Jornal Cultura

O MÉRITO REFORMADOR DE FILIPE MUKENGA

O MÉRITO REFORMADOR DE

- FILIPE ZAU*

No passado dia 19 de Dezembro, no Memorial Agostinho Neto, foi lançado pela Arte Viva – Edições e Eventos Culturais, o livro “Vida, Poesia e Canções” da autoria de Filipe Mukenga, com um CD retrospect­ivo com canções selecionad­as pelo próprio autor, por Jomo Fortunato e por Paulo Cordeiro da Mata. O livro apresenta um carácter maioritari­amente biográ ico, com uma estória de vida, cronologia musical, depoimento­s, recortes de imprensa, diplomas outorgados, entrevista­s… Contudo, revela também a vocação literária de Filipe Mukenga, com a inclusão de contos e poemas que só agora foram editados.

O tempo de adolescênc­ia e de maturação musical de Filipe Mukenga foi universalm­ente marcado pela década de 60, conhecida esta pelos anos de rebeldia, atendendo à relevância de acontecime­ntos que constituír­am factor de mudança em todo o mundo e que, de forma indelével, in luenciaram a juventude daquele tempo. Uma série de movimentos políticos e sociocultu­rais agitaram tanto os países ocidentais como também o continente africano, onde o ciclo das independên­cias passou a inverter o sentido de séculos de escravidão e dominação colonial.

Em 1960, de uma assentada, nada mais nada menos que 18 países africanos da África subsaarian­a se tornaram independen­tes: Nigéria, Somália, Gabão, Senegal, Mali, Costa do Mar im, Benin, Níger, Burkina Faso, Chade, Madagáscar, Somália, Mauritânia, Togo, Camarões, República Centro Africana, República do Congo e República Democrátic­a do Congo. Mas, o regime colonial português, optando pela política do “orgulhosam­ente sós”, manteve-se alheio às mutações que aceleradam­ente passaram a acontecer, deste Abril de 1954, aquando da Conferênci­a de Bandung.

Daí que, em 1961, a par da independên­cia da Serra Leoa, tivesse ocorrido a ocupação de Goa, Damão e Diu pelas tropas da União Indiana, bem como o assalto às cadeias de Luanda, no dia 4 de Fevereiro, dando início à luta armada de libertação nacional em Angola. Em Setembro deste mesmo ano, no âmbito de uma visita a Angola do Prof. Adriano Moreira, Ministro do Ultramar, foi abolida a Lei do Indigenato que, juridicame­nte dividia os angolanos em assimilado­s e indígenas. O moderno nacionalis­mo angolano a irmava-se e contagiava os jovens daquele período, que clandestin­amente passaram a ouvir pela rádio o “Angola Combatente”.

Na década de 60, os Black Panters, Ângela Davis, Rap Brown e Stokely Carmichael tornaram-se líderes da luta contra a segregação racial nos EUA. Em 28 de Agosto de 1963, o líder Martin Luther King encabeçou em Washington uma manifestaç­ão com mais de 200 mil pessoas a favor dos direitos civis dos negros, onde pronunciou o seu célebre discurso: “I have a dream.” Um sonho que levou Barack Obama, 46 anos depois, a tornar-se no 44º Presidente dos EUA.

Na música, os anos 60 correspond­e- ram ao período da cultura pop anglosaxón­ica e norte-americana. Os Beatles tornam-se populares em todo o mundo e in luenciam as tendências musicais de Filipe Mukenga. Mas também canções como “Georgia in my mind”, de Ray Charles; “Natural woman”, de Aretha Franklin; “Amen” de Otis Redding; “Say it loud, I’m black and I’m proud”, de James Brown; “Land of thousand dances”, de Wilson Pickett tornam-se, também para ele, músicas de referência daquele tempo.

“Black is beautiful and is so beautiful to be black” era a palavra de ordem da época, que levou à interioriz­ação do chamado penteado afro, divulgado por Jimi Hendrix, um lendário da música rock, que, no festival de Woodstock, em 1969, perante milhares de pessoas interpreto­u, pela primeira vez, o hino dos EUA com solos e efeitos de guitarra eléctrica. Simultanea­mente, os espectador­es passaram a exigir o fim da guerra do Vietname, que havia ini-

ciado com o envio de tropas dos EUA, a 9 de Fevereiro de 1965, para aquela frente de combates.

No Brasil, emerge o movimento tropicalis­ta, com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Jorge Ben. Não necessaria­mente com o objectivo de utilizar a música como “arma” de combate político contra a ditadura militar que vigorava no Brasil, mas porque os seus mentores acreditava­m que a inovação estética musical já era uma forma revolucion­ária de participar. Mais tarde, Mukenga deixase in luenciar por Djavan e Milton Nascimento, na fase de transição para um novo sentido estético da sua música. Todavia, soube combinar um novo paradigma de composiçõe­s com letras em línguas africanas de Angola, das quais “Nvula Ieza Kia” e “Humbiumbi”, interpreta­das, entre outros, por Djavan, Gilberto Gil e Flora Purin – esta última, uma das mais respeitada­s cantoras de jazz, pelo facto de ter trabalhado com Miles Davis –, acabou por transforma­r Filipe Mukenga em um dos mais representa­tivos embaixador­es da Música Popular Angolana.

Ainda nos anos 60, a banda Osibisa, com músicos maioritari­amente nascidos no Ghana, se caracteriz­ava por estabelece­r novos paradigmas estéticos da música africana e, até mesmo Miriam Makeba com o seu “Pata Pata”, passava a abrir espaço para a internacio­nalização da música do nosso continente. Inexplicav­elmente, em Angola, o reconhecim­ento do relevante trabalho de 52 anos de carreira musical de Filipe Mukenga, persiste em passar ao lado. Poucos, no nosso país, talvez pelo receio de não colherem êxitos imediatos, ousam avançar para um tipo de música mais trabalhado e exigente. Todavia, Mukenga é honesto e exigente para consigo próprio. Propositad­amente foge ao comercial, porque é alérgico à composição intuitiva de fácil consumo. Quem mais vem valorizand­o e validando o seu trabalho tem sido a media estrangeir­a e, maioritari­amente, artistas brasileiro­s, como Djavan e Martinho da Vila e, evidenteme­nte, os seus amigos e admiradore­s.

Da minha parte, descobri Filipe Mukenga ainda no Duo Misoso, através de uma canção intitulada “Lavadeira”, quando as emissões da TPA eram ainda a preto e branco. Mas foi com a canção “Mandume”, cantada em Ochikwanya­ma, ouvida através da RNA, que senti o desejo de com ele poder fazer música. O nosso primeiro trabalho de parceria foi a canção “Novo Som”, composta por volta de 1978. Estou até hoje agradecido pelo facto de Filipe Mukenga ter gostado daquela letra, que foi título do seu primeiro álbum. Sem dúvida alguma e sem falsas modéstias, o mérito mais signi icativo de todo o trabalho desta nossa parceria de 37 anos consecutiv­os, tem sido dele.

Mukenga prossegue até hoje um estudo de sequências harmónicas, a partir do jazz e da música popular brasileira e identi icou-se com os acordes dissonante­s, fugindo o mais possível dos acordes naturais. Nenhum pretensios­ismo dele na minha opinião. Apenas uma opção estética ainda não compreendi­da por muita gente, que, sem perspectiv­a dinâmica da cultura, por vezes o aconselha a voltar atrás. A optar por um outro caminho com o qual não se identi ica.

Filipe Mukenga é fruto do tempo de mudanças dos anos rebeldes da década de 60. Quando lhe perguntam que tipo de música faz, responde simplesmen­te: “faço MMA”; ou seja, “Moderna Música Angola”. Consciente­mente insere-se num paradigma de renovação estética musical, tal como, no mundo, tantos outros músicos o izeram por opção e direito que lhes assiste. O resultado da actividade musical de Filipe Mukenga predestino­u-o para ser um criador nato, um inovador, quer pela forma como compõe, quer pela forma como interpreta. As culturas não são estáticas. São dinâmicas e in luenciam-se mutuamente numa lógica de permanente osmose e complement­aridade. Nunca numa perspectiv­a de conservado­rismo e exclusão a partir de pseudos-identidade­s que procuram excluir outros através de uma espécie de xenofobia ou “cultura de pacote”, quando o tempo que vivemos, cada vez mais se caracteriz­a por ser aberto ao mundo.

Como “operário de cultura”, todo o compositor e intérprete acaba por se deixar in luenciar por músicos e músicas que ferem a sua sensibilid­ade, sem preconceit­o pela assunção de novos hibridismo­s, que são produto de muito estudo e trabalho. O mérito de Filipe Mukenga começa por ser reformador, no seio do próprio escol musical que já criou e que, de certa maneira, vem in luenciando uma geração de novos músicos de elevado talento, tais como: Sandra Cordeiro Silva, Toty S’Med, Tótó St, Selda Portelinha, Kanda, Jack Nkanga, Gary Sinedima, Kizua Gourgel, Dódo Miranda, Paulo Motomina, Carlos Lopes, Anabela Aya, Ndaka yó Wiñi, Irina Vasconcelo­s, Nino Jazz…e, também numa primeira fase, Matias Damásio, apenas para me referir a alguns deles.

Com Filipe Mukenga, do ponto de vista musical, aprende-se muito. Daí

Mukenga prossegue até hoje um estudo de sequências harmónicas, a partir do jazz e da música popular brasileira e identifico­u-se com os acordes dissonante­s, fugindo o mais possível dos acordes naturais

que consiga resistir às intempérie­s provocadas por alguma falta de apoio ao seu trabalho de excelência, atendendo à riqueza melódica e harmónica das suas composiçõe­s, à forma como as interpreta e à preocupaçã­o com os arranjos musicais. Senão, claro, já teria sido esquecido e não estaria a ser seguido pelas gerações mais jovens, que gostam de trabalhar nos seus projectos discográ icos. Apesar do ensurdeced­or silêncio com que gente comprometi­da com a promoção e difusão da actividade cultural persiste em brindar a sua arte, Mukenga, querendo-se ou não, já fez história na música angolana de substância. Não na de circunstân­cia, pois em nada se identi ica com esta última.

Chamei-lhe, há tempos, “Sr. Dissonânci­a” pelo estilo muito próprio de sequenciar as harmonias nos seus trabalhos. Uma “praia” que só é frequentad­a pelos músicos, que adquiram alguma formação sistematiz­ada em escolas vocacionad­as para o efeito ou, simplesmen­te, através do dedicado autodidati­smo no campo do jazz ou da “Música Popular Brasileira” (não toda ela evidenteme­nte). Esta é a “praia” dos músicos desprovido­s de preconceit­os, que olham para a cultura como um processo social dinâmico e em permanente contacto com outras culturas, quer antes pela perspectiv­a cosmopolit­a, quer hoje pela planetizaç­ão da economia, que necessaria­mente in luencia a actividade cultural dos povos, principalm­ente nas grandes super ícies urbanas. Esta é a “praia” dos músicos que, de alguma forma, procuram, no âmbito da endogeneid­ade, estabelece­r a ponte entre a tradição e a modernidad­e, tal como em África, dos que melhor conheço, fazem, hoje, Richard Bona, Lokwa Kanza, Ray Lema, Salif Keita, Hugo Masekela, Manu Dibango, Jimmy Dludlu e Johnatan Bartley.

O livro “Vida, Poesia e Canções” de sua autoria, com o primeiro “Best off”, re lecte, evidenteme­nte, essas sínteses culturais em Filipe Mukenga. Um músico angolano, também africano e cidadão do mundo, mas que sabe ver o mundo, África e Angola através dos seus próprios olhos. É isso que musicalmen­te o personi ica. Este seu livro é o espelho da sua própria idiossincr­asia e cumpre-me o dever moral de também felicitar a editora “Arte Viva”, através do académico, intérprete, compositor, crítico literário e musical Jomo Fortunato, pelo bonito trabalho biográ ico, literário e de selecção musical que empreendeu, fruto, evidenteme­nte, da sensibilid­ade musical que também em si se revela.

Vai na tua, meu irmão. Vai na tua. Parabéns pelo bonito trabalho que vens produzindo durante todos estes anos, pois, tal como tu, muito poucos até hoje o souberam fazer com a devida mestria, para que nós nos possamos sentir na obrigação de lhes prestar a devida vénia.

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