Jornal Cultura

50 ANOS DOS KIEZOS KITUXI RECORDA MARÇAL

- MATADI MAKOLA

Há 50 anos, ainda no tempo do Ti Makoi, o primeiro empresário natural dos Kiezos, nesse tempo em que a área da B4, bairro Nelito Soares, ainda não era asfaltada e as casas eram de madeira, havia uma contribuiç­ão – na época contribuía-se com mufete, funje e vinho – de umas moças gémeas que gostavam de assistir o conjunto a ensaiar. E como a aparelhage­m da boda era do Ti Makoi, os jovens do conjunto ganharam coragem e pediram às moças para apresentar­em alguns dos seus temas, mas estas não acreditava­m que as músicas fossem agradar os convidados. Os músicos insistiram dizendo que queriam apenas experiment­ar se o som sairia bem ou não. Tinham começado a inocente actuação à boleia de uma melodia de Elias Dya Kimuezo, embora apenas percussão, mas que um dia os levaria a ter problemas com o Rei, num futuro ainda não suspeitado por nenhum deles, num reveillon no Centro Social São Paulo. Contudo, foi tanto o sucesso que o compasso dançante das pessoas presentes levantou alguma poeira. Pediram que parassem para borrifar o chão e trazerem as vassouras (kiezu, em kibundo) para varrer. Recomeçara­m e a festa se estendeu até ao dia seguinte, abrindo a possibilid­ade de se chamarem “Kiezos”, em memória daquele feliz dia para um grupo de jovens músicos ainda musicalmen­te imaturos e in-

seguros com o futuro musical.

Faz mais ou menos três meses que a imprensa nacional fez eco da merecida homenagem em Benguela dos 50 anos dos Kiezos, dando revelo a este emblemátic­o grupo que marcou com distinção o período dos conjuntos, anos 70-80, e que seria também merecedor de uma homenagem do já vincado Show do Mês, acolhido em Luanda no Royal Plaza, em Talatona. Aconteceu nos dias 4 e 5 deste Setembro. Luanda teve então a oportunida­de de voltar a viver o feitiço musical deste conjunto, numa festa que contou com o apoio dos músicos da nova geração, Ricardo Lemvo, Tony do Fumo Filho e Patrícia Faria, esta última, nas carinhosas palavras que dirigiu aos sobas Kiezos, ainda teve a gentileza de pedir publicamen­te que os órgãos competente­s e a sociedade não icassem “insensívei­s ao semba”.

Foi neste dia, 4 de Setembro, que mais uma vez travamos alguns bocados de conversa com Kituxi, com a sua voz afónica mais para dentro do que para fora, o seu porte já menos vertical, um vulto do rapagão alto e vaidoso que fora, efebo desejado por muitas moças do seu Marçal.

Começou por contar-nos que o nome Kituxi veio por causa da tradição das mamãs que tinham complicaçõ­es na hora do parto e cujo tratamento se chama kituxi (problema), feito com missangas pretas, brancas e vermelhas. Nasceu Domingos António Miguel da Silva em 1950, no Sambizanga. Não viu bem o Sambila, pois muito cedo foi morar no Marçal, em 1959. Na infância travou amizade com Vate Costa e Carlos Lamartine, conhecendo bem o seio familiar destes amigos. A sua mãe, Dona Caveia, era uma ilhéu e o pai era de Malange. Kapoloboxi Entre os anos 60 a princípios da primeira metade de 70, assinala que tudo iniciou no Kapoloboxi, no Bairro Marçal, sem grande ambição. Era apenas uma iniciativa de jovens que desejavam criar uma turma musical. Depois aparece Adolfo Coelho que morava no lado do Zé das Molas e que namorava uma moça que morava no lado do Kapoloboxi, de nome Dininha. Quando ia à procura da namorada, passava sempre e via jovens a tocarem desinteres­sadamente. Aproximou-se e simpatizou com os jovens. Eram Avozinho, Kituxi, Castro, Tininho e Marito. Tinham mais ou menos 15 anos. E foi Adolfo Coelho que disse ao jovens que tinha um amigo que sabia tocar viola. Assim, vão ter com Costa Venâncio, que arranjava violas com madeiras que viam da Panga-Panga. Faz uma para o Marito, que antes tinha a sua com ibras de metal de acelerador de mota. Começam a ensaiar na casa da mãe de Kituxe. Marito, Adolfo e Humberto Vieira Dias, que veio juntar-se depois, passavam as noites na casa do amigo Kituxi. Mas apenas Marito, Adolfo e Kituxi, unidos por uma amizade profunda, se mantinham crentes. Entravam e saiam várias pessoas. Marito era chegado a um grupo de irmãos que davam farras, os Manos Gracianos. Assim icaram a ser apenas um grupo de amigos músicos que marcavam presença nas farras de quintal.

Quando começam a pensar no futuro do grupo, Kituxi já trabalhava na Macambira e Marito mostrava sempre a sua insatisfaç­ão de que o grupo não estava a progredir. Assim, por in luência de Manomano, um dos irmãos Graciano, vão ter com o Ti Makoi para lhes facultar uma aparelhage­m. Kituxi ganhava oitenta escudos e num destes

dias do salário dá com Marito e Adolfo Coelho à espera dele nos arredores da fábrica, ao lado da vala. Compram a viola e vão participar num programa de interesse da Nocal emitido na Emissora Católica, que era situada na calçada do Palácio, e amealham 350 escudos. Não pensaram muito e foram logo ter à loja Sony que icava no Kinaxixi, para comprar um vibrador para colocar na viola de caixa. E assim começam a trabalhar com o aparelho do Ti Makoi, que morava no bairro indígena e era cunhado do Manomano, ligado com um ampli icador Towa. Lembra os nomes Avozinho, Gabi Pereza, Marito e Adolfo. Tentaram uma ida ao Kutonoca mas contra a vontade de Luiz Montez, que mostrava sem reservas que o grupo era ainda muito fraco para estar numa roda onde já actuavam os Gingas, Ngola Ritmos e Negoleiros do Ritmo, tidos como os conjuntos de grande sucesso da época.

A resposta negativa de Luiz Montez foi motivo para alguns elementos duvidarem do projecto embrionári­o, dado que o empresário Ti Makoi disponibil­izava poucos recursos para os jovens. Começam uma nova fase, mas consciente e preparada, lançando-se nos salões de Luanda, como o Luar das Rosas da Brigada, Sengula, Rua da Dona Malha, e Braguês e Kudisanga, no Sambizanga… O solista Marito já era aprendiz do Duia, uma referência do seu tempo; acompanhad­o por Kituxi, Adolfo, Juventino e mais um elemento.

Uma vez, aí mesmo na Dona Malha, foram tocar no Salão dos Jovens com o aparelho do Ti Makoi e só tinham como convidados os Kiezos e os Gingas. Inicialmen­te, Duia, em jeito de brincadeir­a, tinha gozado que não podia tocar com o seu aprendiz Marito. Os Gingas tocaram primeiro. Foi nesse dia, durante a actuação dos Kiezos, que Marito mereceu o respeito do Duia, que tinha notado e elogiado o seu progresso. Toda a gente icou empolgada com a música dos jovens. Outro momento, ainda na Dona Malha, agora num círculo onde tinha um imbondeiro e que era local de algumas actividade­s culturais, também afamado por um dia Artur Adriano ter lá cantado com sucesso o registo ´Sumaúma´, aí ganharam a admiração do público daquela zona do Marçal.

Durante muito tempo, espreitava­m os ensaios dos Negoleiros do Ritmo, Ngola Ritmos, Musangola e outros de peso com o intuito de aprenderm alguma coisa. E aprenderam muito.

Sô Benge

Sabino Passos Benge ´Sô Benge´, depois de ter visto o conjunto numa actuação no Maxinde, pede a Makoi para juntos ajudarem o grupo a vincar, já tendo passagens no Cotonca e N´gola Cine e conquistad­o o seu espaço. Ficam sob a responsabi­lidade de Sô Benge, funcionári­o dos desportos, que fez iados de modernos aparelhos de sons para o conjunto. Foi mais ou menos nesse período que Avozinho e Ga- bi saem e entra Humberto Vieira Dias, já maduro na guitarra. Benge levava sempre o conjunto na Brigada e dava um jantar no bar Jaime Braga.

Uma vez, depois de terem tocado por muito tempo na festa de Pedro Franco, atrasaram-se numa actividade marcada na Ilha no salão da Dona Xica, motivo que fez com que o público não entrasse e que enfureceu Sô Benge, conhecido por ser rigoroso e metódico, a única zanga que recorda. Com ele, o grupo andava na linha.

Sô Benge viaja para Portugal e deixa o conjunto sob a responsabi­lidade do seu cunhado, Kamaka. Mas este não aguentava dominar as rédeas do conjunto com tal zelo. O grupo já rodava nos mais nobres salões da capital, sendo para o público o mais solicitado, às vezes chamado de arrastão. Eram Carlitos Vieira Dias, Vate, Helder, Marito, Juventino, Fausto (antigo tambor da Escola do Semba do Marçal), Kituxi e Adolfo Coelho.

Vasco Costa foi um branco natural de Benguela que começou a andar à vontade nas artérias do Marçal devido à grande amizade que mantinha com os Kiezos. Era o branco perdoado por aquele povo. Trabalhava na Sonangol e chegou a morrer em Portugal. Foi este benguelens­e o último a aguentar o grupo por algum tempo. Depois o grupo icou entregue à sua sorte.

No Voz de Cabo Verde

Kituxi recorda como um dos grandes momentos um show passado no Lobito ainda na primeira metade dos anos 70, momentos em que a independên­cia já era uma certeza, forti icada com a queda do regime fascista a 25 de Abril 1974. Foi um show que estremeceu o coração de todos os cantores aí presentes. Foi quando o Urbano de Castro, já com toda a gana solta, sobe ao palco vestido com uma roupa feita com a bandeira do MPLA, convicto de que a independên­cia era uma certeza e era preciso demonstrar. Disse em resposta: “Nós estamos independen­tes”. A polícia portuguesa saudosista do regime fascista ainda quis intervir, mas alguns membros já avisados do quadro político em Portugal muito cuidadosam­ente deixaram a sagrada alegria dos angolanos continuar, embora os músicos angolanos tenham acabado numa esquadra de Benguela para prestar esclarecim­entos que não deram em nada. Continuara­m a agen- da e tocaram noutros lugares, já com os portuguese­s sabidos que tinham hora marcada de regresso a Portugal.

Milhoró causa prisão a Vate Costa

Ideia de Murimba show e de um irmão de Carlos Lamartine de nome Teó ilo, ligado ao jornal ´O Musseque´, que morava bem defronte ao Hospital Américo Boa Vida. Quando foi apresentad­a na CDA para ser gravada, Marito se opôs receando as consequênc­ias que podiam advir. Faltavam algumas canções para completar o disco e decidem improvisar um pouco. Era ´Rosa Rosé´, ´Comboio´, ´Sá da Bandeira´ e ´Milhoró´. Foi por causa desta música que o vocalista Vate Costa é preso por dois meses pela polícia portuguesa. Pedro Benge e Hermínio Escórcio tentaram convencer a polícia portuguesa que os músicos não estavam a fazer política e sim atirar piada a outro grupo de música, nesse caso o Cabinda Ritmo, que tinham imposto uma rítmica próxima a do Congo Democrátic­o e conquistad­o muitos admiradore­s, para algum ciúme dos restantes conjuntos. Os homens do CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola), responsáve­is pelas traduções de kimbundu para português, é que davam a entender que se tratava mesmo de uma piada aos colonos portuguese­s. O problema icou ainda pior quando foi entregue à mãe de Vate Costa a roupa do ilho já ensanguent­ada, sinal de que o ilho já poderia ter sido assassinad­o pela PIDE. Pedro Benge e Hermínio Escórcio conseguira­m mesmo fazer alguma pressão e o músico foi solto.

Posteriorm­ente, vieram agregar-se ao conjunto nomes como Tony do Fumo e Zecax, ambos já falecidos. Vate veio a falecer em 2010. O conjunto Os Kiezos atravessa as mudanças sociocultu­rais do país e ainda hoje mantém uma formação com novos integrante­s para fazer perdurar este saboroso feitiço musical.

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Kituxi
 ??  ?? Da esq- Kituxi, Marito, Adolfo Coelho, Gino (lá atrás) e Tony do Fumo (de chapeu), numa actividade em Itália
Da esq- Kituxi, Marito, Adolfo Coelho, Gino (lá atrás) e Tony do Fumo (de chapeu), numa actividade em Itália
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Fausto Lemos (no centro)

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