Jornal Cultura

LOPITO FEIJÓO

“TODA A POESIA É DOUTRINÁRI­A”

- MARGARIDA GIL DOS REIS |

Poeta, ensaísta e crítico literário, Lopito Feijóo é um dos nomes internacio­nalmente mais conhecidos da literatura e da poesia angolana. Os 35 anos de carreira literária foram assinalado­s com a publicação do seu mais recente livro, Reuni Versos Doutrinári­os, que rea irma a visão de uma vida de que existe uma doutrina poética. “Porque acima de tudo: A POESIA!”, a irma Lopito no poema de abertura desta sua obra.

Existe um grande trabalho ao longo do seu percurso literário no contacto com os leitores. Esta é uma componente importante de uma espécie de 'missão' do escritor?

Terei que citar o David Mestre, um dos maiores críticos de literatura angolana, que sempre afirmou que uma geração só se afirma se tiver dentro dela os seus próprios críticos. Ele próprio foi uma das pessoas que mais me incentivou no trabalho de divulgação, junto das páginas culturais que existiam em Angola nos anos 80, e que eram escassas, e junto dos membros integrante­s da minha geração. Enquanto estudante de Direito, recordo- me de muitas vezes estudar para provas e ao ler os livros do meu curso encontrar técnicas de redacção, algum juízo crítico da sociedade nos meus próprios estudos. Estes factores levaram-me a enveredar pelo caminho do ensaio crítico. Abracei este caminho e nunca mais o deixei. Hoje sinto- me talhado e com sentido crítico apurado diante de qualquer modalidade artística.

De que forma começou a divulgar a sua obra?

Comecei a colaborar com jornais do mundo inteiro. A minha preocupaçã­o não era a de olhar para a minha obra, mas para o que os meus coetâneos faziam. Em alguns contextos, cheguei a divulgar poesia de elementos da minha geração em momentos dedicados à minha obra. Tudo isto deu-me uma responsabi­lidade social que, hoje, reconheço que vai muito mais além do que eu imaginava nos anos 80. E foi mesmo por via dessa responsabi­lidade social que em 1992 cheguei a Deputado da Assembleia Nacional aquando das primeiras eleições democrátic­as e multiparti­dárias em Angola. Signi ica que, por via da literatura, eu era já um agente cultural muito representa­tivo.

A determinad­a altura começou a olhar mais para a sua poesia?

Sim, comecei a olhar mais para a mi- nha escrita, para a promoção dela, para o apuramento estético-literário e até mesmo ético, e para a sua internacio­nalização. Esta abertura era muito importante porque no contexto de guerra em que vivíamos sentia-me um bocadinho sufocado. Nunca tive apetência para a emigração. Vivia exilado dentro da minha própria pátria.

Foi deputado da Assembleia Nacional durante 16 anos.

Tinha responsabi­lidades e não podia de todo abandonar o meu país. Mas nunca deixei de dizer que o exílio lá era muito mais di ícil. Vivemos em Angola num contexto muito di ícil, em que as pessoas queriam todas sair do país. Coube-me dizer às pessoas poeticamen­te que o exílio dentro da nossa própria terra era muito mais di ícil do que viver no exílio como muita gente vivia. Quando me libertei dessas funções de natureza política e mais burocrátic­a, engajei-me nessa internacio­nalização da minha obra. Em 2013, saí 13 vezes de Angola ao longo do ano. Em 2014, saí 10 vezes. Em 2015, saí 12 vezes. Neste ano, estive recentemen­te na Póvoa de Varzim. Dia 18 de Março, apresentei o meu primeiro livro traduzido para francês no Salão do Livro em Paris. Para Junho, tenho o festival AFRAKA no Brasil, depois tenho a reunião da Academia ALPAS-21 também no Brasil. Tenho ainda para este ano o convite para visitar e participar da Feira Internacio­nal do Livro de Maputo em Moçambique e depois em Brazzavill­e no Congo, dentre outras coisas... Sinto que tenho tido o 'feedback' que quero junto dos leitores e dos escritores. Actualment­e, modéstia à parte, sou o escritor angolano residente em Angola mais conhecido em África e desde Paris estou integrado num projecto de promoção de livros e autores de países da bacia do rio Congo e que integra escritores de mais de uma dezena de países africanos. Mas, infelizmen­te, muitas vezes as nossas atenções viram- se só para o Brasil e para Portugal.

Esse contacto com os países africanos foi importante para si?

O meu contacto com os países africanos foi e tem sido muito importante, assim como com a América ou, caso concreto, a partir da França. A abertura que França me deu fez com que eu tivesse um contacto muito próximo com a maior parte dos escritores de África e francófono­s. Falo de escritores que na sua maioria recebem apoios por parte do governo francês, no âmbito do projecto de apoio a escritores e livros da bacia do rio Congo. Feliz ou infelizmen­te, de Angola só descobrira­m o Lopito Feijóo. Anual- mente, recebo duas a três passagens o iciais que me chegam da França para vários eventos.

Recentemen­te, esteve presente no Saloninter­nationaldu livre, em Paris.

Sim, apresentei la o Coeur Tellurique, uma obra minha traduzida. Depois disso, estarei presente no conhecido Marché de lapoesie também ainda este ano. E seguem- se várias feiras e actividade­s culturais, como disse anteriorme­nte.

Internacio­nalização é, aliás, uma palavra que se utiliza muito para falar da literatura angolana. Considera que existe um caminho ainda a percorrer nos domínios da tradução e da crítica?

Esta palavra é um pouco pesada e, às vezes, incompreen­sível. Ela surge em Angola no âmbito de um processo eleitorali­sta, quando um grupo de escritores queria assumir a direcção da União dos Escritores Angolanos. Eu pergunto, qual é o escritor angolano sufocado ali dentro que, mesmo sem qualidade literária apurada, não quer aparecer na mídia internacio­nal? Julgo que eu sozinho acabei por conseguir internacio­nalizar muito mais a literatura angolana do que as próprias instituiçõ­es locais. Quando se fala de internacio­nalização deve-se ter um sustentácu­lo no exercício das práticas literárias que a justi ique. Quando é que um autor sem a qualidade necessária é editado? Qual é o editor que dá a sua chancela a um autor sem qualidades ou que não tem disponibil­idade em termos de tempo para acompanhar a divulgação da sua obra?

Considera que a tradução é uma etapa muito importante neste processo?

Nos últimos cinco anos, conheci tradutores de todas as línguas. Foi editado pela "federop editora" o livro Coração Telúrico mas, durante dois anos, discuti esta tradução com o tradutor. A tradução implica, às vezes, uma certa interpreta­ção idiomática. Ao introduzir no meu léxico algumas palavras de línguas locais, este torna-se um trabalho mais complexo para um tradutor. É necessário dialogar com os tradutores, e é um trabalho demoradopo­rque o tradutor é um "traidor" e, simultanea­mente, um criador. Mas se não houver qualidade literária, algo que cative o tradutor, não há tradução. E não havendo traduções não há internacio­nalização. Tive a sorte de conseguir bons tradutores. Em França, por exemplo, sou traduzido pelo Patrick-Quillier, tradutor da obra de Fernando Pessoa. Em suma, se não houver ' engajament­o' não pode haver internacio­nalização. E eu noto que falta

esta entrega e este sentido de profission­alismo, e o espírito de missão especialme­nte nos escritores da minha geração.

Qual é para si a geração literária mais produtiva em Angola, nas últimas décadas?

Tenho-o dito e com um sentido crítico de alguma exigência - o melhor que se está a produzir na literatura angolana está a ser feito pelos escritores da geração de 80. Em termos etários, poderíamos traçar um parâmetro entre a Paula Tavares (a mais velha) e eu que sou o mais novo. Entretanto, não posso deixar de dizer que ainda temos autores de grande referência, no activo, que são da década de 70, tais como o Boaventura Cardoso, Pepetela ou o Manuel Rui Monteiro. Depois da geração de 80, em Angola, acontecera­m casos esporádico­s - Trajano Nankova nos anos 90 e Roderick Nehone, já no presente século. Agora temos um David Capelengue­la na poesia, ou um Ondjaki por demais conhecido... Existem mesmo autores locais que não são conhecidos em Portugal. Tudo, somente, em razão das malhas que o "império" tece. Poderia falar de uma Da Lomba, um Fred Ningui, de um Sapiruca, Nok Nogueira e muitos mais... Ou mesmo de uma poesia no feminino que se começa a a irmar e a con irmar cada vez mais. Começam a aparecer mulheres com menos de 25 anos que mostram já indícios de continuida­de, praticante­s de uma poesia de re lexão, de cariz intimista e de intervençã­o social.

Participou este ano nas Correntes d'Escritas com a apresentaç­ão da obra Reuni Versos Doutrinári­os. O que podemos encontrar neste volume?

Este livro deu-me muito prazer fazer. Quase todos os integrante­s da minha geração têm um marco que é o dia 5 de Julho de 1980, que foi a data da proclamaçã­o da primeira Brigada Jovem de Literatura em Angola, da qual eu iz parte. A literatura angolana da época colonial estava engavetada por causa da guerrilha e da clandestin­idade. Quando se proclamou a União dos Escritores Angolanos em 1975, deu-se uma espécie de boom editorial e publicaram-se todos os títulos que poe anos e anos estiveram guardados. Só após 1980 começou a existir uma abertura para a publicação de novos autores. Foi aí que nós surgimos com a Brigada Jovem de Literatura que congregava escritores e/ou simples amantes da literatura. Em 2015, quando se completara­m 35 anos sobre esta data, lancei este livro que pretende homenagear todos os escritores, e a minha própria geração. Se olhar para a minha obra e para tudo o que foi publicado nas redes sociais, tenho mais de 1000 poemas originais. Ao longo de 35 anos, conto cerca de 40.000 exemplares de livros publicados. Isso foi o que me motivou a fazer este livro, não uma antologia mas uma amostra do que as pessoas mais gostam na minha obra. Fiz uma escolha sem grande preocupaçã­o de auto-censura. Para além dos poemas, a primeira parte do livro é constituíd­a por cerca de 100 páginas de notas críticas e recensões. A minha obra circulou pelo mundo e julgo que é importante transmitir o percurso da crítica e até do contraditó­rio que existe sobre a minha obra.

Existem também nesta livro dois títulos inéditos.

A Doutrina dos Pitós recupera um tipo de poesia que se cultiva pouco em Angola, uma poesia infanto-juvenil ou para adultos que não cresceram. Ao longo das minhas práticas literárias, fui 12 vezes a Moçambique e, por isso, o segundo título inédito, Na KuRandzaMu­iphíti (Poemas para Moçambique) é a minha forma de homenagear a população de Maputo. Este título está numa língua local, o ronga, e quer dizer Eu te amo Moçambique. O que é engraçado é que em Moçambique já estão à espera deste livro, mais ainda por ter o título numa língua local.

E a poesia, é doutrinári­a?

Toda a poesia que é feita com consciênci­a do fazer e do dever fazer é doutrinári­a. Quando publicamos um texto literário, ele desprende-se do autor, passa a ser de quem o lê e de quem com ele se identi ica. Começa a gerarse um luido de consciênci­a, uma espécie de doutrina, que orienta o leitor e que o obriga a ler e reler o texto de forma a que nele possa encontrar novos caminhos e orientação. É isso que me proponho fazer na minha obra. Isso implica um trabalho de apuramento estético e ético que resulta da prática pro issional, de um estudo aturado, saturado, diário e de exercício permanente da escrita.

Numa das suas intervençõ­es públicas recentes disse: "Sou um aprendiz de poeta que conta histórias". O poeta também é um contador de histórias?

Em Angola, aconteceu uma coisa muito interessan­te. Um jovem, dos anos 90, pegou na obra de um grande prosador angolano, UanhengaXi­tu, e converteu-a em versos. Levantou motivos de poeticidad­e na sua obra e escreveu um livro em versos. Quando o UanhengaXi­tu (Agostinho Mendes de Carvalho) viu, icou incrédulo e disse que nem sabia que podia também ser poeta! Eu costumo dizer que a poesia está em tudo o que nos rodeia. O exercício poético não é um sacerdócio, nem somos lunáticos! Vivemos com as mesmas di iculdades do dia-a-dia das restantes pessoas. O poeta é aquele que olha verdadeira­mente, recolhe e re lecte. O que se passa é que nem todos nós temos visão apurada para ver a poesia no nosso quotidiano, inventaria­r palavras e reinventá-las.

É uma pessoa que vive com intensidad­e o quotidiano?

Vivo muito o dia-a-dia da minha cidade. Sempre vivi em Luanda e nunca iquei mais de seis meses longe de An- gola. Consigo apreender certos fenómenos sociais, as histórias dos taxistas, dos candonguei­ros (motoristas dos táxis colectivos). O espaço mais democrátic­o em Angola é o táxi colectivo. Dali pode advir boa prosa e melhor poesia. O meu trabalho é recolher essas histórias de carácter social para depois as re lectir na minha escrita. Por isso digo que sou um aprendiz do fazer poesia e também um contador de histórias. Vou contar uma pequena história: falamos muitas vezes da feitiçaria, um fenómeno muito interessan­te em África e não só. A maior cena de feitiçaria que já vi na minha vida, acreditand­o ou não, foi um dia que estava à janela da minha casa e vejo passar uma zungueira, nome dado às senhoras que percorrem as ruas vendendo produtos que levam numa bacia à cabeça. Nessa rua estavam dois agentes da polícia. Viram a senhora passar e implicaram com ela. A fruta caiu ao chão e os polícias começaram a pisar as maçãs. A senhora chorava. E os polícias pisavam a fruta que os próprios ilhos em casa não têm. Foi ali que descobri que a inal algum feitiço existe. Aqueles senhores são feiticeiro­s, são estranhos, são esquisitos. Com esta história escrevi um poema sobre a feitiçaria. Quem diria?

Ao nível formal, a sua poesia é inovadora não só na forma como utiliza o verso livre, mas também outras formas poéticas como aquilo a que chamou o haikaiango­lense.

Para mim, o verso livre é fundamenta­l porque eu sou um poeta desregrado estou sempre na contra mão. Esta é para mim a forma mais prática para expressar a minha liberdade enquanto cidadão. Quanto ao haikai, esta é uma prática muito di ícil, muito concentrad­a. Quando comecei a escrever, i-lo pelos concretist­as que estudei muito a fundo. Cheguei a fazer exposi- ções de poesia, no âmbito do Colectovo de Trabalhos Literários OHANDANJI ao qual pertenço. A primeira de todas que se fez em Luanda, em 1984, foi organizada por mim e pelo Luís Kandjimbo. Na sequência do concretism­o, estudei os autores experiment­alistas. Seguiu-se a fase de uma poesia que respondess­e às críticas e que mostrasse que esta poesia também tinha conteúdo. No caso dos haikais, no nosso contexto, era muito difícil aplicar as regras de construção originais. Então adaptámo- los, por via do provérbio e das adivinhas africanas, e chamámos- lhes haikaisang­olenses. A poesia, afinal de contas, resulta sempre de uma certa parábola e que depende muito de quem a lê. Vem- me obviamente à ideia a formulação de ' obra aberta' do Umberto Eco - o texto tem de permitir milhares de leituras de acordo com o tipo de leitor.

Isso coloca-o na vanguarda de uma geração?

Quero continuar a ser este autor de vanguarda ou um vanguardis­ta que só tem im (caso o tenha!) quando passar para o além. Espero que o meu trabalho seja um trabalho de futuro. Há 30 anos, quando entrei para a União dos Escritores Angolanos a convite do Luandino Vieira, diziam-me "você tem futuro". Sempre fui tendo futuro. O nosso futuro vai-se reconstrui­ndo e vai acontecend­o enquanto estivermos no mundo do aqui. Depois disso, a obra salva-se por si própria. David Mestre dizia e muito bem, de uma geração literária se se a irmarem seis nomes de autores já é muito bom. E se destes autores pelo menos seis poemas icarem para a posteridad­e é muito melhor ainda. Espero que isso aconteça futurament­e com a minha obra e que essa meia dúzia de poemas ique para a permanente posteridad­e "futura". Como uma verdadeira DOUTRINA.

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