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MISERICÓRD­IA DE LUANDA NASCEU COM A CIDADE E VIVEU SÉCULOS DE GLÓRIA

Hospital da Cidade Alta foi a sede da primeira Escola Médica de Angola

- JANUÁRIO MARIMBALA |

Paulo Dias de Novais fundou Luanda e a Santa Casa da Misericórd­ia em 1576, há 440 anos. Mas a rainha D. Leonor criou a instituiçã­o há precisamen­te 500 anos. Em 1628, foi construído o Hospital da Misericórd­ia, que durante séculos prestou cuidados de saúde aos Luandenses, tendo-se especializ­ado no tratamento do “Mal de Loanda” (escorbuto) e doenças do ígado.

O Hospital da Misericórd­ia foi sede da Escola Médica de Luanda, a primeira instituiçã­o de ensino superior em Angola, que teve ao seu serviço brilhantes professore­s de Medicina, entre os quais merece destaque José Pinto de Azeredo, natural do Rio de Janeiro, nomeado por D. Maria I, a 24 de Abril de 1789, “ ísico-mor da cidade de Loanda e do Reino de Angola”. Depois de estudos na Faculdade de Medicina de Coimbra, fez especializ­ações em Edimburgo e Leide.

Estudiosos da matéria garantem que a primeira Igreja da Misericórd­ia foi erigida em São Salvador do Congo, mas não existem documentos que a liguem a qualquer irmandade ou insti- tuto religioso. Documentos dão conta da existência da Santa Casa da Misericórd­ia em Massangano, criada em 1660, “por provisão do Cabido de Angola e Congo”. O consentime­nto régio chegou em 1676. Em Benguela, a Irmandade de Nossa Senhora do Pópulo estava ligada à Misericórd­ia.

A Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda teve uma importânci­a extraordin­ária na assistênci­a aos desvalidos e na prestação dos cuidados de saúde. A sua actividade foi contínua, durante séculos.

A Tese de Cadornega

O historiado­r António de Oliveira Cadornega, Provedor da Santa Casa da Misericórd­ia de Massangano, a irma que a instituiçã­o nasceu em Luanda em 1623, por iniciativa do bispo D. Simão de Mascarenha­s. O historiado­r Lopes de Lima con irma a tese de Cadornega. Mas um testamento deita por terra esta posição.

D. Simão de Mascarenha­s teve um papel relevantís­simo no desenvolvi­mento da Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda. À sua custa mandou construir a Galeria que recebeu o Consistó- rio e a Casa de Despacho. Mas um negreiro arrependid­o de comprar e vender serres humanos, para “expiar os seus pecados”, fez- se noviço da Companhia de Jesus e deixou muitos dos seus bens à Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda.

Este testamento é de 1623. Acontece que o bispo e governador, só chegou a Luanda em Agosto desse ano. Em quatro meses não podia pôr de pé uma instituiçã­o com a grandeza da Santa Casa da Misericórd­ia. Cadornega e Lopes de Lima estavam equivocado­s.

António Franco contraria os dois, com inteira razão, e garante que a Misericórd­ia de Luanda foi fundada por Garcia Simões, um padre jesuíta que acompanhou Paulo Dias de Novais na expedição a Angola. O capitão general teria atribuído ao sacerdote a missão de fundar a instituiçã­o, na mesma data da fundação de Luanda. Os estudiosos podem conhecer a posição de Franco, consultand­o a sua obra “Annus Gloriosus S. J. in Lusitania”.

Luanda e Massangano

O rei de Portugal reservava para si o direito de superinten­dência e a última decisão na criação da Santa Casa da Misericórd­ia em todo o reino, aquém ou além África. Na criação da Misericórd­ia de Massangano fala-se nos “privilégio­s e regalias” que foram concedidos à instituiçã­o de Luanda. A da vila que foi capital da colónia durante a ocupação holandesa, tinha os mesmos privilégio­s e regalias. Mas até à data é desconheci­do qualquer documento que regule a Misericórd­ia de Luanda, nos seus primórdios.

António de Oliveira Cadornega e Fêo Cardoso recolheram abundante informação sobre a Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda. Por eles sabemos que, desde o início, existia uma irmandade organizada, a sua Mesa e o Provedor.

O cargo de Provedor da Misericórd­ia de Luanda foi muitas vezes exercido pelos bispos e governador­es. Há inúmeros documentos que o comprovam, sobretudo dos séculos XVII e VXIII. Entre ilustres Provedores estão o bispo D. Francisco de Soveral ( 1784- 1790), ou os governador­es Luís César de Menezes (1690) e Mota Fêo ( 1816- 1819), que deram um impulso extraordin­ário à instituiçã­o,

tornando- a indispensá­vel na sociedade luandense seiscentis­ta, setecentis­ta e oitocentis­ta.

Falta de regime legal

No primeiro quartel do século XIX foi extinta a Irmandade. A Santa Casa passou a ser dirigida por Comissões Administra­tivas. Em 1850, a Comissão Administra­tiva presidida pelo ísicomor Viana de Resende implorou às autoridade­s que de inissem legalmente o regime da instituiçã­o. O governador Visconde de Pinheiro foi sensível ao apelo e encarregou o suplicante de redigir uma proposta de regulament­o. Mas nada foi feito.

Em 1870, o governador Coelho do Amaral insistia que era necessário redigir os estatutos da Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda “porque não tem fins propriamen­te determinad­os, nem tem obrigações a que se sujeite: e por isso mal pode estimular a caridade pública por lhe não dar as suficiente­s garantias”. Apesar desta realidade, a instituiçã­o continuou sem um regulament­o.

Nos anos 50 do século passado, a situação era idêntica. O regime do Estado Novo, no Artigo 433º do Código Administra­tivo estabeleci­a que a “denominaçã­o de Santa Casa da Misericórd­ia ou de Misericórd­ia só pode ser usada por estabeleci­mentos de assistênci­a ou bene icência criados e administra­dos por irmandades ou confrarias canonicame­nte erectas e constituíd­as por compromiss­o”. A Santa Casa de Luanda não cumpria estas condições.

Acção Social Relevante

Até à ocupação de Luanda pelos holandeses, a Misericórd­ia desenvolvi­a intensa actividade no âmbito dos cuidados de saúde. O Estado aproveitav­a o hospital da Santa Casa para garantir assistênci­a aos militares. Em troca, pagava 200 mil réis por ano.

Quando Salvador Correia de Sá e Benevides expulsou os holandeses, a Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda teve uma importânci­a vital na sociedade luandense. A instituiçã­o atingiu o auge nas suas actividade­s caritativa­s e de prestação de cuidados de saúde. António de Oliveira Cadornega recolheu e publicou abundante documentaç­ão que atesta a sua época de esplendor, na segunda metade do século XVII.

Por Cadornega sabemos que a Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda, no último quartel do século XVII, além da caridade e do hospital, prestava assistênci­a aos presos e aos pobres, garantindo-lhes alimentaçã­o, cuidados básicos e as acções legais para a sua defesa ou libertação.

Neste período foi restaurada a Igreja (Cidade Alta) que passou a ser o templo mais importante nas festividad­es tradiciona­is. Segundo Cadornega, os Provedores “eram sempre dos mais possantes e principais cidadãos e moradores”. As despesas com as suas actividade­s eram exclusivam­ente suportadas pelos irmãos.

Decadência e Di iculdades

No inal do século XIX a colónia de Angola estava mergulhada numa crise económica sem precedente­s e essa realidade teve impacto na Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda. Os cofres da Fazenda estavam vazios. A acção missionári­a icou reduzida a algumas missões arruinadas. Poucos sacerdotes icaram para enfrentar a desgraça.

A Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda foi aos poucos abandonand­o as suas actividade­s de caridade e icou reduzida ao hospital. O risco de extinção era real! Mas a instituiçã­o ainda tinha alguns bens valiosos. Edi ícios que lhe foram legados, davam algum rendimento. Mas as vastas terras aráveis do Bengo e Cuanza só davam despesa. Era di ícil contratar mão-de-obra para cultivar a terra. Para agravar este quadro, o Estado lançou pesados impostos às barcaças que faziam transporte de mercadoria­s nos dois rios.

O Hospital Militar, instalado no Hospital da Misericórd­ia estava a precisar de obras urgentes, de remodelaçã­o e ampliação. Foi a instituiçã­o que teve de suportar as despesas. O Estado estava falido.

O Provedor eleito foi substituíd­o pelas Comissões Administra­tivas e a Santa Casa icou reduzida a apoiar os pobres nas suas enfermaria­s. Em 1876, o velho hospital foi extinto e o edi ício ocupado pelos Serviços de Saúde.

As dificuldad­es atingiram o extremo quando a Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda passou a ser administra­da pela Junta da Fazenda. Mas dois anos depois essa situação aviltante foi corrigida.

Grande Hospital de Luanda

O Hospital da Misericórd­ia de Luanda foi instalado entre 1612 e 1616. O explorador britânico George Tams visitou as colónias portuguesa­s na África Ocidental e em 1841 estava em Luanda. No livro que escreveu sobre as suas viagens faz a seguinte referência ao hospital da Santa Casa: “as enfermaria­s são altas, espaçosas, e tão abundantes, que não havia receio que elas se enchessem todas. Os doentes particular­es, que desejassem ter quartos separados, podiam sempre ali encontrar acomodação, mediante uma pequena quantia destinada para o seu sustento. A maior enfermaria continha 20 camas de madeira, com enxergões cheios de palha”.

Quanto às instalaçõe­s do hospital, majestosas, que ainda hoje marcam o carácter arquitectó­nico da Cidade Alta, foram assim descritas por George Tams: “o edi ício vê-se a grande distância, capitanean­do a magní ica vista de toda a cidade de Luanda, desde o porto de mar aos lugares circunvizi­nhos, orlados por colinas”.

Cadornega dá-nos conta que o Hospital da Misericórd­ia tinha quatro enfermaria­s “em forma de cruz” e mais tarde foi construída uma quinta enfermaria só para mulheres. Até à Independên­cia Nacional o edifício foi sede do Tribunal Militar. Hoje está lá o Tribunal de Contas.

O fim do hospital teve reflexo positivo na Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda, que a partir de 1883 ( abertura do Hospital Maria Pia) se dedicou mais à caridade. Os Provedores e a Mesa passaram a gerir cuidadosam­ente os numerosos e valiosos bens da instituiçã­o.

No primeiro quartel do século XX, a Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda distribuía esmolas pelas famílias mais carenciada­s, construiu um albergue para indigentes, abriu um posto médico e distribuiu subsídios por outras instituiçõ­es de caridade mais necessitad­as.

Em 4 de Setembro de 1929, um diploma legislativ­o encarregou a Santa Casa da Misericórd­ia de Luanda de administra­r e manter o Instituto Feminino D. Pedro V, fundado em 29 de Junho de 1854 para recolher meninas órfãs, garantindo a sua formação até à idade adulta. As primeiras instalaçõe­s eram na Baixa, mas mercê da doação de um benemérito, o asilo foi mudado para um “palácio assobradad­o” na Cidade Alta, junto à Rua do Casuno. No início dos anos 70 mudou para novas instalaçõe­s.

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Fiéis católicos no pátio da Igreja de Jesus situada na Cidade Alta
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Tribunal de Contas

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