DIVISÃO DO MOVIMENTO NACIONALISTA E CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO ANGOLANA
Nos dias de hoje, por mais acentuadas que se apresentem as diferenças, já não são elas que promovem as principais contradições antagónicas entre as pessoas. Por si só, as diferenças, em contexto de multiculturalidade e plurilinguismo, já não são vistas como únicos factores impeditivos de concertação,indispensáveisà unidade nacional e ao progresso económico e social. Na maior parte das vezes, são apenas os estereótipos, a intolerância e a falta de sentido de alteridade, que, em primeira instância, impulsionam as pessoas a não aceitar essas diferenças, incluindo as de opinião.
Angola deverá ter sido, muito provavelmente, um dos países com maior memória de con litos armados na história do moderno nacionalismo africano. Entre 4 de Fevereiro de 1961, data do início da luta armada contra o regime colonial português e 4 de Abril de 2002, data do Protocolo de Entendimento entre o Governo da República de Angola e a UNITA, passaram-se mais de quatro décadas de acções militares, caracterizadas pelas seguintes três fases: guerra pela Independência Nacional; guerra civil com o envolvimento de tropas estrangeiras; guerra civil pela extensão da administração do Estado a todo o território.
Angola é, por conseguinte, um país africano em desenvolvimento, multicultultural e plurilingue, rico em matérias- primas, recentemente saído de uma prolongada guerra civil. É também um país caracterizado por ser detentor de uma população jovem que, na sua maioria, é iletrada, pouco qualificada e com fraca competência no domínio da sua língua oficial e de escolaridade.
1. Factores que originaram a divisão do moderno nacionalismo africano
Antropologicamente, Benedict Anderson de ine a nação como sendo uma comunidade imaginada, já que não se torna possível conhecer, encontrar ou sequer ouvir falar da maioria dos compatriotas, embora, na mente de cada um, esteja viva a imagem da comunhão entre todos os seus membros [ANDERSON; cit. in, SILVA: s/p].
Por razões de ordem histórica, as fronteiras dos novos países africanos, na sua grande maioria independentes a partir da década de 60, já se encontravam delineadas desde a Conferência de Berlim (1884-1885), de acordo com os interesses das antigas potências coloniais. Coube depois a cada um dos novos Estados africanos a tarefa de criar a nação, enquanto con igura- ção política e intelectual, no seio das diversidades culturais existentes. Um processo educativo que implica na interiorização de uma nova identidade – a nação – que terá de conviver com os diferentes sentidos de pertença adquiridos no seio familiar ou sociocultural, numa lógica de complementaridade, onde se leva em conta o multiculturalismo como realidade sociológica e a interculturalidade como estratégia de interacção com o Outro, aceitando-o na sua diferença.
Angola é, portanto, um Estado-Nação em sedimentação, pois congregou grupos etno-linguísticos, cujos membros estão a ser sensibilizados para a construção de uma identidade nacional. A mesma, para ser forte, terá de respeitar e integrar todas as culturas em presença, o que implica na necessidade de um processo de educação intercultural, que tenha como propósito a criação da nação de um só povo, como identidade política.
Independentemente de quaisquer reacções sentimentais que o desenvolvimento deste projecto de construção nacional desperte, estamos, pois, perante uma dura realidade: Os efeitos do Estado-Nação em África após a adopção de um paradigma de nacionalismo que “todos os ilósofos políticos tinham ensinado na sequência da Revolução Francesa” [KEDOURIE; cit. in, Davidson: 131]. Segundo Elie-Kedourie, uma doutrina inventada na Europa, no início do século XIX, e imposta a África apesar das especi icidades das suas realidades culturais e das diferentes experiências políticas précoloniais. Neste contexto, o sociólogo e escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho referiu o seguinte:
“Pode ser ainda mais chocante e desconcertante admitir, apoiados em constatações situacionais, de terreno, que para uma grande parte das populações angolanas o Estado só é perceptível através das suas expressões explícitas: as do poder armado, uma vez que as outras instituições que materializam o Estado deixaram de estar presentes por quase toda a parte. Ora esse poder-armado, muitas vezes em grandes extensões do território e nalguns casos desde sempre, quer dizer, desde que se atribui a Angola o estatuto de país independente, nem sempre emana do Estado, emana também de formações que aspiram ao controlo do Estado e por isso lutam. As populações lidam portanto sobretudo com expressões de poder que, independentemente das entidades que as accionam, se referem de qualquer forma a um Poder de Estado, ou porque lutam para preservá-lo ou porque o fazem para conquistálo.” [CARVALHO: 7].
No período pré-colonial, diferentes grupos etnolinguísticos com autonomia política organizaram-se em reinos, que emergiram em diferentes épocas através de chefes de linhagem, detentores de poder económico e prestígio alcançado junto das suas comunidades. É assim que se conhece, entre outros, a formação do reino do Kongo, entre os séculos XIII e XV; dos reinos do Ndongo, de Matamba, de Kassange, da Kissama e do Sudoeste, entre os séculos XVI e XVII; dos reinos do Planalto Central, entre os séculos XVI e XVIII; dos reinos da Lunda-Tchokwé, entre os séculos XVI e XIX.
O movimento nacionalista angolano, não só por razões de ordem histórica e cultural nasceu e cresceu dividido, mas também, por razões de ordem ideológica, fruto do contexto da Guerra- fria. Todos estes factores conjugados estão na origem da divisão do moderno movimento nacionalista angolano e consequentemente na origem de uma guerra fratricida que durou décadas.
Após 14 anos de luta de libertação nacional contra a administração colonial portuguesa, acrescidos de quase três décadas de guerra civil, muito poucos anos houve em que o calar total das armas foi efectivamente observado, se bem que, durante o período da guerra colonial, os três movimentos armados de libertação nacional já se guerreassem entre si. Ao longo de anos de guerra o povo angolano estava praticamente exangue, quer pelas agruras do seu passado, quer por um presente titubeante que teimava em não abrir portas ao futuro. Este nosso povo sofrido, com elevados índices de iliteracia, multicultural e plurilingue, que é fruto de um moderno nacionalismo fraccionado. Contrariamente a muitas nações já consolidadas, em muito pouco tempo vem aprendendo a conhecer o primado da paz ( já que em 40 anos de Independência, apenas os 14 últimos foram de paz), do Estado de direito democrático, dos direitos humanos e da justiça social. É com base nesta dura realidade e nestas condições adversas e tão extremas que a Nação angolana se vem forjando e construindo uma identidade colectiva. Tanto em Angola, como em toda a África, “a projecção deliberada da consciência nacional e da sua imagem para o exterior, no contexto nação (…), é matéria que diz mais directamente respeito à consciência e à acção das elites nacionais do que às populações indiferenciadas (…)” [Idem: 8]
2. Angolanidade como factor de identidade ideológica
É certo que foi a guerra que uniu os angolanos e os levou à Independência na luta contra a administração colonial. Todavia foi também a guerra, entre os próprios angolanos, que impediu todo e qualquer programa estruturante de desenvolvimento económico e social no país. Mas, contrariamente ao que ocorre nas guerras pela
autonomia política, não há vencedores nas guerras civis. Todos perdem. E o maior dos perdedores é sempre o povo, que passa a inculcar um baixo sentido de auto-estima.
A guerra tornou-se, em Angola, em factor de identidade, porque, para todas as populações, havia uma mesma referência institucional: o Estado angolano. E para todas elas, também, uma mesma referência dinamizadora: o con lito angolano.[Idem: 6]. Dois elementos dinâmicos e aglutinadores, que intervindo pela positiva – no caso da luta pela independência – ou pela negativa – no caso da guerra civil – apresentaram como propósito a con iguração da Nação angolana.
A guerra em Angola, ao atingir todos os angolanos, a par da herança tradicional maioritariamente bantu, do contacto de meio milénio com a língua e cultura portuguesa, e dos movimentos associativistas e protonacionalistas que estão na origem do moderno nacionalismo angolano, foi também factor de identidade. Pela sua própria natureza foi factor dissociativo, com o seu cortejo in indável de tragédias. Paradoxalmente foi também factor associativo ao atingir toda a sociedade angolana, independentemente da origem etnolinguística, religiosa, sócio-económica ou ideológica dos próprios angolanos.
Por ensaio e erro, a guerra em Angola e os consequentes horrores provocados pela mesma constituíram uma dura e amarga aprendizagem, para todo o povo angolano. Por maiores que sejam os problemas do país, os mesmos não poderão continuar a ser resolvidos através da violência, pois quando um povo ignora o seu passado, tem tendência a repeti-lo. O único caminho possível é o da paz e o do diálogo, vias construtivas para a unidade e para o progresso económico e social. O respeito e a aceitação da diferença, em todos os sentidos, serão hoje condição necessária para o estabelecimento de uma cultura de paz, indispensável à construção da angolanidade e ao desenvolvimento económico e social do país. Porém, devo sublinhar, que a consolidação da identidade nacional, não signi ica a amputação dos outros sentidos de pertença.
Diz- nos Amin Maalouf, no seu livro “Identidades Assassinas”, um franco- libanês que foi chefe de redacção da revista Jeune Afrique e mais tarde editorialista dessa mesma revista, o seguinte:
“A identidade de cada pessoa é constituída por uma multiplicidade de elementos, que não se limitam evidentemente aos que iguram nos registos o iciais. Existe claro, para a maior parte das pessoas, a pertença a uma tradição religiosa, a uma nacionalidade, por vezes duas; a um grupo étnico ou linguístico; a uma família mais ou menos alargada; a uma pro issão; a uma instituição; a um determinado meio social… Mas a lista é bem mais extensa, virtualmente ilimitada; pode sentir-se uma pertença mais ou menos forte a uma província, a uma aldeia, a um bairro, a um clã, a uma equipa desportiva ou pro issional, a um grupo de amigos, a uma empresa, a um partido, a uma associação, a uma comunidade de pessoas que partilham as mesmas paixões, as mesmas preferências sexuais, as mesmas diminuições ísicas, ou que se acham confrontadas com os mesmos problemas. Estas pertenças não têm, evidentemente, a mesma importância, pelo menos, não ao mesmo tempo. Mas nenhuma delas é totalmente desprovida de importância. Elas são os elementos constitutivos da personalidade, poder-se-ia quase dizer ‘os genes da alma’, na condição de precisarmos que, na sua maior parte, não são inatos.”[MAALOUF: 18-19]
A título de exemplo, uma criança Lucaze, nascida na província do Moxico, será uma criança ligada à cultura do grupo etnolinguístico Ngangela que, na escola, irá ganhar outros sentidos de pertença: o de pertencer à província do Moxico e, primeiro do que tudo, o facto de ser angolana. A aquisição de um sentido de “pátria ideológica” que, para além do grupo etnolinguístico a que pertence (pátria privada), lhe venha a proporcionar a inculcação de um sentido mais amplo de nação.
Na escola, essa criança Lucaze deverá aprender a situar-se de acordo com a sua própria idiossincrasia sócio-cultural, mas também com os seus futuros deveres e direitos de cidadania, em pé de igualdade com qualquer outra criança, futuro ou futura cidadã da República de Angola, independentemente, da cor de pele, do sexo, da religião, do subgrupo ou grupo etnolinguístico a que pertença. Em suma: A escola terá de educá- la para a alteridade e para as mais- valias que comporta a riqueza do mosaico cultural angolano.
Cada ser humano tem pertenças em comum. No caso do exemplo apresentado, estamos perante uma criança que é cidadã do mundo, que é também angolana, que tem uma origem bantu e que se associa a uma mesma civilização africana. Porém, há que admitir a existência, em igualdade de direitos e de deveres, de outras crianças angolanas, com diferentes pertenças. Como referia Mário Pinto de Andrade:
“A angolanidade requer enraizamento cultural e totalizante das comunidades humanas, abarca e ultrapassa dialecticamente os particularismos das regiões e das etnias, em direcção à nação. Esta opõe-se a todas as variantes de oportunismo (com as evidentes implicações políticas) que procuram estabelecer uma correspondência automática entre a dose de melanina e a dita autenticidade angolana. Ela é, pelo contrário, linguagem da historicidade de um povo.” [ANDRADE: In, ANDRADE; cit. in, KAJIBANGA: 94]
O Estado angolano ao procurar envolver todos os angolanos num mesmo projecto de construção da nação, considera, num processo de geometria variável, a existência das diferentes culturas que comportam diferentes identidades privadas, porque, em Angola (como praticamente em toda a África), as sociedades são multiculturais e plurilingues, o que torna as pessoas idiossincraticamente diferentes. A escolarização obrigatória não é um processo onde as crianças entram diferentes e saem iguais; ou seja, como átomos sociais de um paradigma institucionalizado por decreto. O que a escola terá de ser capaz de fazer, no actual contexto da planetização da economia, é forjar, no seio das identidades culturais já existentes, a emergência de um outro sentido de pertença, mais amplo e mais forte, o da identidade nacional, ou seja, o sentido de angolanidade.
Ao aceitarmos este desa io, pressupomos que as pessoas, bem como as comunidades nas aldeias, comunas, municípios e províncias são susceptíveis de aperfeiçoamento, desde que sujeitas a um processo de aprendizagem inteligente, re lexivo e signi icativo; ou seja, um paradigma de educação que permita a interiorização de novos conhecimentos, pela associação ou ancoragem a estruturas cognitivas pré-existentes – os chamados pré-requisitos – que, ainda antes da vida escolar, começam a ser apreendidos no seio da família, no grupo de amigos e no ambiente sociocultural em que crianças e adultos pertencem.
É a partir de uma maior consciencialização do multiculturalismo e plurilinguismo existentes no espaço geográ ico angolano, que, paulatinamente, teremos de assumir os aspectos positivos e os negativos da nossa história e continuar a reconciliar e a construir o sentido de angolanidade em crianças, jovens e adultos. Contudo, um projecto educativo desta envergadura nunca é fácil de implementar. Implica persistência e terá que ser introduzido nas escolas, desde as primeiras classes. Da aceitação teórica do discurso pedagógico à mudança de atitutes menos correctas na prática quotidiana há, por vezes, uma grande distância. Como afirma ainda Amin Maalouf:
“(…) sei que não é realista esperar de todos os nossos contemporâneos que modi iquem de um dia para outro os seus hábitos de expressão. Mas parece-me importante que cada um de nós tome consciência do facto de que as nossas palavras não são inocentes e de que as mesmas contribuem para perpetuar preconceitos que demonstraram ser, ao longo da História, perversos e assassinos. Porque é o nosso olhar que aprisiona muitas vezes os outros nas suas pertenças mais estritas e é também o nosso olhar que tem o poder de os libertar.” [Idem: 31]
3. A questão étnica face à emergência da edi icação da nação
Subscrevo inteiramente a a irmação do investigador António Custódio Gonçalves, sociólogo português e um dos maiores especialistas sobre a história do Reino do Kongo,quando refere que as identidades culturais têm sido concebidas como rígidas e imutáveis e não como processos de identificação que se estabelecem num determinado tempo e espaço. Assim sendo, esses processos dão origem a uma sucessão de autocriações constantes, que se configuram de uns tempos para outros.
As etnias são, portanto, “significantes flutuantes” e o conceito de etnia deve ser analisado “como uma categoria de nomeação e de classificação, cuja continuidade depende de uma fronteira e de uma codificação constantemente renovada das diferenças culturais, entre grupos vizinhos.” Os indivíduos, tal como os grupos sociais são, ou deixam de ser, segundo o espaço e o tempo, membros de uma determinada etnia.
As formas de organização social na África pré-colonial estão associadas a “processos constantes de composição, decomposição e recomposição, que se desenvolvem no interior de um espaço e que fundamentam a consciência de uma pertença de identidade individual ou de uma identi icação colectiva.”
A colonização limitou-se a cristalizar num território fixo e institucional identidades individuais e identificações colectivas, dando origem a uma série de “safaris ideológicos, que passaram depois a processos de dominação política, económica ou ideológica de um grupo por outro.” Neste contexto “(...) é necessário conhecer quem pergunta pela identidade, em que condições, contra quem, com que propósitos e com que resultados.” [GONÇALVES: 12]