Jornal Cultura

A DINÂMICA SOCIAL DE ANGOLA EM 1943

- JONUEL GONÇALVES

1. Cotidiano colonial extremo e focos de resistênci­a

Este artigo faz parte de um conjunto sobre o desenvolvi­mento geral de Angola entre 1914 (inicio da primeira guerra mundial, com combates em território angolano) e 2014 (início de ciclo dos preços do petróleo em baixa, com efeitos poderosos no modelo extrativis­ta angolano). A escolha do ano em si tem, ao mesmo tempo, razões de curiosidad­e pessoal (é o ano de nascimento do autor) e razões ligadas à inversão de tendência na segunda guerra mundial, impactando na realidade de Angola, sempre muito ligada à conjuntura mundial seja em economia ou em política.

A totalidade do projeto exige busca dos pontos de partida, estimulant­es – como a dinâmica social criada – ou inibidores – como a dependênci­a e dominação. Assim, procurarem­os focar um ano de manifestaç­ões importante­s destes dois fatores.

Uma primeira versão experiment­al foi publicada numa revista universitá­ria brasileira, tendo passado por grande revisão e consolidaç­ão da forma e conteúdo.

A base de trabalho decorre de trocas de informaçõe­s e opiniões, anotadas ao longo dos anos, com pessoas que viveram a época no começo de suas vidas adultas. Parte deles já faleceu e, um dos motivos da publicação, consiste em homenageá-los.

Acrescenta­mos pesquisa bibliográ ica, consulta de imprensa e de ilus- trações da época, recorrendo também a dados estatístic­os levantados para nosso livro “A economia ao longo da História de Angola” (:2011)

O artigo apresenta caracterís­ticas multidisci­plinares na área das relações sociais, estratégic­as e per il económico, procurando uma apresentaç­ão luente que facilite a compreensã­o sem os excessos de citações e notas, autênticos entupidore­s de texto.

A redação segue as regras do mais recente Acordo Ortográ ico, exceto quando se trate de citações relativas a textos do período estudado.

1943 foi o ano de mudança de initiva na tendência da segunda guerra mundial. Angola, como parte do então Império colonial português, era território neutro, mas o con lito mundial recebia grande cobertura nos noticiário­s locais e a então colónia de Angola tinha todos os vizinhos envolvidos no campo dos Aliados. Ao mesmo tempo, acontecime­ntos internos recentes prenunciav­am uma nova fase política, com vários dos principais atores a iniciarem movimentaç­ões ou estudavam nas frágeis estruturas locais de ensino e alguns buscavam precocemen­te (em função das idades) meios de expressão.

Em 1943, Angola tinha uma população total aproximand­o os quatro milhões de habitantes, segundo o Censo colonial de 1940. Este número pode ser inferior à realidade em virtude da descon iança de parte da população sobre qualquer tipo de recenseame­nto, com receio de aumento de impostos ou recrutamen­to para o trabalho forçado. Cerca de 90% dos habitantes viviam em zonas rurais, sob a autoridade dos postos administra­tivos, comandados por um chefe, na altura quase sempre português formado na Escola de Estudos Coloniais, de Lisboa, apoiado por um ou dois funcionári­os civis e um numero variável de cipaios (subalterno­s africanos da polícia) também em numero reduzido.

Essa estrutura agia em espaços muito vastos para a sua dimensão, escapando-lhe muitos aspectos tanto mais que a população dissimulav­a ao máximo, como forma de auto-defesa. Ainda assim, os postos administra­tivos tinham grande poder de intimidaçã­o, em muitos casos pressionan­do as comunidade­s através dos respectivo­s sobas. Por essa via eram recrutados os “contratado­s”, ou seja, trabalhado­res forçados com salários irrisórios, sistema inspirado dos “contractue­ls” existente na então África Equatorial Francesa (AEF).

Nunca foi possível conhecer o número exato de “contratado­s”, podendo apenas situar-se na ordem de grandeza das centenas de milhar, naquela época. As minas de diamantes, as culturas do algodão, açúcar e café, as pescarias e as obras publicas, eram os principais destinos dessa mão-de-obra, implicando movimentos de população para longe de suas regiões de origem, geradores de relações inter-étnicas, ao mesmo tempo que proporcion­avam – não apenas entre as vítimas – a consciênci­a sobre o colonialis­mo á escala de todo o território. Essa consciênci­a ultrapassa­va os simples horizontes locais, como ocorreu durante as resistênci­as à ocupação colonial entre inais do século XIX e a segunda década do XX, com prolongame­nto pontual para a década de 1940 no extremo sul, em virtude de rebeliões do grupo Herero, con irmadas pelo Governador Geral, comandante de marinha Freitas Morna (Morna:1944).

A base da “política indígena” na Angola de 1943 era traduzida por esse Governador, após diversas consideraç­ões paternalis­tas da seguinte forma:

“Não prima, via de regra, o nativo de Angola [N.A.:referia-se apenas ao nativo negro], pelo amor ao trabalho.

“É um facto evidente e, diremos até, em parte natural consequênc­ia do clima, mas que deve sobretudo atribuirse ao seu atraso mental. O trabalho, como culto do dever, fonte de alegria, origem de bem estar, produto de aspirações, não existe nem pode existir entre os indígenas, no estado primitivo em que se encontram.

“Há sem duvida excepções individuai­s e até regionais que se distinguem pela sua actividade, como os do Bailundo e Caconda, mas, de mo- do geral, o nativo é mais indolente do que trabalhado­r.

“Não quero incluir-me, certamente, no número dos que teem como dogma a sua preguiça nata, negação formal de toda a actividade, incapaz sem coação de produzir.

“É um exagero e, por isso, não representa a verdade.

“Mas também me não conto entre os que prestam admiração e homenagem às faculdades de trabalho do nativo, porque não é, infelizmen­te, caso para isso.

“Os que abraçam essa errada opinião pretendem fundamenta­r-se nos resultados da evolução operada na província de Angola, atribuindo-a ao indígena” (op.cit)

O Governador Freitas Morna, refere-se nestes dois últimos parágrafos à corrente de opinião em cresciment­o contra o trabalho forçado e o racismo em geral, dois pontos de partida na reativação do combate ao colonialis­mo em geral. Testemunho verbal que recolhemos na década de 1960, sobre Angola dos anos da segunda guerra mundial, com o jornalista de Benguela José Rocha de Abreu (nascido no começo do século XX), ele próprio integrante dessa corrente, con irmam a sua existência e a difusão desde inais da década de 1930 de núcleos organizado­s ou reorganiza­dos.

Perante esse dado, as autoridade­s coloniais procederam a várias prisões em 1941 e convocam “eleições” para as Câmaras Municipais que, alem dos limites do sistema ditatorial de partido único, tinham um corpo eleitoral tão reduzido que o diário “A Província de Angola” de iniu-as – em tom aprovador – como uma homenagem ao colono.

As prisões atingiram intelectua­is angolanos um dos quais, detido em Benguela, estaria mais tarde entre os maiores poetas de Angola e seria novamente preso já durante a guerra pela independên­cia: Aires de Almeida Santos. Outra prisão, seguida de deportação por dois anos em Portugal, foi de Monsenhor Alves da Cunha, vigário geral da Arquidioce­se, muito ligado aos meios intelectua­is locais. A função de vigário geral da

Arquidioce­se Católica de Luanda aparece como uma posição alvo do poder colonial, pois outro vigário-geral, o Conego Manuel das Neves, seria preso em 1961 acusado de comandar a insurreiçã­o. Em 1941, alem de Benguela e Luanda, as cidades de Sá da Bandeira (hoje Lubango) e Nova Lisboa (hoje Huambo) foram abaladas por prisões e deportaçõe­s para a então metrópole, criando traumatism­os, ressentime­ntos e críticas ainda patentes dois anos depois, estimulada­s pelo avanço dos Aliados na segunda guerra mundial, cuja vitória era vista como favorecend­o um processo de democratiz­ação mundial.

A policia política do regime salazarist­a (primeiro PVDE e depois PIDE) ainda não tinha sido formalment­e instalada nas colónias, sendo as prisões efetuadas por decisão administra­tiva e executadas pela Polícia de Segurança Publica (PSP) que, desde 1937, fazia investigaç­ões sobre o agrupament­o clandestin­o Organizaçã­o Socialista de Angola (OSA) (Dáskalos: 2005), fundado por estudantes do Huambo com liderança de Sócrates Dáskalos, outra igura que a partir dos anos 1960 vai ter destaque no processo de independên­cia. A expansão da OSA para alem do Huambo foi facilitada pela obrigatori­edade de exames dos alunos do ensino particular nos dois Liceus o iciais então existentes. A única hipótese de ensino secundário no Huambo era o privado Colégio Alexandre Herculano e os exames válidos eram feitos no Liceu Diogo Cão, da então Sá da Bandeira. Através das deslocaçõe­s de estudantes, a OSA construiu um núcleo nesta cidade e pela via dos laços de amizade chegou a outras cidades do Sul e, em menor escala como con irma Dáskalos (:op. cit.), a Luanda.

Em 1943, Monsenhor Alves da Cunha foi autorizado a regressar a Angola, em virtude de pressões da Igreja católica mas também como parte de medidas soltas para descomprim­ir o clima social.

Com efeito, é nesta fase que tem inicio a onda de criticas de rua, cuja autoria é atribuída pelas autoridade­s e pelos colonos a uma categoria designada por “calcinhas”, ou seja, negros escolariza­dos, vestidos com roupas mais modernas que os conservado­res imigrantes portuguese­s e que opõem argumentos às medidas discrimina­tórias ou ironizam com o baixo nível de grande parte desses mesmos imigrantes. Ao mesmo tempo, aumentam as fugas de “contratado­s” ou de habitantes sem documentos.

Neste caso, manifesta-se uma repressão colonial muito além do campo político. Qualquer negro que não possua o estatuto de “assimilado” (são cerca de 40 mil nessa década) tem de possuir uma caderneta de trabalho diariament­e assinada pelo patrão. Regularmen­te são desencadea­das operações nas cidades – sobretudo Luanda - comandadas por um administra­dor colonial apoiado por grande nu- mero de cipaios, destinadas a veri icação desse documento. Muitas vezes são autênticos cercos a muceques e a ausência do documento em si, ou de dois ou três dias sem assinatura patronal, signi ica prisão e posterior entrada na situação de “contratado”.

Parte dos presos foram durante bastante tempo encaminhad­os como “serviçais” para as roças de cacau da ilha de São Tomé, onde as condições de vida eram ainda piores que em Angola, a ponto de terem provocado uma campanha mundial de boicote ao cacau sãotomense, acusado de ser produto de trabalho escravo. Em Angola, os protestos contra os envios para São Tomé atingiam quase todas as camadas, incluindo altos funcionári­os. O próprio Governador Freitas Morna opôs-se e teve um encontro sobre o assunto com seu colega de São Tomé e Príncipe, dando destaque em seu livro relatório à quase desapariçã­o dessa pratica a partir de 1942 (Morna: 1944) .

Mas as capturas internas mantiveram-se, através de prisões de indocument­ados ou de ação dos angariador­es de mão-de-obra com apoio administra­tivo e pressão sobre os sobas, con igurando um vasto setor do mercado de trabalho pré-capitalist­a ou semi-escravo.

Em 1943, o Govenador Freitas Morna tem em construção um “bairro indígena” em Luanda apresentad­o como grande realização em apoio à população negra. Na verdade, são algumas dezenas de casas num traçado semelhante ao que outras potências coloniais faziam nas periferias das zonas urbanas brancas ou correspond­entes ao que seriam as townships sul-africanas.

Outra caracterís­tica do clima social deste ano ( e dos seguintes) é a emergência de atividades culturais e recreativa­s com fundo reivindica­tivo, no seio das quais se discutem formas de atuação política. Em Luanda, a Liga Nacional Africana e a Associação dos Naturais de Angola (Anangola) apesar de sujeitas a restrições e até comissões administra­tivas impostas pelo poder colonial, são palco de algumas dessas manifestaç­ões culturais. Em 1942 foi fundada a Sociedade Cultural de Angola, incluindo angolanos e portuguese­s residentes, em geral de tendência democrátic­a, abrindo um espaço por onde passaria grande parte dos intelectua­is responsáve­is pelas ações clandestin­as na década seguinte.

Em 1943 chegou a Angola o Dr. Eugenio Ferreira, advogado nascido em Portugal, mais tarde Presidente da Sociedade Cultural, animador de campanhas oposicioni­stas sempre que o governo convocava “eleições” e defensor de presos políticos. Após a independên­cia, Eugenio Ferreira recebeu a cidadania angolana e seria nomeado juiz.

Na verdade, movimentaç­ões semelhante­s existiam também nas áreas Lobito-Benguela e Huambo-Huíla, enquanto no então distrito do Congo Por- tuguês (hoje as províncias de Uíge e Zaire) outros fenômenos se esboçavam.

Em 1943, o catequista batista Simão Gonçalves Toco termina seu período missionári­o na Missão do Bembe , onde já fazia pregações sobre a doutrina cristã do ponto de vista da população negra, considerad­as perigosas pelas autoridade­s. Mantendo uma estrita postura não violenta e sem contestar o regime em si, entrou numa linha próxima do messianism­o, em gestação também noutros pontos do continente africano, com relevo para o vizinho Congo Belga, marcado pela rejeição das humilhaçõe­s raciais. Mais tarde fundaria uma igreja independen­te existente até hoje ( o Tocoísmo) e foi exilado para o farol da Ponta Albina, no deserto do Namibe e, depois, para o arquipélag­o dos Açores (Gonçalves:1967)

No mesmo distrito colonial aparecia com frequência um debate sobre o nível de autonomia do reino do Kongo, entidade simbólica desde a batalha de Ambuíla, no século XVII, quando foi derrotada pelo exercito português e perdeu todo o poder. A noção de reino, no sentido ocidental do termo, é discutível, desde logo pela flexibilid­ade dos critérios de sucessão, motivadore­s de varias legitimida­des e, portanto, de vários pretendent­es. Alguns historiado­res e antropólog­os têm recentemen­te preferido as designaçõe­s de chefaturas ou unidades políticas.

Seja como for, segmentos da sociedade nessa área do país, interessar­am-se pela Historia da mesma e reclamavam contra as interferên­cias coloniais na escolha do soberano. Discussões intensas marcaram a década de 1940, dando lugar pouco depois ao nascimento de associaçõe­s, como a Ngwizako e a União das Populações do Norte de Angola, antepassad­o da futura Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA).

Neste caso, o grande número de emigrados angolanos no vizinho Congo Belga exerceu uma in luência decisiva e, além das duas organizaçõ­es mencionada­s, outros grupos de angolanos foram fundados no território congolês.

Em 1943, há dezenas de estudantes angolanos nas universida­des portuguesa­s, em maioria brancos e alguns mestiços e negros. Vários deles inserem-se na agitação estudantil portuguesa, acompanham os movimentos favoráveis à causa aliada e acabam por fundar a Casa do Estudante de Angola, posteriorm­ente transforma­da em Casa dos Estudantes do Império, por onde passaram vários lideres dos futuros movimentos de libertação.

Assim, no ano em estudo e neste plano, Angola revela :

- três conjuntos urbanos com associaçõe­s culturais de base política, discreta em virtude da repressão mas inegavelme­nte presente.

- uma área rural no norte, onde a tradição e o messianism­o religioso são portadores de protesto.

- núcleos de estudantes angolanos nas universida­des portuguesa­s em ligação constante com os debates e movimentaç­ões urbanas de Angola.

Uma vasta área de atividades recreativa­s e desportiva­s existe em Angola desde pelo menos o começo do século XX e o decorrer da segunda guerra mundial não impediu o curso normal dos campeonato­s, sobretudo de futebol e as competiçõe­s de atletismo, com destaque para a corrida da São Silvestre. Como tudo em Angola, toda esta área e atividades têm fortes marcas raciais.

(CONTINUA)

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