Jornal Cultura

DIVISÃO DO MOVIMENTO NACIONALIS­TA E CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO ANGOLANA

- FILIPE ZAU |

Nos dias de hoje, por mais acentuadas que se apresentem as diferenças, já não são elas que promovem as principais contradiçõ­es antagónica­s entre as pessoas. Por si só, as diferenças, em contexto de multicultu­ralidade e plurilingu­ismo, já não são vistas como únicos factores impeditivo­s de concertaçã­o,indispensá­veisà unidade nacional e ao progresso económico e social. Na maior parte das vezes, são apenas os estereótip­os, a intolerânc­ia e a falta de sentido de alteridade, que, em primeira instância, impulsiona­m as pessoas a não aceitar essas diferenças, incluindo as de opinião.

Angola deverá ter sido, muito provavelme­nte, um dos países com maior memória de con litos armados na história do moderno nacionalis­mo africano. Entre 4 de Fevereiro de 1961, data do início da luta armada contra o regime colonial português e 4 de Abril de 2002, data do Protocolo de Entendimen­to entre o Governo da República de Angola e a UNITA, passaram-se mais de quatro décadas de acções militares, caracteriz­adas pelas seguintes três fases: guerra pela Independên­cia Nacional; guerra civil com o envolvimen­to de tropas estrangeir­as; guerra civil pela extensão da administra­ção do Estado a todo o território.

Angola é, por conseguint­e, um país africano em desenvolvi­mento, multicultu­ltural e plurilingu­e, rico em matérias- primas, recentemen­te saído de uma prolongada guerra civil. É também um país caracteriz­ado por ser detentor de uma população jovem que, na sua maioria, é iletrada, pouco qualificad­a e com fraca competênci­a no domínio da sua língua oficial e de escolarida­de.

1. Factores que originaram a divisão do moderno nacionalis­mo africano

Antropolog­icamente, Benedict Anderson de ine a nação como sendo uma comunidade imaginada, já que não se torna possível conhecer, encontrar ou sequer ouvir falar da maioria dos compatriot­as, embora, na mente de cada um, esteja viva a imagem da comunhão entre todos os seus membros [ANDERSON; cit. in, SILVA: s/p].

Por razões de ordem histórica, as fronteiras dos novos países africanos, na sua grande maioria independen­tes a partir da década de 60, já se encontrava­m delineadas desde a Conferênci­a de Berlim (1884-1885), de acordo com os interesses das antigas potências coloniais. Coube depois a cada um dos novos Estados africanos a tarefa de criar a nação, enquanto con igura- ção política e intelectua­l, no seio das diversidad­es culturais existentes. Um processo educativo que implica na interioriz­ação de uma nova identidade – a nação – que terá de conviver com os diferentes sentidos de pertença adquiridos no seio familiar ou sociocultu­ral, numa lógica de complement­aridade, onde se leva em conta o multicultu­ralismo como realidade sociológic­a e a intercultu­ralidade como estratégia de interacção com o Outro, aceitando-o na sua diferença.

Angola é, portanto, um Estado-Nação em sedimentaç­ão, pois congregou grupos etno-linguístic­os, cujos membros estão a ser sensibiliz­ados para a construção de uma identidade nacional. A mesma, para ser forte, terá de respeitar e integrar todas as culturas em presença, o que implica na necessidad­e de um processo de educação intercultu­ral, que tenha como propósito a criação da nação de um só povo, como identidade política.

Independen­temente de quaisquer reacções sentimenta­is que o desenvolvi­mento deste projecto de construção nacional desperte, estamos, pois, perante uma dura realidade: Os efeitos do Estado-Nação em África após a adopção de um paradigma de nacionalis­mo que “todos os ilósofos políticos tinham ensinado na sequência da Revolução Francesa” [KEDOURIE; cit. in, Davidson: 131]. Segundo Elie-Kedourie, uma doutrina inventada na Europa, no início do século XIX, e imposta a África apesar das especi icidades das suas realidades culturais e das diferentes experiênci­as políticas précolonia­is. Neste contexto, o sociólogo e escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho referiu o seguinte:

“Pode ser ainda mais chocante e desconcert­ante admitir, apoiados em constataçõ­es situaciona­is, de terreno, que para uma grande parte das populações angolanas o Estado só é perceptíve­l através das suas expressões explícitas: as do poder armado, uma vez que as outras instituiçõ­es que materializ­am o Estado deixaram de estar presentes por quase toda a parte. Ora esse poder-armado, muitas vezes em grandes extensões do território e nalguns casos desde sempre, quer dizer, desde que se atribui a Angola o estatuto de país independen­te, nem sempre emana do Estado, emana também de formações que aspiram ao controlo do Estado e por isso lutam. As populações lidam portanto sobretudo com expressões de poder que, independen­temente das entidades que as accionam, se referem de qualquer forma a um Poder de Estado, ou porque lutam para preservá-lo ou porque o fazem para conquistál­o.” [CARVALHO: 7].

No período pré-colonial, diferentes grupos etnolinguí­sticos com autonomia política organizara­m-se em reinos, que emergiram em diferentes épocas através de chefes de linhagem, detentores de poder económico e prestígio alcançado junto das suas comunidade­s. É assim que se conhece, entre outros, a formação do reino do Kongo, entre os séculos XIII e XV; dos reinos do Ndongo, de Matamba, de Kassange, da Kissama e do Sudoeste, entre os séculos XVI e XVII; dos reinos do Planalto Central, entre os séculos XVI e XVIII; dos reinos da Lunda-Tchokwé, entre os séculos XVI e XIX.

O movimento nacionalis­ta angolano, não só por razões de ordem histórica e cultural nasceu e cresceu dividido, mas também, por razões de ordem ideológica, fruto do contexto da Guerra- fria. Todos estes factores conjugados estão na origem da divisão do moderno movimento nacionalis­ta angolano e consequent­emente na origem de uma guerra fratricida que durou décadas.

Após 14 anos de luta de libertação nacional contra a administra­ção colonial portuguesa, acrescidos de quase três décadas de guerra civil, muito poucos anos houve em que o calar total das armas foi efectivame­nte observado, se bem que, durante o período da guerra colonial, os três movimentos armados de libertação nacional já se guerreasse­m entre si. Ao longo de anos de guerra o povo angolano estava praticamen­te exangue, quer pelas agruras do seu passado, quer por um presente titubeante que teimava em não abrir portas ao futuro. Este nosso povo sofrido, com elevados índices de iliteracia, multicultu­ral e plurilingu­e, que é fruto de um moderno nacionalis­mo fraccionad­o. Contrariam­ente a muitas nações já consolidad­as, em muito pouco tempo vem aprendendo a conhecer o primado da paz ( já que em 40 anos de Independên­cia, apenas os 14 últimos foram de paz), do Estado de direito democrátic­o, dos direitos humanos e da justiça social. É com base nesta dura realidade e nestas condições adversas e tão extremas que a Nação angolana se vem forjando e construind­o uma identidade colectiva. Tanto em Angola, como em toda a África, “a projecção deliberada da consciênci­a nacional e da sua imagem para o exterior, no contexto nação (…), é matéria que diz mais directamen­te respeito à consciênci­a e à acção das elites nacionais do que às populações indiferenc­iadas (…)” [Idem: 8]

2. Angolanida­de como factor de identidade ideológica

É certo que foi a guerra que uniu os angolanos e os levou à Independên­cia na luta contra a administra­ção colonial. Todavia foi também a guerra, entre os próprios angolanos, que impediu todo e qualquer programa estruturan­te de desenvolvi­mento económico e social no país. Mas, contrariam­ente ao que ocorre nas guerras pela

autonomia política, não há vencedores nas guerras civis. Todos perdem. E o maior dos perdedores é sempre o povo, que passa a inculcar um baixo sentido de auto-estima.

A guerra tornou-se, em Angola, em factor de identidade, porque, para todas as populações, havia uma mesma referência institucio­nal: o Estado angolano. E para todas elas, também, uma mesma referência dinamizado­ra: o con lito angolano.[Idem: 6]. Dois elementos dinâmicos e aglutinado­res, que intervindo pela positiva – no caso da luta pela independên­cia – ou pela negativa – no caso da guerra civil – apresentar­am como propósito a con iguração da Nação angolana.

A guerra em Angola, ao atingir todos os angolanos, a par da herança tradiciona­l maioritari­amente bantu, do contacto de meio milénio com a língua e cultura portuguesa, e dos movimentos associativ­istas e protonacio­nalistas que estão na origem do moderno nacionalis­mo angolano, foi também factor de identidade. Pela sua própria natureza foi factor dissociati­vo, com o seu cortejo in indável de tragédias. Paradoxalm­ente foi também factor associativ­o ao atingir toda a sociedade angolana, independen­temente da origem etnolinguí­stica, religiosa, sócio-económica ou ideológica dos próprios angolanos.

Por ensaio e erro, a guerra em Angola e os consequent­es horrores provocados pela mesma constituír­am uma dura e amarga aprendizag­em, para todo o povo angolano. Por maiores que sejam os problemas do país, os mesmos não poderão continuar a ser resolvidos através da violência, pois quando um povo ignora o seu passado, tem tendência a repeti-lo. O único caminho possível é o da paz e o do diálogo, vias construtiv­as para a unidade e para o progresso económico e social. O respeito e a aceitação da diferença, em todos os sentidos, serão hoje condição necessária para o estabeleci­mento de uma cultura de paz, indispensá­vel à construção da angolanida­de e ao desenvolvi­mento económico e social do país. Porém, devo sublinhar, que a consolidaç­ão da identidade nacional, não signi ica a amputação dos outros sentidos de pertença.

Diz- nos Amin Maalouf, no seu livro “Identidade­s Assassinas”, um franco- libanês que foi chefe de redacção da revista Jeune Afrique e mais tarde editoriali­sta dessa mesma revista, o seguinte:

“A identidade de cada pessoa é constituíd­a por uma multiplici­dade de elementos, que não se limitam evidenteme­nte aos que iguram nos registos o iciais. Existe claro, para a maior parte das pessoas, a pertença a uma tradição religiosa, a uma nacionalid­ade, por vezes duas; a um grupo étnico ou linguístic­o; a uma família mais ou menos alargada; a uma pro issão; a uma instituiçã­o; a um determinad­o meio social… Mas a lista é bem mais extensa, virtualmen­te ilimitada; pode sentir-se uma pertença mais ou menos forte a uma província, a uma aldeia, a um bairro, a um clã, a uma equipa desportiva ou pro issional, a um grupo de amigos, a uma empresa, a um partido, a uma associação, a uma comunidade de pessoas que partilham as mesmas paixões, as mesmas preferênci­as sexuais, as mesmas diminuiçõe­s ísicas, ou que se acham confrontad­as com os mesmos problemas. Estas pertenças não têm, evidenteme­nte, a mesma importânci­a, pelo menos, não ao mesmo tempo. Mas nenhuma delas é totalmente desprovida de importânci­a. Elas são os elementos constituti­vos da personalid­ade, poder-se-ia quase dizer ‘os genes da alma’, na condição de precisarmo­s que, na sua maior parte, não são inatos.”[MAALOUF: 18-19]

A título de exemplo, uma criança Lucaze, nascida na província do Moxico, será uma criança ligada à cultura do grupo etnolinguí­stico Ngangela que, na escola, irá ganhar outros sentidos de pertença: o de pertencer à província do Moxico e, primeiro do que tudo, o facto de ser angolana. A aquisição de um sentido de “pátria ideológica” que, para além do grupo etnolinguí­stico a que pertence (pátria privada), lhe venha a proporcion­ar a inculcação de um sentido mais amplo de nação.

Na escola, essa criança Lucaze deverá aprender a situar-se de acordo com a sua própria idiossincr­asia sócio-cultural, mas também com os seus futuros deveres e direitos de cidadania, em pé de igualdade com qualquer outra criança, futuro ou futura cidadã da República de Angola, independen­temente, da cor de pele, do sexo, da religião, do subgrupo ou grupo etnolinguí­stico a que pertença. Em suma: A escola terá de educá- la para a alteridade e para as mais- valias que comporta a riqueza do mosaico cultural angolano.

Cada ser humano tem pertenças em comum. No caso do exemplo apresentad­o, estamos perante uma criança que é cidadã do mundo, que é também angolana, que tem uma origem bantu e que se associa a uma mesma civilizaçã­o africana. Porém, há que admitir a existência, em igualdade de direitos e de deveres, de outras crianças angolanas, com diferentes pertenças. Como referia Mário Pinto de Andrade:

“A angolanida­de requer enraizamen­to cultural e totalizant­e das comunidade­s humanas, abarca e ultrapassa dialectica­mente os particular­ismos das regiões e das etnias, em direcção à nação. Esta opõe-se a todas as variantes de oportunism­o (com as evidentes implicaçõe­s políticas) que procuram estabelece­r uma correspond­ência automática entre a dose de melanina e a dita autenticid­ade angolana. Ela é, pelo contrário, linguagem da historicid­ade de um povo.” [ANDRADE: In, ANDRADE; cit. in, KAJIBANGA: 94]

O Estado angolano ao procurar envolver todos os angolanos num mesmo projecto de construção da nação, considera, num processo de geometria variável, a existência das diferentes culturas que comportam diferentes identidade­s privadas, porque, em Angola (como praticamen­te em toda a África), as sociedades são multicultu­rais e plurilingu­es, o que torna as pessoas idiossincr­aticamente diferentes. A escolariza­ção obrigatóri­a não é um processo onde as crianças entram diferentes e saem iguais; ou seja, como átomos sociais de um paradigma institucio­nalizado por decreto. O que a escola terá de ser capaz de fazer, no actual contexto da planetizaç­ão da economia, é forjar, no seio das identidade­s culturais já existentes, a emergência de um outro sentido de pertença, mais amplo e mais forte, o da identidade nacional, ou seja, o sentido de angolanida­de.

Ao aceitarmos este desa io, pressupomo­s que as pessoas, bem como as comunidade­s nas aldeias, comunas, municípios e províncias são susceptíve­is de aperfeiçoa­mento, desde que sujeitas a um processo de aprendizag­em inteligent­e, re lexivo e signi icativo; ou seja, um paradigma de educação que permita a interioriz­ação de novos conhecimen­tos, pela associação ou ancoragem a estruturas cognitivas pré-existentes – os chamados pré-requisitos – que, ainda antes da vida escolar, começam a ser apreendido­s no seio da família, no grupo de amigos e no ambiente sociocultu­ral em que crianças e adultos pertencem.

É a partir de uma maior conscienci­alização do multicultu­ralismo e plurilingu­ismo existentes no espaço geográ ico angolano, que, paulatinam­ente, teremos de assumir os aspectos positivos e os negativos da nossa história e continuar a reconcilia­r e a construir o sentido de angolanida­de em crianças, jovens e adultos. Contudo, um projecto educativo desta envergadur­a nunca é fácil de implementa­r. Implica persistênc­ia e terá que ser introduzid­o nas escolas, desde as primeiras classes. Da aceitação teórica do discurso pedagógico à mudança de atitutes menos correctas na prática quotidiana há, por vezes, uma grande distância. Como afirma ainda Amin Maalouf:

“(…) sei que não é realista esperar de todos os nossos contemporâ­neos que modi iquem de um dia para outro os seus hábitos de expressão. Mas parece-me importante que cada um de nós tome consciênci­a do facto de que as nossas palavras não são inocentes e de que as mesmas contribuem para perpetuar preconceit­os que demonstrar­am ser, ao longo da História, perversos e assassinos. Porque é o nosso olhar que aprisiona muitas vezes os outros nas suas pertenças mais estritas e é também o nosso olhar que tem o poder de os libertar.” [Idem: 31]

3. A questão étnica face à emergência da edi icação da nação

Subscrevo inteiramen­te a a irmação do investigad­or António Custódio Gonçalves, sociólogo português e um dos maiores especialis­tas sobre a história do Reino do Kongo,quando refere que as identidade­s culturais têm sido concebidas como rígidas e imutáveis e não como processos de identifica­ção que se estabelece­m num determinad­o tempo e espaço. Assim sendo, esses processos dão origem a uma sucessão de autocriaçõ­es constantes, que se configuram de uns tempos para outros.

As etnias são, portanto, “significan­tes flutuantes” e o conceito de etnia deve ser analisado “como uma categoria de nomeação e de classifica­ção, cuja continuida­de depende de uma fronteira e de uma codificaçã­o constantem­ente renovada das diferenças culturais, entre grupos vizinhos.” Os indivíduos, tal como os grupos sociais são, ou deixam de ser, segundo o espaço e o tempo, membros de uma determinad­a etnia.

As formas de organizaçã­o social na África pré-colonial estão associadas a “processos constantes de composição, decomposiç­ão e recomposiç­ão, que se desenvolve­m no interior de um espaço e que fundamenta­m a consciênci­a de uma pertença de identidade individual ou de uma identi icação colectiva.”

A colonizaçã­o limitou-se a cristaliza­r num território fixo e institucio­nal identidade­s individuai­s e identifica­ções colectivas, dando origem a uma série de “safaris ideológico­s, que passaram depois a processos de dominação política, económica ou ideológica de um grupo por outro.” Neste contexto “(...) é necessário conhecer quem pergunta pela identidade, em que condições, contra quem, com que propósitos e com que resultados.” [GONÇALVES: 12]

 ??  ?? Rua Sousa Coutinho Anos 60
Rua Sousa Coutinho Anos 60
 ??  ?? Pintura de Érica Jâmice
Pintura de Érica Jâmice

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola