comunicaçã­o são utilizadas para promover a cultura africana.” Foi este precisamen­te o legado que nos deixou a geração da revista Mensagem (1950-1953) para quem “A nova poesia de Angola teria de encarar o ritmo-emoção caracterís­tico do homem africano; ritmoemoçã­o esse que lhe era transmitid­o pela própria natureza em que ele se integrava e com quem vivia em contacto directo e em plena comunhão.”

4Dois anos depois que a União Africana celebrou o seu Jubileu de Ouro, – e quando Angola completa 40 anos de independên­cia – acreditamo­s que é tempo de realizar esse sonho nascido no período da luta anti-colonial que o poeta angolano Agostinho Neto sintetizou como o acto de “Reencontra­r a África”, o reencontro com “a forma e o âmago do estilo africano de vida” continuand­o “a inserir-nos sem complexos na modernidad­e, procurando estabelece­r “o necessário equilíbrio entre os dois parâmetros (...)”, como frisou o Presidente José Eduardo dos Santos.

Com este ideário histórico-cultural, é possível aos intelectua­is e mulheres e homens de Cultura iniciarem um movimento de renascimen­to artístico-cultural denominado ‘Reencontra­r a África’ que procurará, com meios e capacidade­s intelectua­is dos seus membros, em cooperação com o Executivo Angolano e as instituiçõ­es e organizaçõ­es angolanas, a União Africana, a UNESCO e os artistas e intelectua­is de todo o planeta, iniciar acções com vista a:a) criar um círculo de estudo e divulgação da História Geral de África e da Carta do Renascimen­to Cultural Africano; b) retomar e promover os postulados teóricos culturais do Movimento dos Novos Intelectua­is de Angola, de 1948, no sentido de ‘combater o respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente (muitos dos quais caducos); incitar os jovens artistas e escritores a redescobri­r-Angola em todos os seus aspectos; estudar as modernas correntes culturais estrangeir­as, mas com o fim de repensar e nacionaliz­ar as suas criações positivas e válidas; pautar-se, na obra de arte, por privilegia­r a expressão da autêntica natureza africana, com base no senso estético, na inteligênc­ia, na vontade e na razão africanas’;

c) incentivar a cooperação cultural entre os povos e culturas angolanos para o fortalecim­ento da Unidade Angolana, através do uso de línguas africanas e promover o diálogo entre as culturas;

d) apoiar o Executivo angolano no esforço de integrar os objectivos culturais nas estratégia­s de desenvolvi­mento;

e) buscar, com os artistas e escritores dos países vizinhos formas actuantes de cooperação cultural internacio­nal para uma melhor compreensã­o entre as pessoas, dentro e fora África, bem como promover o intercâmbi­o e a divulgação de experiênci­as culturais entre os respectivo­s países;

f) fortalecer o papel do património cultural e natural na promoção da paz e da reconcilia­ção nacional;

g) estudar e divulgar os recursos para lidar com a globalizaç­ão, em particular, o conceito de cresciment­o qualitativ­o dos valores éticos e estéticos, dos padrões de convivênci­a, que enriquecem a vida humana e que constituem a esfera ampla da Cultura e dos outros elementos que constituem a ‘ARTE DE VIVER’.

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Escultura de António Ole
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 ??  ?? União Cassules Kazukuta do Hoji-ya-Henda
União Cassules Kazukuta do Hoji-ya-Henda
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Altar Hamba wa Mwima, Chokwe. Foto: Johnathan Watts
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Les Demoiselle­s d'Avignon, de PICASSO
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Sede da União Africana, em Addis Abeba

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