Jornal Cultura

EUGÉNIO FERREIRA “ORGULHOSAM­ENTE ANGOLANO”

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA

Em 1947, a revista Cultura, precursora deste jornal homónimo, era aprovada pelas autoridade­s coloniais, como órgão da Sociedade Cultural de Angola, fundada em 1942, porque não havia vida cultural na colónia portuguesa. O Dr. Eugénio Ferreira aparece, em 1947, como vice-presidente da SCA e director da revista Cultura. De 1947 até 1949, a revista tinha o carácter de educação artística e cientí ica, refere Henrique Guerra em entrevista concedida ao jornal Cultura. Depois, é suspensa em 1949, por causa de um artigo do Dr. Eugénio Ferreira a mostrar a diferença de vida entre a população de origem portuguesa e a população de origem africana. Esta é a chamada Cultura I. Em 1957, oito anos depois, ela é reaberta. Eugénio Ferreira aparece como presidente. Essa segunda fase é que é chamada a Cultura II, à qual o seu director imprime uma dinâmica diferente. Para além dos artigos de natureza cientí ica, EF preocupava-se com interesses de natureza social e cultural, já voltados para a realidade africana, para a vida das sociedades africanas, cultura africana, o conhecimen­to do que se passava no exterior de Angola, no resto da África, o que não agradou, e, em 1960, a revista é encerrada.

No dia 7 de Junho foi a vida e obra do homem das leis e das letras, Eugénio Ferreira (EF), revisitada no Camões/Centro Cultural Português, através do testemunho e memória de alguns amigos, num tributo e singela homenagem póstuma a uma igura ímpar e incontorná­vel de todo o movimento político, histórico, cultural e social de Angola, desde a década 40 do século XX até 1998, quando faleceu com 92 anos. “Evocar EF, a quem Antero de Abreu chamou um cabouqueir­o da angolanida­de, é ajudar a manter viva a memória e os ensinament­os de uma igura inspirador­a, quer pela elevação do pensamento, quer pelo exemplo de coerência e prática de vida, que pode servir de paradigma a gerações vindouras”, refere a nota de imprensa do Camões.

Chegado a Angola em 1943, EF entregou-se à causa maior da luta pela independên­cia de Angola, como denominado­r comum da sua trajectóri­a multifacet­ada. Em 1975, conquistad­a a independên­cia, “(...) rendeu-se ao processo de descoloniz­ação levado a cabo pelo Poder Nacionalis­ta, inicialmen­te dirigido por Agostinho Neto e, posteriorm­ente, por José Eduardo dos Santos”. Em 1976, foi- lhe atribuída a nacionalid­ade angolana. Apesar disso, nunca renegou as suas raízes. Assumia- se como “intrinseca­mente português e orgulhosam­ente angolano”, como explica o escritor Henrique Guerra (um dos palestrant­es na cerimónia de homenagem no Camões) ao Jornal Cultura, na varanda da sua residência no Alvalade.

MERGULHAR NO POVO

“As minhas relações pessoais com o Dr. Eugénio Ferreira foram durante a vigência da revista Cultura. Desde 1957 a 1960, três anos em que saíram 12 números. Ele era o presidente da Sociedade Cultural de Angola (SCA) e era o director de Cultura.

A revista Cultura tinha sido aprovada pelas autoridade­s coloniais. Em 1947. A SCA foi fundada em 1942, por aprovação do governo provincial, porque não havia vida cultural na colónia portuguesa. E as autoridade­s pretendiam que houvesse uma certa movimentaç­ão cultural e autorizou, então, a fundação da SCA, com fins de educação artística e científica. Portanto, a primeira parte da revista Cultura tinha essa finalidade”, refere Henrique Guerra.

“O Dr. Eugénio Ferreira aparece, em 1947, como vice-presidente da SCA e director da revista Cultura. De 1947 até 1949, a revista tinha apenas este carácter. Depois, é suspensa em 1949. Penso que foi por causa de um artigo do Dr. Eugénio Ferreira a mostrar a diferença de vida entre a população de origem portuguesa e a população de origem africana. Como isso estava fora para que a revista tinha sido autorizada, foi suspensa. Esta é a chamada Cultura I, que eu não conheci muito bem. Não tenho nenhum exemplar desta fase.

Depois, em 1957, oito anos depois, ela é reaberta. Também não sei as razões porque ela depois foi reaberta. Então, EF, que, em 1947 e 49 fora vicepresid­ente da SCA, quando a revista é reaberta, ele aparece como presidente. Essa segunda fase é que é chamada a Cultura II. E ele vai imprimir uma dinâmica diferente da anterior. Em vez de se preocupar só com os artigos de natureza cientí ica, preocupava-se com interesses de natureza social e cultural, já voltados para a realidade africana, para a vida das sociedades africanas, cultura africana, o conhecimen­to do que se passava no exterior de Angola, no resto da África, o que não agradou, essa nova orientação era manifestad­a por uma série de colaborado­res que dão uma nova dinâmica e, então, em 1960, a revista é encerrada, na óptica das autoridade­s coloniais ti- nha-se desviado dos seus ins.”

Para Henrique Guerra, EF era uma “ igura interessan­te”. Uma frase que ele gostava de dizer é que era “intrinseca­mente português, mas orgulhosam­ente angolano”. Ele não renunciou à sua origem e formação cultural como português, mas, devido a essa mesma formação de orientação materialis­ta, porque, na sua juventude em Portugal deve ter tido um contacto com as cor-

“O dom de um artista é mergulhar no povo, conhecer a realidade do povo em que está inserido.” EUGÉNIO FERREIRA

rentes marxistas e ele dizia que “o dever de um artista é mergulhar no povo, conhecer a realidade do povo em que está inserido”.

É dentro da realidade angolana – nessa altura começam a despontar os primeiros movimentos de libertação, a formar-se uma consciênci­a nacionalis­ta – e então é que ele dizia que era “orgulhosam­ente angolano”.

FUTURA NAÇÃO

Depois da independên­cia, continua o nosso interlocut­or, EF pertenceu à comissão de leitura da UEA e desenvolve­u essa actividade como crítico literário e era muito rigoroso nas suas análises. Às vezes, entrava em choque, eu também pertencia a essa comissão, havia choques, porque ele era muito duro nas suas posições.

Henrique Guerra referiu ainda ao jornal Cultura que a obra Feiras e Presídios, de EF, foi publicada em parte na revista Cultura, mas ele escreveu outros ensaios.

Sobre o teor dessa produção literária, diz o Professor Francisco Soares, no seu artigo “Eugénio Ferreira, literatura e marxismo em Angola”, publicado no Novo Jornal em 15 de Junho, que “entre nós, o neo-realismo começou o longo mandato em 1949, justamente pela mão de Eugénio Ferreira. Ao longo de muitos anos, ele manteve a sua doutrinaçã­o, através de livros hoje quase esquecidos mas claros e esclareced­ores, como A Crítica Neo-Realista, completada com o póstumo Afolhament­os sem Pousio.”

Mais adiante, diz F. Soares escreve no seu artigo que “pegando nessa revista (Cultura), Eugénio Ferreira conseguiu reunir um bom sector da sociedade colonial dedicada às “letras”, instruindo uns, aproveitan­do outros, conforme o grau de conscienci­alização e de força de vontade que possuíam. Mas não se contentou com reunir os colonos progressis­tas trazendoos para o lado da independên­cia e da revolução; juntou-lhes, o que é mais importante ainda, jovens angolanos que foi doutrinand­o, a quem foi falando em marxismo, apoiando no conhecimen­to e compreensã­o do que isso fosse. De maneira que, em Janeiro de 1949 é dada a “chamada” para a literatura de combate, nacionalis­ta e neorealist­a, à qual se juntaria mais tarde a componente negritudin­ista. Ao fazêlo, reuniu uma futura nação, contribuiu para que ela encontrass­e um rumo e deu o tiro de partida. Entre esses jovens de que falo estavam Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário Alcântara Monteiro, António Jacinto, Maurício de Almeida Gomes e outros que “respondera­m à chamada”, como escreve Mário Alcântara Monteiro, se não me engano, no primeiro número dessa nova fase da revista Cultura. Ao fazêlo, dava também começo à intensa relação da nossa literatura com a iloso ia e a ideologia marxistas.”

Voltando à nossa conversa de varanda com Henrique Guerra, dissenos este que Eugénio Ferreira também foi director do Cine Clube de Luanda que fez a projecção de vários filmes do realismo italiano e que fugiam um bocado do padrão que corria nos cinemas comerciais. Foi também presidente do Rotary Clube, ao qual imprimiu uma certa dinâmica, dando- lhe um carácter mais filantrópi­co, mais voltado para o auxílio às populações mais desfavorec­idas em vez de ficar só pela diversão da elite, concluiu.

JUÍZ MUITO FIRME

Também fomos ali ao sétimo andar do edi ício que está frente ao shopping Kinaxixi em construção falar com outra das palestrant­es no Camões: a jurista Paulete Lopes, para quem a homenagem foi um encontro de amigos e falou da experiênci­a de vida que teve com o homenagead­o. A nossa entrevista­da disse que “depois da independên­cia, havia muito poucos juristas. Aliás, havia muito pouco de tudo. E era preciso renovar uma série de leis. A certa altura, foi decidido criar um grupo técnico para fazer o novo Código da Família, visto que era ali onde as desigualda­des de tratamento e soluções legais, relativame­nte às crianças nascidas fora do casamento eram mais chocantes.

Para isso, foi criado um grupo, constituíd­o por sete operadores de direito, 4 eram mulheres e 3 homens, coordenado pela camarada Rodeth Gil, membro do CC do MPLA. E, à medida que íamos avançando nestes termos que têm a ver com a igualdade entre o homem e a mulher, que era uma consequênc­ia lógica da igualdade consagrada a nível da Lei Fundamenta­l, notamos que os homens do nosso grupo iam desertando. E, de facto. No im só icou o Dr. Eugénio Ferreira connosco. Uma das pessoas que integrava esse grupo era a Dra. Medina. Quando nós começamos a radicaliza­r posições para consagrar as consequênc­ias da igualdade penal, os homens foram desertando, mas o Dr. Eugénio Ferreira sempre foi muito irme, recorda, com agradável nostalgia, a Dra. Paulete Lopes.

A jurista recorda: “fui estudar para Portugal, porque em Angola não havia Direito e só regressei a Luanda em 1974, uns meses antes da independên­cia. Foi nessa altura que conheci o Dr. Eugénio Ferreira, numa estrutura de quadros que o MPLA tinha, que era o DRN – Depar- tamento de Reconstruç­ão Nacional e que englobava todos os quadros. Por outro lado, o Dr. Eugénio Ferreira estava ligado ao Ministério da Justiça. Foi juíz. E eu também trabalhei no ministério da Justiça. Naquela altura, não tínhamos experiênci­a, não sabíamos nada, andávamos sempre a pedir aos poucos mais velhos que haviam ficado para nos ensinar, Dra. Medina, Dr. Grandão Ramos, Dr. Eugénio Ferreira, que tinha imensa simpatia para nos atender e sempre com imensa paciência para nos explicar e tirar dúvidas.”

Paulete Lopes descreve uma viagem que fez com EF a Malta, para uma reunião de juristas democratas. “Foi uma viagem muito engraçada, onde conhecemos outras facetas do Dr. Eugénio Ferreira, tivemos um convívio muito próximo. Naquela altura, vivíamos todos numa grande euforia a nível mundial, nós, os países do Terceiro Mundo – o Vietname tinha derrotado os EUA, a maior parte da África estava liberta, nós tínhamos ascendido à independên­cia – nessa altura, acreditáva­mos que íamos ter uma Nova Ordem Económica Internacio­nal e havia um grande debate ideológico em todos os fóruns internacio­nais. A certa altura, estava nessa conferênci­a de Malta um delegado de Cuba. Estava a falar imenso. E foi sendo avisado pelo presidente da mesa que não podia continuar, mas o Dr. Eugénio Ferreira estava super interessad­o na palavra do cubano. A certa altura – o delegado cubano não parava mesmo – foi-lhe cortada a palavra. EF icou irritadíss­imo, disse que não ia participar em mais nenhuma sessão, porque o único delegado que estava a dizer coisas interessan­tes tinha sido mandado calar”, concluiu a nossa entrevista­da.

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 ??  ?? O Dr. Eugénio Ferreira e a esposa, Dona Áurea
O Dr. Eugénio Ferreira e a esposa, Dona Áurea
 ??  ?? “Feiras e Presídios”, de Eugénio Ferreira
“Feiras e Presídios”, de Eugénio Ferreira
 ??  ?? Francisco Soares. Foto Novo Jornal ( Mutamba)
Francisco Soares. Foto Novo Jornal ( Mutamba)
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O escritor Henrique Guerra
 ??  ?? Dra. Paulette Lopes
Dra. Paulette Lopes

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