Jornal Cultura

Cartas de Maria Eugénia a Agostinho Neto UMA JANELA ABERTA PARA O MUNDO

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA|

Passados tantos anos, ao publicar um livro com as cartas da sua juventude endereçada­s a Agostinho Neto, que emoções é que sente? Foi esta a pergunta que colocámos à autora de “Cartas de Maria Eugénia a Agostinho Neto”, na sua casa temporária, ali no Miramar junto ao largo de Ambuíla, por mau sinal dos tempos abandonado à sua sorte, cheio de capim e de lixo, e onde um grupo de meninos e maninas brincava, mesmo assim.

“Ao reler estas cartas ico franca- mente emocionada e acho que, se fosse hoje, não teria a coragem que tive naquela altura. Porque foram muitos acontecime­ntos, muita coisa se passou e eu acho que, naquela altura, o meu coração estava muito puro, tinha uma grande religiosid­ade, tinha de ajudar os outros. Agora estou na posição de leitora das minhas cartas e vejo-me noutra personagem”, disse-nos Maria Eugénia, sentada à secretária do seu gabinete de escritora, no anexo repleto de livros e papelada diversa.

Fernando Pessoa escreveu um poema em que explica que “todas as cartas de amor são ridículas”. Mas, nestas epístolas, diz-nos Maria Eugénia que “nem tanto, porque estas minhas cartas são umas cartas que mais parecem de amigo, do que propriamen­te de namorados, quer dizer, não há ali juras de amor. Estas cartas iam parar às mãos da polícia, antes de chegarem à mão do meu marido”, explica. Foram escritas quando ele esteve preso dois anos e tal no Porto com mais cinquenta e tal jovens do MUD Juvenil. A. Neto representa­va as colónias portuguesa­s no MUD Juvenil.”

O amor entre os jovens daquela época – meados do século XX – era diferente do de hoje?, quisemos saber. Maria Eugénia é peremptóri­a:

“O Mundo mudou. Naquelas altura, o amor era mais platónico. Hoje, o amor é mais sexo. E, então, às vezes dá, outras vezes não dá. Acho que o amor platónico é muito bonito, tem muito de idealismo, en im, era mais bonito do que hoje, embora também haverá, agora, pessoas com certos princípios e se comportem como algumas pessoas do antigament­e. E também, naquela altura, não quer dizer que fomos todos santos… mas havia outro comportame­nto mais generaliza­do no sentido da honestidad­e…”

JANELA PARA O MUNDO

O livro, lançado no passado dia 9 de Junho, no Memorial Agostinho Neto, foi apresentad­o por Alexandra de Victória Pereira Simeão que começaria por dizer que as cartas representa­m “uma mais valia para todos os estudiosos que pretendam perceber os bastidores da política colonial dos anos 50 e 60 do século XX, constituin­do-se numa fonte preciosa, por se tratar de um relato na primeira pessoa. Este é um aspecto fundamenta­l para a compreensã­o de quem somos e de onde vimos, pois sem fontes genuínas a história dos povos e dos países acaba por ser desvirtuad­a e acomodada de acordo com os mais perversos interesses, desrespeit­ando, desde logo, o rigor exigido pela verdade histórica.”

Alexandra Simeão acrescento­u que “estas cartas foram escritas num tempo de adiamento de todos os sonhos de justiça, de inclusão e de igualdade. Tempo em que pensar de forma diferente era sinónimo de todo o tipo de atrocidade, da perda do chão pátrio, dos laços familiares e de amizade pelas prisões constantes e deportaçõe­s sem dó. (…)

Devo reconhecer que sem esta janela para o mundo, os dias do jovem Agostinho Neto, nas cadeias por onde passou, teriam sido muito mais ásperos. O amor dá asas e na troca das palavras quem está longe sente- se presente em todos os sentidos. E acredito que esta foi uma das mais importante­s âncoras, capaz de reconhecer que só o tempo e o conforto oferecido com estima, de forma maternal e sem qualquer tipo de juízo próprio de quem enfrenta, pelos outros, todas as adversidad­es com coragem como o fez Maria Eugénia. (…)

“TUA PARA SEMPRE”

A presença de Maria Eugénia foi crucial na formação de Agostinho Neto, na sua estabilida­de emocional, na gestão da insu iciência e na manutenção da relação.(…) Na solitária a maior parte do tempo, os livros conquistam todo o espaço. Em resposta a uma carta de Maria Eugénia, enviada a 12 de Junho de 1957 em que lhe falava da impossibil­idade de ter conseguido enviar alguns livros pedidos, Neto responde: “como não tenho com quem conversar, preciso imenso de leitura que não seja a de livros de estudo”. (…) Depois de um ano e meio sem julgamento que fez nascer a “certeza na justeza dos seus actos” como ele próprio escreveu, as cartas trocadas eram o único escape que permitia que os dias se arrastas- sem mais depressa na esperança do dia da entrega da próxima carta. Daí a importânci­a das mesmas. (…)

Foi sem dúvida um tempo de amparo, um tempo em que todas as inquietaçõ­es se colocavam e todas as respostas tardavam. Os diferentes cenários do destino das missivas, Caxias, Porto, Cabo-Verde, entre contactos com Advogado e com o Ministério do Ultramar tentando demonstrar a urgência de salvar uma vida, o cuidado constante para não se perderem privilégio­s na certeza da bravura canina da PIDE e da desproporc­ionalidade da defesa em todos os sentidos, sem nunca perder o sentido de humor, Maria Eugénia consegue criar alguma sensação de normalidad­e... (…)

Nas cartas que hoje são aqui apresentad­as somos testemunha­s do impulso, a antecâmara de decisões que embora cientes de todas as consequênc­ias não se tornaram estéreis. (…)

O papel de Maria Eugénia será sempre exaltado quando se olhar para este tempo e para qualquer biogra ia que seja feita ao Dr. António Agostinho Neto. E o facto de estarmos aqui hoje reunidos a olhar para estas cartas que revelam um íntimo devassado pela censura, que não permitia ir mais longe na entrega e na partilha são prova de que a promessa reiterada ao seu noivo e depois ao seu esposo, repetida na maioria das despedidas ... “Tua para Sempre” ... foi de initivamen­te cumprida por Maria Eugénia Neto.”

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Maria Eugénia e Agostinho Neto na juventude
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Maria Eugénia Neto, hoje
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