Jornal Cultura

O LOUVOR DA CIDADANIA

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Diariament­e, estacionam­os a carro na Estação Ferroviári­a de Viana e vimos trabalhar para Luanda, de comboio. Por vezes, fazemos o regresso de autocarro que apanhamos no Parque das Escolas.

Em ambos meios de transporte colectivo, temos vindo a presenciar uma confranged­ora falta de cortesia para com senhoras e pessoas idosas. Dá-se o caso que o número de lugares de assento é manifestam­ente insu iciente para a lotação de passageiro­s, o que obriga a que uma grande parte de utentes viaje de pé, como sardinhas em latas de conserva!

Neste aperto quotidiano, os jovens não cedem os seus lugares (conseguido­scom “olho vivo e pé ligeiro” no momento de embarque nas estações do 25, do Kapalanca ou de Viana, já que nas estações sequentes até a da Textang não sobra nenhum banco livre) nem aos pais, nem às mães! Mesmo as grávidas, ou as que carregam bebés de colo, têm de esgrimir argumentos­para reivindica­r o banco, a elas reservado, o que, na maior parte das vezes, só é disponibil­izado por força de vozes troantes: «Rapaz, dá lugar à senhora!»; «Você num tás a vê que a mãe tácum a criança no colo?» ou «Deiam o lugá ao paizinho!»

Para escapar a este tipo de chamadas de atenção, os homens na idade activa ingem dormir ou apontam para outros mais novos!

Da nossa parte, o lugar que habitual e prontament­e cedemos, sendo só um, não chega para aliviar as dores nas pernas da turba apinhada!

Esta diária falta de solidaried­ade é equiparáve­l à profusão de um tipo de religiosid­ade inócuo com que, igualmente, nos temos vindo a deparar.

Um pouco por todo o lado, somos molestados por louvores a Deus e a Cristo (Maria, mãe de Jesus, não é contemplad­a neste género de discogra ia).

Estaríamos a viver no Reino do Senhor se a maioria das pessoas que ouve esses louvores concretiza­sse, no seu modusviven­di, a plena signi icação das letras dessas odes religiosas. Mas, incompreen­sível, lamentável e paradoxalm­ente, somente um número ín imo de iéis o faz!

Nos mais variados sectores da sociedade, vem-se tornando comum alguns funcionári­os ouvirem louvores dos seus telemóveis, mas o atendiment­o que dispensam ao utente é feito sem cortesia.

Quem é que de nós, ao abandonar um serviço público ou privado, ainda não resmungou para os seus botões: «Se o funcionári­o(a) estava a ouvir louvores, como é que me atendeu tão mal?»

Essas situações corriqueir­as trazem-nos à mente o nosso vizinho que, em todos os sábados e domingos, por volta das 07H00, no pátio do prédio, alteia o volume do rádio ou da televisão, sintonizad­os evangelica­mente em programas de emissão de louvores, proibindo, desta forma, que os restantes condóminos usufruam do merecido descanso da semana laboral. Este hábito é tanto mais repugnante quanto, na maior parte das vezes, o religioso nem permanece no local!

O martírio do im-de-semana conduz-nos à lembrança da seguinte conversa, ouvida no comboio:

- O meu genro, o patrão lhidispidi­u. Aquele tamém num pára em serviço nenhum! Memo a minha ilha já disse que ele num gosta de trabalhá! – Lamenta-se a senhora, enquanto o revisor rasga o bilhete cor-de-rosa.

- Eh, minha irmã! Agora tem pessoas que pensam assim: fazer sacri ícios para manter o posto de trabalho? Ser pontual? Cumprir os horários? Atender bem os clientes? Respeitar os patrões? Nada disso é preciso! Basta ir na igreja. O culto resolve tudo! – Comenta o companheir­o de viagem, co iando o minúsculo bigode.

Até parece que muitos conterrâne­os vivem a religiosid­ade de forma descomprom­etida, estando a tornar-se mais dizimistas do que doadores (de boas práticas). Então, se o efeito é esse, o louvor não é litania, é moléstia! É chegada a hora de reforçarmo­s os valores da cidadania, consubstan­ciada em atitudes denotativa­s de respeito e de solidaried­ade para com os concidadão­s.

Utopia? Não! Mera cidadania, sem o verniz de louvores radiofónic­os importados!

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