A COMPETÊNCIA DE UMA LÍNGUA BANTU
Este trabalho tem como objectivo mostrar a competência de uma língua bantu. Fala-se de competência, por exemplo, quando alguém é capaz de resolver as tarefas que lhe são incumbidas. A “tarefa” da língua é servir de instrumento de comunicação. Ao falarmos da competência de uma língua bantu (lb), estamos falando de quão bem ela cumpre essa função, o que veremos neste trabalho.
Parte teórica
Que mostra como se deve analisar e interpretar o substantivo e o verbo numa lb, que são duas das categorias de palavras que contêm a informação que o Bantu antigo nos deixou.
Se certas ciências podem, até certo ponto, icar, mais ou menos, tranquilamente con inadas à Academia, aos Laboratórios e aos gabinetes, isto é, com os cientistas e os técnicos, a Linguística, ciência que estuda a língua, é conveniente que seja, sempre que necessário e possível, trazida à rua, onde estão os utentes do objecto que estuda, tendo em conta, particularmente, a relação que existe entre língua, sociedade e cultura, em que determinada língua e determinada cultura pertencem a determinada sociedade. A sociedade americana tem a sua língua e a sua cultura; a sociedade japonesa tem a sua língua e a sua cultura e assim por diante. E a sociedade angolana? Vamos raciocinar todos e depois vamos responder todos. E é assim. Eu sou daqueles que gostam de trazer à rua as questões sobre as nossas línguas.
O ponto do qual parto é sempre o mesmo e tem a ver com o estudo da produção do signi icado numa lb. Numa língua bantu, interessa-me mais o estudo da produção do signi icado, embora tudo comece com o estudo das unidades e estrutura fonéticas e das unidades e estrutura morfológicas das mesmas.
A Linguística diz que “a unidade mínima com signi icado, numa língua, é a palavra”. Isso signi ica dizer que unidades menores que a palavra, como as sílabas e os fonemas (vogais e consoantes) não têm signi icado. Em nosso entender, esse princípio não é aplicável às línguas bantu porquanto, como temos demonstrado frequentemente, a sílaba e até a vogal têm signi icado numa língua bantu e têm, até, mais que um signi icado, tanto a sílaba como cada uma das vogais. Só as consoantes não têm signi icado. Porém, foram objecto de um tratamento teórico tal, que cada uma delas tem uma identidade própria, reconhecida nas palavras da língua, para quem as observe atentamente. Essa identidade é aquilo que, na verdade, é a sua classi icação. Na Linguística bantu tradicional, se assim podemos chamar-lhe – não na Linguística bantu que os Ocidentais criaram, cujo estudo estrutural, entretanto, é de grande nível – uma consoante só entra na formação de uma sílaba (consoante+vogal) dependendo da sua identidade (classi icação), por um lado e, por outro lado, tendo em conta o signi icado da sílaba que é chamada a formar. A sílaba, por sua vez, só entra na palavra, tendo em conta, por um lado, o signi icado dessa sílaba e por outro lado, o signi icado da palavra que se pretende criar. Por exemplo, a consoante surda “f ” é apta para entrar na formação da sílaba “fu”, que vai integrar o verbo “ku fwa”, que signi ica “morrer”, enquanto a consoante sonora “v”, da mesma família (modo de produção e ponto de articulação) é apta para entrar na sílaba “vu” que vai integrar o verbo “ku vwala”, que signi ica “conceber, dar à luz”. Note-se o tipo de relação semântica existente entre um verbo e outro. “F” entra em “yofele” (pequeno, pouco) e “v” entra em “yavulu” (muito). Pela análise de outras palavras que levam a sílaba “fu”, como “kifofo” (cego), originalmente “kifwafwa”, referente aos olhos do cego, que estão mortos (ku fwa: morrer), é fácil notar que “yofele” (f) é, originalmente “yofwele” (fu), notando-se, assim a relação de oposição entre “vu” e “fu”, por um lado, e entre “v” e “f ”, por outro. É di ícil entender a produção do signi icado numa língua bantu, se não se perceber esses aspectos da Fonologia das línguas bantu.
A sílaba entra na formação da palavra, com o seu signi icado – signi icado da sílaba. Em muitas sílabas, o signi icado delas é, apenas, o signi icado da vogal. Por exemplo, um dos signi icados da vogal “o” é “para baixo”. A sílaba “lo”, em que entra a vogal “o” signi ica, apenas, isso mesmo (para baixo), como podemos ver no verbo “ku loa”, cuja tradução é “enfeitiçar” e cujo signi icado é “fazer baixar o nível inanceiro, de estabilidade emocional e afectiva e de saúde, provocando, se necessário, a morte”. E penso não estar errado se disser que a consoante inal de “ku loa: enfeitiçar”esconde a vogal “i”, no seu signi icado de “em baixo”, completando, assim, a noção e signi icado deste verbo, que é aquele que acabamos de mencionar.
Vimos, primeiro, um aspecto das consoantes e vimos, a seguir, um quadro em que pudemos apreciar a imbricação de uma consoante e uma vogal e observar tanto o signi icado da vogal como o da sílaba que contém essa vogal.
O substantivo tem uma estrutura em que existe um pre ixo, chamado pre ixo nominal e uma base, chamada base nominal, onde se encontra o signi icado do mesmo. A título de exemplo, na palavra “dizwi” (di-zwi), que se traduz, em português, como “voz”, “di” é o pre ixo nominal e “zwi” é a base nominal.
A Linguística diz que o lexema base nominal é indivível, enquanto morfema, isto é, enquanto conjunto de sílabas onde reside o signi icado da palavra. Mas não é isso que vemos numa língua bantu, uma vez que nesse lexema ou base nominal – “zwi (zu-i) – “zu” representa “onda” e “i” representa “som”. Então “zwi” é ondas sonoras e é isso que “voz” é, na sua essência. Vamos deixar de parte a sílaba “zu” e concentremonos, apenas, na vogal “i”, que entra na palavra, na qualidade de sílaba (di-zui). Para demonstrarmos o signi icado da vogal “i”, atentemos para um conjunto de palavras que a integram, como sílaba, e observemos o seu valor semântico: “dizwi” (di-zu-i): voz, idioma; “ditwi” (di-tu-i): ouvido, orelha; “ku ivwa” (i-vu-a): ouvir; “ku ixana (i-xa-na): chamar; “ku ibula” (i-bu-la): perguntar;
ku tambwijila” (ta-mbu-i-ji-la): responder. Na verdade, quem ouve, ouve som; quem chama, chama com som; quem pergunta, pergunta com som; quem responde, responde com som.
Alguém poderá contestar-nos, dizendo que se pode chamar alguém sem falar, fazendo-o por gestos e, da mesma forma, pode-se responder movendo a cabeça. Quanto a isto, direi que, em kimbundu, para “chamar” existem “ku ixana” e “ku xana”; para “esponder” existem “ku tambwijila” e “ku tambujila” e eu creio que a presença ou a ausência de “i” tem em conta essa preocupação, com “i” é para chamar ou responder falando e sem ”i” é para fazê-lo por gesto, suponho.
Numa língua bantu, é o cruzamento do signi icado das sílabas que conforma o signi icado da palavra. Importa, sempre, dizer que cada sílaba, tal como cada vogal, tem mais que um signi icado. Um outro signi icado da vogal “i”, como já vimos é “em baixo”e, nesse contexto, opõe-se à vogal “u” que representa a posição “em cima”, como podemos ver na palavra “dyulu” (di-ulu) que se traduz como “céu”, em português. Note-se que nesta palavra a sílaba “lu” também representa “em cima”. Os dois códigos entram na mesma palavra para indicar que o “céu” é a coisa mais alta que existe.
Quanto ao verbo, também há particularismos na análise da sua estrutura e na interpretação do seu signi icado. Um dos aspectos desse particularismo está naquilo que se designa como “vogal inal”.
A “vogal inal” é a vogal “a” que existe na última sílaba do Modo Infnitivo de um verbo: “ku kala” (ser, estar), “ku banga” (fazer), “kwenda (andar), “kuya” (ir), “ku zwela” (falar), etc..
Para revelarmos a informação que um verbo contém, isto é, o seu signi icado, temos que saber que essa vogal é convencional e ictícia. Ela está lá por força de uma convenção segundo a qual todos os verbos têm que terminar, no Modo In initivo, na vogal “a”. Para tal, a vogal da última sílaba do verbo tem que sair e ser substituída pela vogal “a”. Para determinarmos a informação que o verbo contém temos que, primeiramente determinar qual a vogal que o “a inal” convencional e ictício esconde e assim descobrir qual a última sílaba real e, daí, qual o verbo original e só assim, com o signi icado da última sílaba mais o das restantes poderemos conhecer a informação que o verbo veicula.
Para exempli icar tomemos o verbo “ku longa”, que se traduz por “ensinar”. Depois de algum exercício de análise concluímos que a real vogal inal é “u”, a real sílaba inal é “ngu” e o verbo original é “longu”. A sílaba “ngu” tem, entre outros, o signi icado de “ignorância, o desconhecido, aquilo que se desconhece”, como em “mungu” (amanhã). “nobody knows tomorrow” (ninguém conhece o amanhã), diz-se, em inglês . Assim, considerando que “lo” representa “baixar”, como já sabemos, “ku longa”, ensinar, signi ica “fa- zer baixar, diminuir, o nível de desconhecimento, de ignorância, a alguém, em determinada matéria”
Demonstração da competência de uma língua bantu
No presente trabalho, pretendemos mostrar o dinamismo e a competência de uma língua bantu.
Pretendemos demonstrar a competência da língua mostrando que, com apenas oito palavras, podemos dar a visão bantu de uma parte da sociedade – a Família. Essas palavras são: dyala (homem), mwadi (marido), muhatu (mulher), mukaji (esposa), mona ( ilho, criança), holome ( genro), mbalakaji (nora) e ukoakimi (sogro, sogra)
- Dyala (di-a-la): homem. Em “dyala”, “la” representa “lugar” e refere-se, neste caso, à casa, aos bens patrimoniais, à herança. Isso signi ica que, numa família, sem esquecer os aspectos ligados à matrilinearidade, é aos homens a quem, de direito, compete a herança e, particularmente, o lugar, a casa, a propriedade. A vogal “a” indica que há outros direitos e obrigações, pois a vogal “a” representa, entre outras coisas, dois valores diferentes e, até, cotrários: 1 – não só (mas também), 2 – não tanto. A mulher herdará, com seu futuro marido, a herança que este terá na sua família. Referimo-nos, particularmente, à casa (terreno: kaji) onde ele a colocará. O signi icado de “kaji” veremos a seguir.
- Mwadi (mu-a-di): marido. Nesta palavra, a sílaba “di”, a mesma do verbo “ku dya” (ku di-a) representa “comida, sustento” e refere-se ao facto de que, na família, é ao homem, ao marido, que compete garantir o sustento do lar, independentemente da contribuição que a mulher possa dar nesta matéria. A vogal “a” signi ica que tem outras obrigações, como o dever de protecção ísica e moral da família.
- Muhatu (mu-ha-tu): mulher. Nesta palavra a sílaba “tu” representa “o ser” e “ha” representa “limitação, impedimento, handicap”. Essas limitações, em meu entendimento, não são de natureza ísica ou psíquica, mas de natureza social: não pode fazer isso, não pode fazer aquilo, isso é feio, aquilo parece mal, etc., etc.. Note-se que aquele “ha” é o mesmo “ha” de “haxi” (doente) e de “ku haha” (respirar com di iculdade, próprio de quem acabou de correr muito ou situação semelhante)
- “Mukaji” (mu-kaji) (ka-ji): esposa. Nesta palavra, encontramos um código composto, que é “kaji”. “Kaji” é composto de “ka”, que representa “zero” e “ji” que representa “aumento, mais valia”. “Kaji” é , pois, por exemplo, um terreno que, se não estiver aproveitado, com uma construção, uma lavra produtiva, etc. é “ka” (não tem valor ou tem pouco valor). S e estiver bem aproveitado é “ji” (mais valia). Então, um homem coloca uma mulher na sua “kaji” (na kaji) e ela ica sua “mu kaji”. Note que a tradução de “mu” é, mesmo, “em, no, na”, portanto “na kaji” dará, efectivamente, “mu kaji”. Ela pe- ga em pessoas da sua família ou contrata “idimakaji” , agricultores (plural de “kidimakaji) e transforma aquilo que inicialmente era “ka” em “ji”. A conclusão moral e social a tirar desta palavra é que uma mulher, na tradição bantu (e não só) só é, de facto, esposa de um homem, quando ele a coloca na sua “kaji”, na sua casa e, como é sabido, para tal, o homem tem condições prévias a satisfazer – o alembamento.
- “Holome” (ho-lo-me): genro. Nesta palavra “ho” representa “voz”, pois a sílaba “ho” é o código para “barulho, grande som vocal”, a mesma sílaba de “hoji” (leão), o animal do rugido. A mesma sílaba de “ku kohona” (ko-ho-na) que para uns é tossir e para outros é ressonar. “Lo”, como já é sabdo representa “para baixo”. Essta palavra presta a informação segundo a qual o genro “deve baixar a voz” na casa dos sogros. O mesmo é dizer que o genro deve ser respeitador na casa dos sogros, não se deve arrogar atitudes de mando e, não só na casa dos sogros. Ele deve ver os sogros – pais da sua esposa – como seus pais. A palavra “holome” contém, de forma evidente, uma parte sensível do estatuto do referente que designa.
- Mbalakaji (mbala-kaji): nora. Esta palavra é formada por dois elementos sendo o primeiro, “mbala”, uma base não realizada na língua como palavra e o segundo, uma base que já é do nosso conhecimento, “kaji”, que entra na formação de palavras como”mukaji, kidimakaji e mbalakaji”. “Mbala” é um lugar (la) habitado,ou seja, um lugar com pessoas (mba) e não um ermo. “Mba”, num dos seus signi icados é o código para “reino animal” (pessoas e animais). Num outro campo “mba” representa “música” (semba, samba, rumba, ku imba: cantar, dimba: tecla musical e género musical, marimba, berimbau, etc.). Assim, “mbala” é um lugar, um terreno, pertencente a um casal, que é dado a seus ilhos, a medida que se casam e onde cada um coloca a sua mulher, numa parcela que se constitui em sua “kaji”. O conjunto dessas “kaji” constitui uma “mbala” – espécie de pequeno bairro, bairro dos ilhos de uma família. Cada uma das ocupantes dessa unidade territorial familiar é, com relação aos pais do seu marido, uma “mbalakaji”.
- mona (mwana) (mu-a-na): ilho, criança. A contracção de “u”e “a” deu “o”, assim, “mwana” deu “mona”. Em “mona” (mwana) a sílaba “na”, que representa “grande”, signi ica que as crinças representam o grupo maioritário na comunidade. A sílaba “a” signi ica que, apesar desse facto ser verdadeiro, elas não signi icam apenas isso – elas cumprem determinada função e tarefas na comunidade. Também o facto de não haver, na língua uma palavra especí ica que seja só para ilho, signi ica que o ilho, a criança, de certa forma, pertence tanto aos progenitores como à comunidade em geral, com as devidas limitações, é claro.
Conclusão
Diremos, em conclusão que, o volume de informação que nos é fornecida por essas poucas palavras é su iciente para dar-nos uma ideia clara das relações dessa franja da sociedade que é a família. Veja-se como noções de natureza matemática e outras são chamadas para formar ideias. Obter uma informação tão vasta como esta, a partir de um número tão limitado de palavras, é ao que chamo competência de uma língua e ia assim demonstrada a competência de uma língua bantu.
Para fazer o mesmo nas línguas das sociedades dotadas de escrita que conhecemos – estudei as duas línguas germânicas, o latim e umas quantas línguas novilatinas, não conheço chinês, o japonês nem o árabe – seria necessário um manual. Concluo, pois, que a falta de escrita não limita a intelectualidade destes povos, os Bantu, que são capazes de com as suas palavras – não ainda com os seus discursos – tudo nos explicar. Acrescente-se a isso os contos, provérbios, anedotas e adivinhas e o que nos ensinam esses géneros da tradição oral e ique-se com a ideia da dimensão intelectual dos Bantu. Por favor, leia “bántu”, como se fosse uma palavra portuguesa escrita “banto” e não “bantú”.