Jornal Cultura

PEPETELA SE O PASSADO NÃO TIVESSE ASAS

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Os artistas são mesmo complicado­s. Os artistas precisam de solidão. mesmo se não o reclamam. Disse estas palavras o escritor Pepetela, no passado dia 5 de Maio em Luanda, ao apresentar o seu romance mais recente Se o Passado não Tivesse Asas. O início da sua prelecção foi uma homenagem pública à esposa que ali se encontrava no Camões, Centro Cultural Português, a abarrotar de almas que, por não caberem no auditório Pepetela, icaram no hall de exposições numa cavaqueira de bom gosto e bom tom.

Homenagem singela à Mena, em quem o autor busca inspiração, pois que traz para casa muitas estórias do meio. Mena leva essas estórias, fofocas, mujimbos que são um retrato da nossa sociedade e que depois dão corpo aos romances. Isto porque Pepetela isola-se. Sobretudo dessas coisas terríveis que são os telemóveis. “E a Mena consegue criar um ambiente para que eu possa escrever tranquilam­ente”, disse Pepetela. E disse mais: “Eu gosto que seja o livro que se apresenta a si próprio”. Por isso leu duas passagens da obra, uma que se enquadra na primeira parte do livro, que cobre o espaço temporal desde 1995 até à actualidad­e e outra que faz parte de metade do livro que vai de 2012 até aos nossos dias, metades essas que existem em paralelo nas páginas da narrativa.

Com a mestria própria de um dos nomes maiores da literatura angolana e de língua portuguesa, PEPETELA volta a surpreende­r, no estilo, na forma e na substância das coisas, no seu último romance “SE O PASSADO NÃO TIVESSE ASAS”. Com a lâmina a iada da sua ironia (não raras vezes a raiar o sarcasmo), com a sensibilid­ade do grande criador que é, com a perspicáci­a de observador atento do mundo que o rodeia, com o conhecimen­to profundo da história do país, da qual foi, e é, sujeito activo e com um sentido de solidaried­ade, próprio de quem tem uma história de vida ao serviço de causas, PEPETELA regressa com o profundo humanismo que trespassa toda a sua obra.

Uma história, cuja narrativa alterna dois períodos temporais distintos. Um tempo mais recuado, de guerra ( 1995) e um tempo mais próximo ( 2012), de paz consolidad­a e cresciment­o económico. Dois tempos, que marcam a história de vida dos personagen­s, heróis anónimos, sobreviven­tes da guerra passada, mas também sobreviven­tes das múltiplas contradiçõ­es que caracteriz­am a sociedade actual do país.

Nas 400 páginas de SE O PASSADO NÃO TIVESSE ASAS, PEPETELA faz uma incursão em temas que evocam um passado tenebroso ainda muito fresco na memória colectiva e temas actuais, particular­mente ligados às idiossincr­asias da Luanda dos dias de hoje. Da Ilha do Cabo a Luanda Sul (Nova Luanda ou Talatona). De uma forma crua, chocante, algumas vezes cruel, mas também profundame­nte comovente, viaja com os “meninos de rua”, que proliferam na Ilha de Luanda, ilhos, enteados e órfãos de guerra, que cheiram gasolina, cheiram a mar, lutam e matam a fome a catar contentore­s de lixo, e se organizam em “grupos” (que recolhem comida em conjunto e depois repartem) ou “bandos” (que roubam, violam e matam), que dominam as ruas, impondo leis cruéis, na lor de uma idade a que chamam da “inocência”. “(...) Mas a fome era demais. Ficaram parados a olhar para os comensais. Himba de cabeça inclinada, naquele jeito de pedir com os olhos que aprendeu com a vida (...)”. “(...) Clientes bem nutridos não podem ver crianças miseráveis e com fome, isso incomoda (...)”. “(...) Os miúdos sentaram na sombra da casuarina, se dividiram a comida, escondendo a ansiedade de engolir tudo de uma vez. A inal, eles tinham tido educação, em casa, não eram animais (...)”. “(...) Era mais o tempo em que sentiam fome do que o tempo em que se esqueciam. Fome de pobre é a única constante desta vida, pensou, muito iloso icamente, Himba (...)”. (....) Luanda é dura de viver, Nguimbi sem alma, como se diz, mas tem um íman poderoso que suga as pessoas para si e dela não deixa escapar(...)”.

“(...) Embora naquele meio fosse di ícil fugir ao destino”, como vaticinava a Tia Isabel, a esperança não morria, alimentada pela capacidade de sonhar. “as ondas se trançam umas nas outras, fazem novelos. Que se ligam e entrelaçam, como a vida das pessoas. Era só uma questão de olhar. O mar tinha novelos, novelos de mar.(...)”.

“(...) Himba nunca ia absolutame­nte tranquila, tinha medo de encontrar uma ponta do passado. Só serenava quando deparava com a senhora boa das trancinhas ou o Mariano. Então o passado começava a fazer música, perdia os tons de roxo violento, volteava entre os lilases e amarelos da música (...)”.

“(...) Uma alma sensível, procurando, não o sentido da vida em si, mas o sentido da beleza do mundo. Para lá da desagregaç­ão do mundo, ou nessa mesma desagregaç­ão, ele descobria encanto, era quase um milagre” “

“(...) Era o ano de 2002. A paz desdobrou a sua manta sobre o país....e as pessoas voltaram a sonhar”.

PRÉMIO CAMÕES

PEPETELA (Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos) nasceu em Benguela, em 1941. Licenciou- se em Sociologia, em Argel, durante o exílio. Foi guerrilhei­ro do MPLA, político e governante. Foi Professor da Universida­de Agostinho Neto, em Luanda. Tem sido dirigente de associaçõe­s, designadam­ente da União dos Escritores Angolanos e da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde. Recebeu o Prémio Camões 1997, confirmand­o o lugar de destaque que ocupa na literatura lusófona.

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Pepetela, entre o editor e a directora do Camões, Teresa Mateus.

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