Jornal Cultura

HONRAS AO REI ELIAS DYÁ KIMUEZO

Maka à Quarta-Feira na UEA

- MATADI MAKOLA

“Eu sou miúdo, tem aqui mais velhos que devem saber coisas melhores do que eu, mas sente-se verdadeira­mente um rei, kota Elias?”, atira com pujança um kandengue na plateia de maioria kota. Com a plateia à espera, dividida entre o sim e o não, Elias simplesmen­te disse: “Obrigado pela pergunta que me foi formulada. Eu começo por dizer que tudo nasce e cresce e faz-se. Eu estou a caminhar e ainda não cortei a meta. Se acharem que devem servir-me como rei, então o momento é este, por favor”, uma resposta perspicaz que mereceu os aplausos de uma plateia repleta de escritores, familiares, músicos, jornalista­s e amantes da música angolana, presentes no jango da União dos Escritores Angolanos para mais uma Maka à Quarta-Feira cujo tema era exactament­e Elias Dyá Kimuezo, no passado dia 20 de Janeiro. À mesa estavam Carmo Neto, secretário­geral da UEA, Elias dyá Kimuezu, Marta Santos e Luís Fernandes.

Citando Jomo Fortunato, num texto em que classi ica Elias, Marta, a autora da biogra ia ´Elias Dyá Kimuezo – A Voz e o Percurso de um Povo´, descreo como “compositor de múltiplos recursos poéticos e paradigma da canção escrita em kimbundu. Elias é uma personalid­ade crítica com forte enraizamen­to popular. São da sua autoria as melodias e textos mais representa­tivos da História da Música Popular Angolana, inspirada na expressivi­dade da cultura kimbundu”. A pesquisa do livro levou 6 anos e deu voz a familiares, homens de cultura e músicos.

A par das letras, a música de Elias também era aí celebrada pelos seus cotados 60 anos de carreira e pelo seu mais recente álbum que intitulou ´O Semba Passa Por Aqui´, lançado no dia 2 de Janeiro na Praça da Independên­cia, quando completou exactament­e 80 anos, dado que nasce a 2 de Janeiro de 1936, no bairro Marçal.

A tertúlia no jango da UEA foi abrilhanta­da com números musicais de Elias interpreta­dos pelo líder da banda Acapaná, Acácio, que fechou o evento com pompa e garbo ao fazer-se acompanhad­o por Elias na canção Nzala. Contudo, durante o certame os presentes interviera­m satisfator­iamente, levantado problemas, recordando momentos passados ao lado de Elias, dando sugestões às instituiçõ­es competente­s na forma como gostariam de ver tratado o rei, que entre sim e não de ser rei, muito profundame­nte se ouviu e viu um pedido geral que convergiu as opiniões de todos os presentes: honras ao rei, por favor.

Depoimento­s

Luís Jesus ´Xabanú´ – Amigo e contemporâ­neo de Elias, numa amizade travada desde os anos 64/65. Foi-lhe apresentad­o pelo Luís Visconde, no Marçal. Xabanu vai à tropa e quando volta é empregado na Nocal, como vendedor de cerveja. Quando largava, às 17:30, muitos músicos o esperavam à porta da empresa, mas decidia sair sempre no carro de Elias e justi ica aos restantes que Elias era o seu primeiro amigo. A amizade mantém-se até hoje.

Manuel Claudino da Silva – Lembra que uma vez, a convite de uma organizaçã­o de Luanda, o Roberto Carlos vem a Angola e levantavam a hipótese de ele ser recebido pelo rei da música angolana, ao que Elias respondeu: “Eu moro aqui no Cassequel do Buraco, como é que eu vou receber o Roberto Carlos em Minha casa? Nem pensar!”. Manuel é amigo do Elias há mais de quarenta anos, embora Elias tivesse sido primeiro amigo do seu pai. E da maka das distinções de rei, indaga: “E será que ele já tem as mordomias de rei?”. Do que tem visto, acredita que não. Mas, para ripostar um intervenie­nte, Carlos Pimentel, que ainda no início tinha interrogad­o a mesa se Elias era ou não antigo combatente como ele, Manuel a irma que Elias é de facto antigo combatente e frisou ainda um processo em curso sobre o Kissanguel­a que anda pendente, a ver se num futuro próximo os integrante­s deste grupo fossem colocados na caixa social das Forças Armadas e atribuídas patentes que melhor digni icassem os feitos pátrios destes cidadãos.

Miguel Neto “Lito” – Conhece Elias desde os seus 11 anos e veio como amigo do rei, por mais que pareça caricato, devido a grande diferença de idade. Trato-o carinhosam­ente por papá. Miguel morava no Rangel, na rua do Bexi- ga, e Elias morava na rua de trás. Ele também foi daqueles rapazes que seguia Elias depois do Kotonoca e quando desse por si já estava muito distante de casa. Quanto a questão do facto de Elias se sentir rei ou não, é dos que acredita que não. E justi ica que convive com Elias quase diariament­e há mais de dez anos e que esta homenagem vem a calhar, aproveitan­do o momento para apelar ao bom senso das pessoas que o nosso rei tem passado muitas di iculdades, tanto que para se deslocar tem de pedir aos amigos.

Albino Carlos – Foi dos depoimento­s mais emotivos, tanto que, tomado pela emoção, ao escritor e jornalista faltaram palavras. Concordand­o com as palavras de Kandjimbo, que o fez arrepiar, desa iou-nos a imaginar com a seguinte questão: “Se Kandjimbo, um garoto de Benguela, icava encantado com a imagem à moda axiluanda do kota Elias, como seria o efeito a um rapaz do Rangel cuja casa era um salão, Cinco de Pau, na Rua do Povo?”. A resposta era evidente e Albino moíase de emoção. Disse-nos que viu o kota Elias quando garoto, que o relembra como homem de aura, e disso aponta que os músicos deste timbre merecem uma grande homenagem. Sobra a poesia contida em Elias, Albino é de opinião que toda a poesia do kota Elias está na forma como ele canta, e que isto ninguém pode escrever, talvez seja o motivo de os escritores nutrirem às vezes alguma inveja dos músicos. Do

seu Rangel do coração, eles, rangelitos, icam arrepiados ao ouvir Elias. Dominguinh­os, Xabanú e outros já causaram muita alegria naquele bairro, eram iguras emblemátic­as e de talento consumado.

Luís Kandjimbo – Ouviu o pedido de um amigo e decidiu tecer algumas palavras de apreço a Elias. Fê-lo recorrendo à imagem que tem de Elias, ressaltand­o a forma como a música popular urbana contribuiu para a formação do carácter e da personalid­ade de muitos do seu tempo. Lembrou-nos ser natural de Benguela, uma cidade do litoral, e a imagem que lhes era transmitid­a a partir de Luanda, sobretudo ao nível da música, era muito importante. Aponta-o como um dos músicos que para a sua geração tem muita importânci­a, mesmo cantando em kimbundu, visto que fala umbundu. Analisa que as letras em kimbundu, devido ao substrato bantu, permitiam a jovens miúdos de 8 ou 9 anos entenderem palavras isoladas que ajudavam a compreende­r o sentido, mesmo sem saber o signi icado das frases construída­s. Combinando as palavras-chaves à melodia e harmonia, acontecia um pouco também devido aquela imagem radical que ele apresentav­a nas capas dos discos, lembra. Kandjimbo destaca que essa era uma outra coisa que lhes deleitava. As imagens eram signi icativas, a do homem de barba preta e farta e vestido de pano, o que para garotos, nos plenos anos 60, signi icava que estavam diante de uma igura representa­tiva daquilo que deveriam ser. Tem companheir­o de geração e de estrada com os quais ouviu as músicas de Elias, motivo que lhes levou a aprender a tocar guitarra e cantando mesmo sem saber o kimbundu, sinal de que queriam ser aquilo que deveriam ser, ajudando desta forma a formar o carácter.

Paulo Campos – O escritor Paulo Campos faz recurso às músicas de Elias para buscar inspiração ou força para escrever… essa música da mãe, que diz mamã kudilengó, um tema maternal e profundame­nte sentimenta­l, é um exemplo.

José Luís Mendonça – Admira profundame­nte Elias, que considera “poeta de kimbundu”, fazendo referência da música ´Nzala´, cujo original era tocado com fundo de piano. O poeta deixou um repto a UEA, representa­da no momento por Carmo Neto, de publicar em livro as canções de Elias. Sublinhou a diferença entre a música da novíssima geração e a dos kotas, encontrand­o na novíssima uma grave falta de poesia na composição das letras, feitas apenas para consumo imediato, além de apontar esta geração como descuidada no que toca ao canto em línguas nacionais, como também se não seria possível que os mais jovens tentassem aprender mais com Elias.

Ao que Elias respondeu que tem vivido com certo descontent­amento devido a prática abusiva da nova geração. “Todos nós temos de aprender e saber lidar com as pessoas, aproximar, conjugar, conhecer os hábitos e costumes, é das coisas mais sagradas que existe no mundo africano. Mas existe o desrespeit­o. Eu não vou rejeitar que deixem de dar continuida­de a obra que eu iz, eu não serei continuado­r. Eu peço à nova geração, por favor, que respeitem as obras. Aproximems­e, sem receios, que nós vamos conduzir ao caminho certo”.

Ventura de Azevedo – Conheceu Elias quando tinha treze anos de idade, num tempo em que ainda a música angolana passava na rádio esporadica­mente e os pais proibiam os ilhos de falar kimbundu, mas a contragost­o das avós, que sempre mandavam os netos em kimbundu. Moravam no sambizanga e uma vez foram assistir ao kutonoca, quando Paulo já tinha dezassete anos. Era um sábado e quem estava no auge era Urbano de Castro. Mas naquele dia aconteceu algo diferente, apontando como dia provável da estreia do tema ´Mamã kudilengó´, que já neste dia arrebatou o coração dos presentes, ofuscando a participaç­ão dos restantes.

Apresentou a Elias a sua inquietaçã­o sobre o momento e motivo da criação deste tema. Elias responde-lhe que esta canção foi criada na altura em que a malta do Ginásio viaja para o exterior do país e lá fora transforma-se em Kinsaguela. Mas icam Elias e mais alguns elementos. Dos que foram ao exterior, Mam Mingo, Tomás e Joaquim, do Ginásio, tinham tirado sem autorizaçã­o o salário do pai para pagar o barco. Zangado, o pai abandona a casa por uma semana. A mãe não sabia o que fazer e só chorava. Eram seus vizinhos e Elias acompanhou de perto, decidindo escrever esta música de mensagem profunda em homenagem às mães, por tudo que sofrem pelos ilhos, que diz num dos trechos mais conhecidos: “Minha mãe não chore, eu vou mas tornarei a voltar, e mesmo que voltar cego, só de tocar os teus seios saberás que és a minha mãe”.

Luís Fernando – Começou por dizer que concorda redondamen­te com os dizeres de Luís Kandjimbo a Elias, que o sentimento que ele sentiu em Benguela teve-o também no Uíge. Recorda que no tempo colonial chegava-lhe muito a música de Elias. E mesmo sem perceber o kimbundu, era o referido substrato bantu que lhes fazia dar conta de algumas palavras-chaves, como aconteceu na música Nzala. Também lembra um vizinho que estava muito avançado para o seu tempo, que dá vida a um personagem do seu último romance, e foi este que tinha os primeiros discos de vinil, tendo visto em casa deste vizinho uma imagem de Elias. Assim nasce a admiração que tem pelo músico, que o considera pela alma que põe no seu canto. Da maka, acentua que esta homenagem é o mínimo que se pode fazer, escritores e cidadãos, para esta geração de Elias que tem sido tratada com alguma injustiça.

E continuou fazendo referência à relevância do chamamento do canto, que compara a do fuzil e da acção armada, convidando os presentes a saber: “Muitos de nós somos do MPLA pelas canções que nós ouvimos”.

Cirineu Bastos – Concordou com Kandjimbo e Albino Carlos porque ambos tiveram o cuidado de realçar o valor do artista que fez do cancioneir­o uma forte arma de luta. E deixou a entender que as palavras destes escribas tocaram-no, lembrando que em muitos sítios pessoas da sua estirpe recebem elogios de terem sido bons rapazes, mas falta reconhecim­ento. Já travou com algumas pessoas ilustres que con irmaram que há pessoas que com o fuzil deram uma série de tiros, mas alguns não alcançaram tanto como as mensagens de músicos como Elias.

Arnaldo Calado – Último a intervir, viu-se na obrigação de fazer ligações. Começou respondend­o a pergunta que todos faziam, uma pergunta que lhe pareceu exageradam­ente dura mas que teve uma resposta exageradam­ente inteligent­e, se o rei Elias sentia-se rei ou não. Defende que o rei Elias é o rei da música angolana, e disto ninguém duvide. Basta cantar ou assobiar e dar em música, o rei é o Elias, diz. Pensa ser muito di ícil para o Elias acordar no dia seguinte e dizer que ele já não é mais o rei. Defende que as pessoas que o atribuíram continuam a têlo como rei. Pondera que há di iculdades, e que nem mesmo o Elias viveria bem sem di iculdades. O Elias tem di iculdades e sabem-nas. Mas tudo tem o seu tempo, ajeita. Não acredita que um dia possamos ver o Elias sem di iculdades, aliás, conclui que todos nós vamos ter sempre di iculdades.

Entre as soluções, convidou a falar dos direitos de autor, ir nos hotéis, restaurant­es e similares que usam a música de Elias mas não pagam direitos de autor.

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 ??  ?? Carmo Neto, Elias, Marta Santos e Luís Fernandes
Carmo Neto, Elias, Marta Santos e Luís Fernandes
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Jovem formulando a questão que dominou a maka
 ??  ?? Xabanú
Xabanú
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Albino Carlos
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Miguel Neto
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Arnaldo Calado
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José Luís Mendonça
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Manuel Claudino
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Ventura de Azevedo
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Cirineu Bastos
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Luís Kandjimbo

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