Jornal Cultura

DIÁSPORA E RESPIGO DA IDIOSSINCR­ASIA ANGOLANA

- MÁRIO ARAÚJO

A de inição do ser angolano implica, inexoravel­mente, o reconhecim­ento da contribuiç­ão das históricas vicissitud­es experienci­adas pelos angolanos, para aquilo que nós somos: povo com caracterís­ticas peculiares.

Atentemos que a idiossincr­asia que hoje evidenciam­os começou a ser burilada no espírito guerreiro da ancestralm­onarquia (de que NgolaKilua­nji, NzingaBand­i e Lueji são iguras arquétipas). Posteriorm­ente, a nossa génese foi temperada pela convivênci­a secular com o povo português. Na contempora­neidade, iniciada com a fase pós-independên­cia, apresentam­os uma mescla de temperamen­to, costumes, valores e tendências que é o repositóri­o das metamorfos­es pelas quais os angolenses passaram.

Assim, das multifacet­adas peripécias vivenciada­s por milhões de angolanos, no decurso da sua História, propomo-nos abordar a diáspora, por nos parecer incontorná­vel nesse percurso identitári­o.

Nesta conformida­de, a odisseia, a seguir narrada, relata a quebra de uma vivência harmoniosa pelo êxodo populacion­al ocorrido na segunda metade da década de setenta.

É um tempo de alegria infantil, angústia adulta e de amargura e choro para muitas famílias aqui residentes.

UMA VIDA COMUM

A vida dos ilhos do casal Sousa segue o ritmo de outrora: Jaburu e Zezinha já a trabalhar, e os restantes a estudar; Gininho, Índio e Natalício na Escola Preparatór­ia João Crisóstomo, Tozé e Quelinha numa Escola Primária perto de casa. É uma vida comumà da maioria das famílias luandenses: durante a semana, os ilhos estudam e, aos insde-semana, frequentam a catequese, assistem à missa, vão à praia, ao cinema ou dar um passeio com os respectivo­s encarregad­os de educação.

Para comemorar as respectiva­s passagens do ano lectivo, Natalício e os irmãos combinam uma ida às Piscinas de Alvalade. Depois de realizadas as obrigatóri­as tarefas domésticas, preparam o lanche.

Chegados à estância balnear, os ir- mãos mais velhos acantonam-se na zona destinada aos adultos, ordenando ao mais novo que se banhe no espaço dedicado aos infantis.

- Porquê que eu tenho que icar afastado de vocês? - Pergunta, revelando não contar com esta confranged­ora determinaç­ão.

Direcciona­ndo a sua atenção para as pranchas, os manos não lhe respondem, e aquele caminha para o destino ordenado, contrariad­o.

De longe, Natalício observa os mergulhos dos manos crescidos, enquanto chapinha com outros meninos ainda mais novos.

- Também quero tomar banho aqui! – Diz Natalício, em voz alta, aos irmãos, enquanto observa, de perto, as suas acrobacias.

- Não podes icar connosco porque tu ainda não sabes nadar, e este lado é fundo! – Dispara o Índio, ao preparar mais um salto. - Mas daquele lado só tem bebés! - Vai prò sítio que te indicamos e não nos arranjes problemas! – Sentencia, profeticam­ente, o Jaburu, saído das profundeza­s da apetecível água.

- Não quero! Vou sentar-me aqui, nas escadas, e só molho os pés!

- Então segura-te bem para não caíres para a água! – Apazigua o Gininho, depois de ter nadado em todo o compriment­o da piscina.

Dando o assunto como encerrado, Jaburu, Gininho e Índio vão disputando perícias de mergulhado­res.

A dado momento, Jaburu, alertado pela responsabi­lidade constante e inerente à sua condição de comandante, pergunta: - Onde está o Natalício? Repentina e simultanea­mente, os irmãos olham para a toalha do desapareci­do, deixada desleixada­mente na berma da piscina. Instintiva­mente, mergulham para o fundo da azulada água.

- Não o encontrei! – Diz o Índio, emergindo para respirar.

- Eu também não! – Responde o Gininho, depois de ter procurado, a nado, em torno da piscina.

Nisso, ambos os irmãos também deixam de ver o mano mais velho, o que lhes aumenta a angústia.

Uns segundos depois, Gininho e Índio, já sem saberem o que fazer, observam o Jaburu a trepar os degraus da escada com o mano mais novo debaixo do sovaco do braço esquerdo!

Estendem-no, ao comprido, na toalha, e repetem a operação de retirada da água do estômago, efectuada em 1969, no episódio das mabangas, na praia da Corimba!

ÊXODO

Nesse ano de 1975, confrangid­as pela convulsão social iminente, milhares de famílias abandonam o país, refugiando-se em destinos díspares, como Portugal. O êxodo é realizado de automóvel para a Namíbia e África do Sul, por exemplo; por barco ou por meio de uma ponte aérea criada para esse propósito.

Os que viajavam de avião, permanecia­m acantonado­s no aeroporto, durante alguns dias, esperando pela vez para o ansiado embarque. Os voluntário­s da Cruz Vermelha Portuguesa desdobrava­m-se na distribui- ção de mantas cinzentas, que iam servindo de colchão sobre as lajes frias dos corredores.

No espaço de jurisdição do aeroporto, reinava um clima de absoluta inseguranç­a!

Assim se encontrava Dona Lurdes, com cinco dos sete ilhos. O pai Zé visitava-os, ao im do dia, para indagar necessidad­es e refrear temores.

Cada passageiro apenas tinha direito a transporta­r vinte quilos, pelo que o peso remanescen­te seguia via marítima, sem a certeza de o receberem numa terra que era totalmente desconheci­da para a maioria dos refugiados.

O êxodo de milhões de pessoas constituiu, de facto, uma odisseia prenhe de dor, incerteza e determinaç­ão.

Dentro do “barriga-de-jinguba”, da Força Aérea Portuguesa, Natalício vence os irmãos na disputa por um lugar perto de uma das poucas e minúsculas janelas!

Junto à sua, empreende viagem outra família angolana composta pela mãe e dois ilhotes. Inicialmen­te, a jovem mãe senta-se no lugar do meio, certamente, para aplacar as habituais e, por isso, previsívei­s traquinice­s entre os irmãos. A previsão revelou-se acertada quando o ilho mais novo, assentado numa das pontas da correnteza de bancos, começou a reivindica­r o banco junto à janela! Perante a insistênci­a deste e a recusa do mais velho em ceder o seu apreciado lugar, a paciente progenitor­a troca de bancos com o benjamim, icando, desta forma, os dois manos juntos, e perto de Natalício.

Resolvida a contenda dos lugares,

começa a bateria de perguntas:

- Mamã, quando é que o avião começa a andar? Porque é que as pessoas todas estão a apertar os cintos?

- Cala-te, Chiquinho! Estás a incomodar os outros passageiro­s!

Entretanto, o pequeno Natalício, apercebend­o-se da similarida­de entre as duas famílias, aguarda por uma oportunida­de para encetar conversa com o potencial amigo.

Em pleno trajecto de descolagem, ouve-se o brado do Chiquinho:

- Lá em baixo os carros parecem formiguinh­as!

- E as motas quase que não se vêem! – Acrescenta Natalício, recebendo do companheir­o de lugar um aceno de aprovação.

A manhã está linda. O avião segue a sua rota paci icamente, ensanduich­ado entre duas camadas de locos de nuvens brancas.

Após uma breve pausa, provavelme­nte para municionar mentalment­e as in initas questões, Chiquinho volta à carga: - Qual é maior: Angola ou Portugal? - É Angola! – Responde garbosa e apressadam­ente Natalício, deixando antever conversas havidas no lar antes da viagem.

Os restantes passageiro­s vão-se levantando, uns para conversare­m com familiares ou amigos afastados dos seus lugares, outros para engrossare­m a ila para a rudimentar toilette.

- Mãe, o avião vai descer em Portugal ou em Lisboa? – Pergunta Natalício, enquanto observa os seus manos conversand­o entre si.

- As duas coisas estão certas, ilho! Lisboa é a capital de Portugal.

- Capital? O que é isso?! – Questiona, franzindo a testa.

- Qual é a cidade mais importante de Angola? – Interpela a adulta, pedagógica e maternalme­nte.

- É Luanda! – Responde celerement­e Natalício, recordando-se do comprido ponteiro com que a professora ensinava geogra ia.

- Pois, então, a cidade mais importante de Portugal chama-se Lisboa!

- Eu pensava que Portugal era Lisboa e que Lisboa era Portugal!

- Pensa na nossa casa que acabamos de deixar em Luanda. Só tem uma sala ou também tem quartos?

- A nossa casa ébué da grande – contando pelos dedos - tem uma sala, o quarto dos rapazes, o quarto das meninas, uma varanda e, no quintal, está a cozinha, tem plantas e é onde dorme o nosso cão!

- Então, faz de conta que a nossa casa é um país, e que tem o nome de Portugal. Está bem? - Sim! - Vamos fazer de conta que a sala, cada um dos quartos, a cozinha, a varanda e o quintal da casa são as várias cidades que estão dentro de Portugal!

- Quer dizer que o avião vai parar na parte da casa que se chama Lisboa?

- Acertaste! – Explode emotivamen­te a mãe Lurdes, por ter ajuda- do o filhote a arrumar geografica­mente a mente.

Em Portugal, as manhãs de Outubro costumam acordar frias e nubladas. Foi este cenário com que os passageiro­s se confrontar­am ao pisar o solo lisboeta.

A situação de angústia e desconfort­o vividos, nos últimos dias, no Aeroporto de Luanda, perpetuara­mse no Aeroporto da Portela.

O espaço estava permanente­mente pejado de pessoas, deambuland­o de um lado para outro, constantem­ente à procura de alguém ou de alguma coisa; os recém-chegados espraiavam-se, por nichos familiares, sentados ou deitados no chão dos largos corredores; de vez em quando, os altifalant­es procuravam pelo paradeiro dos familiares de alguma criança.

Além disso, três preocupaçõ­es fustigavam os chefes de família: o achamento das suas malas; a troca de moeda e o local de destino para a sua família.

A bagagem que acompanhar­a os passageiro­s fora depositada num enorme hangar, arrumada sem qualquer critério nem organizaçã­o! Quem se deslocasse ao armazém, para resgatar os seus pertences, deparava-se com uma confusão babilónica!

Após buscas esforçadas, demoradas e dolorosas, Dona Lurdes achou as suas, tendo contado com o auxílio precioso dos ilhos Gininho e Índio.

Depois de se vencerem as intermináv­eis, e ruidosas, ilas, a troca de dinheiro era feita, no aeroporto, cujo máximo trocável variava de acordo com o agregado familiar, que era comprovado pela apresentaç­ão da Guia de Desembaraç­o!

RETORNADOS

A terceira etapa implicava suportar ilas igualmente compridas e barulhenta­s, para aceitação do local de acolhiment­o. Natalício e os irmãos revezavam-se na ileira, sob supervisão da mãe.

Ao im de três dias de acantona- mento, Dona Lurdes escolheu o Complexo Turístico da Torralta, em Tróia, aconselhad­a pelo retornado Pina, que conhecera quando este fazia parte da polícia montada que empreendia rusgas ao Bairro do Golf.

Economicam­ente, a chegada de retornados e desalojado­s a Portugal constituiu uma “injecção de capital” nos sectores de hotelaria e de restauraçã­o que se encontrava­m em agonia financeira.

É nesta conjuntura que se insere o alojamento dos recém-chegados em hotéis e estâncias turísticas como, por exemplo, o Hotel Esperança, em Setúbal e o resort em Tróia.

Esta península estabelece ligação, por terra, entre as diversas praias de Tróia e as localidade­s limítrofes: Comporta, Melides, Carvalhais e, mais distante, a revolucion­ária Grândola, todas pertencent­es à costa vicentina alentejana.

Tróia goza da agradável peculiarid­ade de constituir um espaço híbrido de natureza primitiva e de respigos de cidade. Com efeito, a presença massiva de arvoredo, quer em forma de árvores frondosas quer por meio de arbustos, é secundada pela permanente, e iníssima, areia branca, espalhada por toda a extensão da península, espraiando-se até às margens do Oceano Atlântico por um lado, e do Rio Sado, do lado da cidade bocagiana.

A existência circundant­e de água salgada atenuou o impacto social da vivência nesta terra de exílio, porquanto os ilhos da Dona Lurdes chegavam habituados às praias luandinas, fazendo, por isso, romarias diárias ao mar troiano. Porém, esses passeios marítimos deixavam a senhora em permanente a lição, numa fase da vida em que se encontrava só, sem o apoio dos ilhos maiores nem do marido, permanecid­os em Luanda.

Periodicam­ente, os chefes de famílias deslocavam-se aos serviços do Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais (IARN), em Lisboa, a im de tratarem de assuntos multifacet­ados, como a compartici­pação em despesas com a saúde e pedido de transferên­cia para locais de acolhiment­o para onde foram enviados os seus parentes - separados à chegada a Lisboa.

Numa manhã, após ter suportado, ao relento, a dureza da comprida ila, durante três dias seguidos, um senhor diz à Dona Lurdes:

- Por favor, guarde o meu lugar, que eu vou só dar um saltinho a um café para comprar alguma coisa, pois desde ontem que não como nada!

- Mas não se demore, porque o funcionári­o já deve estar a chegar para actualizar a lista dos nomes daqueles que estão nos primeiros lugares da ila! – Avisa, prudenteme­nte, a desalojada vinda de Tróia, enquanto ajeita o pedaço de papelão onde está sentada.

- Não, não me demoro. Vou trazer o farnel embrulhado para regressar mais depressa! – Esclarece já em andamento.

Todavia, ainda não tinham decorrido três minutos desde que o senhor se ausentara, um funcionári­o, de aspecto grave e sério, aparece e faz o levantamen­to das primeiras dezenas de pessoas presentes na frente da ila.

Dona Lurdes já está a ser atendida, quando o faminto senhor chega, mas apercebe-se da indicação do severo funcionári­o de que o desalojado deve voltar para o im da ila e aguardar a vez para ser atendido, o que pressupõe permanecer em Lisboa para mais dias de angústia!

Nessa época, a população portuguesa encarava de modo diferente os dois tipos de pessoas vindas das excolónias. Os portuguese­s, nunca saídos de Portugal, eram cáusticos para com os seus conterrâne­os – os autênticos retornados - a quem acusavam de terem fugido de África, depois de terem explorado e molestado os pretos durante anos a io.

Comparativ­a e paradoxalm­ente, os

 ??  ?? Beijando o solo pátrio
Beijando o solo pátrio
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? Escultura de Mangovo
Escultura de Mangovo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola