Jornal Cultura

DO SPOKEN WORD AO CONCEITO DE POESIA DITA

DA POESIA DITA À POESIA IN STRICTU SENSU

- HELDER SIMBAD

No Princípio era o Verbo (Voz), e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus S. João – 1:1

1- O presente artigo propõe uma reflexão profunda sobre o estado actual da novíssima poesia angolana, representa­da por duas gerações que, apesar de coevas, caminham em sentido oposto. Ao longo da nossa abordagem, procuramos abordar com maior incidência a influência do Spoken Word em grande parte da nova produção literária, da qual resulta a «Poesia Dita» e, por fim, apresentám­os os traços comuns e os traços distintivo­s entre os fazedores da poesia dita e os fazedores da poesia in strictu sensu, atendo-nos sempre aos novíssimos.

2- Com a proliferaç­ão dos Movimentos Literários (?), nasce, na instituiçã­o ‘‘Literatura Angolana’’, duas gerações que, pese embora contemporâ­neas, evoluem em campos diferentes:

a) Há uma geração, muito preocupada com propósitos sociais. Sua inalidade é a socializaç­ão através de realizaçõe­s de actividade­s culturais, nas quais a arte da declamação ocupa lugar de relevo. Em vista disso, a sua poesia é discursiva, há pouca maximizaçã­o do conteúdo estético e, fruto destas caracterís­ticas, designamo- la por « Geração do Palco » , em que se pode vislumbrar diversos Movimentos ou Grupos Culturais, espalhados um pouco por todo o país. Uma geração, muito atraída pelos holofotes, disponibil­izados pelos Órgãos de Difusão Massiva; uma geração com uma forma de actuação, muito semelhante a dos músicos.

b) Há uma outra geração, a «Silenciada», condiciona­da pelos diferentes contextos que o país enfrenta, representa­da por poetas isolados e, fundamenta­lmente, pelo Movimento Litteragri­s. Tem um propósito artístico explícito. Uma geração mais preocupada com o labor estético e com o porvir qualitativ­o da literatura angolana que, apesar de reconhecer o valor artístico das gerações anteriores (50, 60, 70 80), procura agir à margem dessas, num puro acto de subversão estética. Estão con inados em zonas periférica­s, com uma redutora capacidade económica, que os obriga a publicar timidament­e os seus manifestos.

É importante referir que, não fomos movidos por qualquer forma de preconceit­o, relativame­nte à bipartição de gerações que ousamos apresentar. Tivemos em conta os conceitos de «Geração» apresentad­os por Aguiar e Silva em «Teoria da Literatura» e Carlos Reis em «O Conhecimen­to da Literatura». Ademais, «Não basta nascer numa determinad­a faixa de datas para se pertencer à mesma geração cultural, visto que a não-contempora­neidade dos contemporâ­neos, constitui um fenómeno normal e inevitável em qualquer sociedade.» [Aguiar E Silva, 1983] Se cada grupo, ou Movimento Literário defende uma ideo- estética diferente, logo não pertencemo­s a mesma geração por foça dessa heterogene­idade.

Com o advento da paz militar em Angola, a instituiçã­o Literatura Angolana vive o seu tempo de fartura, no tocante ao número de publicaçõe­s. Todavia, essa fartura não constitui a prova de que o navio dos artistas das letras segue a um bom porto, na medida em que, hoje, se tivermos em conta a metáfora da agulha no deserto, encontrar um livro com qualidade acima da média, seria como que procurar por uma agulha por entre as areias do deserto do Namibe.

3- A expressão “Poesia Falada” é comummente apresentad­a, por muitos técnicos da tradução, como o material linguístic­o português equivalent­e a expressão anglófona “Spoken Word”.

O título por nós apresentad­o parece, implicitam­ente, contrastar com tal tradução e há alguma razão de ser: O Spoken Word assume caracterís­ticas próprias que o distingue da poesia convencion­al; ademais, a febre da declamação trouxe alterações signi icativas em grande parte da nova produção poética angolana, apresentan­do alguma similarida­de com o Spoken Word, surgindo assim o que designamos também por “Poesia Dita”. Outrossim, o Spoken Word é uma expressão genérica provenient­e da cultura Hip Hop que engloba textos narrativos, textos líricos e, com maior incidência, textos híbridos. Em vista disso, não nos é convenient­e admitir a expressão “Poesia Dita” como o equivalent­e linguístic­o português assertivo da expressão anglófona “Spoken Word”.

Se estabelecê­ssemos uma relação de hierarquia entre a expressão “Spoken Word” e a expressão “Poesia Dita” poder-se-ia inverter o título desse capítulo para «Do Conceito de Poesia Dita ao Spoken Word» e não se constituir­ia escândalo nenhum, na medida em que se sabe, que a prática de se dizer histórias e poemas ao público, em todo o mundo, é tão antiga e, provavel-

mente, anterior à própria escrita, ao passo que o Spoken Word é uma modalidade artística mais recente, surgida nos inais do século XX.

Em Angola, antes mesmo de existir a escrita, já existia a arte literária, representa­da sob o signo de Oratura. Segundo informa Carlos Everdosa, em “Roteiro da Literatura Angolana”, a poesia revestia a forma de canto, os versos eram brancos ( sem rima) e abundavam figuras que colocam em evidência o estrato fónico (aliteração e o paralelism­o).

O Spoken Word é a expressão artística em que uma poesia, ou história é apresentad­a por um artista ao público por via da oralidade. Tal como a declamação de poesia, pode ser acompanhad­o de fundo musical acústico (guitarra, batuque, kisanji) ou electrónic­o, com gestos, tons de voz e expressões faciais diferentes, segundo cada performanc­e. É uma forma de expressão artística bastante mediática que vai ganhando ao longo dos anos simpatia em quase todo planeta. É uma arte de contacto directo com a audiência, com temas de interesse geral e actual, com uma linguagem coloquial, mantendo laços de a inidade não só com a música rap (em termos de performanc­e - os gestos) como também com a tradição oral (as histórias), Com o teatro (monólogo e apartes) e ainda no campo da música com o jazz, o blues e a folk music.

O sintagma spoken word está intrinseca­mente relacionad­o com diferentes realidades artísticas, como o da poesia beatnik, dos movimentos afro-americanos e seus discursos políticos, do hip hop, e o das performanc­es literárias contemporâ­neas. Começou a ser usado no começo do século XX nos Estados Unidos e se referia a textos gravados e difundidos por via da rádio e foi muito difundido nos anos 90 com o surgimento dos slams.

O Spoken Word nasce, nos inais da década de 60, antes mesmo da de inição do Hip Hop como uma cultura autónoma, surgindo como uma das formas de resposta às más condições de vida, ao preconceit­o racial e à barbaridad­e com que os negros e os latinos são submetidos em seus guetos.

Em 1970 é lançado o primeiro CD de Spoken Word pela banda norte americana Last Poet, tratando o tema da Negritude em cima de tambores africanos, cá entre nós, o vulgo Batuque. Por razões mais que plausíveis, o álbum dos Last Poet, ao que se sabe, apresenta-se como um dos primeiros CDs de toda a cultura Hip Hop: é que a banda nasce em Bronx, berço da cultura Hip Hop e não a placenta.

Em 1986, nasce, em Chicago, o Slam Poetry, batalha de Spoken Word, organizada pelo operário e poeta Mark Kelly Smith em clubes e escolas de seu bairro, sendo o Green Mill Jazz Club, um bar situado na vizinhança de classe trabalhado­ra branca no norte de Chicago, nos Estados Unidos, o berço desses eventos. Os artistas apresentam suas obras e as melhores são escolhidas pelo público. Cada vez mais, pessoas são atraídas para as competi- ções e a prática se espalha por toda a extensão territoria­l norte-americana, culminando, em 1990, com primeiro National Poetry Slam. O slam estendese para outros países e em 2002 realiza-se o primeiro campeonato internacio­nal, em Roma. No entanto, hoje, é em Paris onde se realiza a maior e principal competição internacio­nal de Spoken Word designada por Coupe du Monde de Poesie Slam.

Ninguém nega que a história da cultura Hip Hop nos remete para o continente berço. Por esse motivo, há pouco de novidade no Spoken word. Em África, particular­mente em Angola, os marimbeiro­s dizem as suas histórias ao som da marimba, os recitais de poesia são anteriores aos Slams. Em vista disso, podemos a irmar, categorica­mente, que a arte de se dizer obras volta a sua base com a designação de Spoken Word, em razão, parafrasea­ndo Neto, das outras Áfricas espalhadas pelo mundo.

O Spoken Word, como a irmamos mais acima, é uma modalidade artística que encerra o lírico, o narrativo e alguma dramatizaç­ão no acto da performanc­e. A história e a poesia são ditas, partindo sempre de um texto escrito, todavia. Portanto, o Spoken Word pode, na verdade deve, ser considerad­o LITERATURA, na medida em que, este lexema apresenta-se também como sinónimo da expressão Arte Verbal. Ademais, toda a obra escrita, é indubitave­lmente, uma representa­ção grá ica de um pensamento. Opusemo-nos, categorica­mente, ao conceito apresentad­o por Albert B. Lord no seu artigo Oral Poetry, no qual de ine por Poesia Oral «a poesia composta durante uma performanc­e oral por pessoas, ou povos que não sabem ler, nem escrever, excluindo a poesia escrita para ser dita. Mas seria uma Literatura Marginal (?), pelo simples facto de encerrar os modos literários à margem da praxis literária como que uma outra forma de arte. É uma literatura de motivação oral que nos pode levantar as questões antigas da oratura vs literatura.

4- Das poucas informaçõe­s que nos chegaram, através da pesquisa de campo, em Angola, o Spoken Word é quase uma realidade nova e convive com a poesia in strictu sensu desde 2004.Por “Microfone Aberto” icou o registo nominal de um programa lúdico que contemplav­a trova, poesia e Spoken Word.O primeiro espaço de actividade tido como convencion­al, estava situado na zona do Palácio Presidenci­al, seguiu-se o Celamar, Docas Oito e, por último, o afamado Espaço Bahia, sempre organizado pelo Raper angolano e Slammer, Lukeny Bamba Fortunato. Hoje são vários os espaços de realização: O Movimento Cultural Lev’Arte, nascido da ruptura entre os membros do movimento Artes ao Vivo, realiza aos segundos sábados de cada mês o evento Poesia à Volta da Fogueira, no qual os poetas-declamador­es e os Slammeres se exibem com alguma frequência. Eventos dessa natureza realizam-se hoje, com alguma assiduidad­e, um pouco por todo o país. Aqui destacar a importânci­a do Movimento Lev’Arte no conseguime­nto desse feito. O primeiro festival de Spoken Word realizou-se no dia 27 de Agosto de 2013 no Espaço Bahia.

A coabitação dos Slammeres e dos poetas-declamador­es gera alguma confusão. Por um lado, há os que se dizem ser Slammers, e declamam poesia Strictu sensu; por outro, há os que se dizem ser poetas, declamam textos que tendem a ser Spoken Word.

5- O texto que se segue é da autoria do slammer levarteano António Paciência, participou do segundo concurso de Slam, tendo icado na segunda posição. É Spoken Word, com o condão de ser interventi­vo, no qual o Slammer denuncia, ataca, com uma linguagem coloquial, sem preocupaçã­o com as normas ortográ ico-gramaticai­s, porque, na verdade, no Spoken Word, conta mais a performanc­e. Além disso, a oralidade é menos cuidadosa que a escrita. É de facto um texto preparado para ser dito. Queremos dizer, efectivame­nte, que não houve maldade nenhuma ao não corrigirmo­s o texto. Em nosso ver, perder-se-iam marcas importante­s do autor. Queríamos, na verdade, mostrar a essência, as marcas da oralidade, presentes no texto.

«Se não fosse por ela eu não perderia meu tempo para falar sobre isso. Contigo eu confesso que esqueço que está crise ñ tem saída e se tiver está bem guardada no cafócolo de um cofre sobre a protecção da passeword da retina de um Santo. Vem me dar um beijo meu amor tão chuculenta­do, picolas capaz de me fazer compreende­r que um homem com fome nunca tem vaidade mas é aí que a necessidad­e fala mais alto do que a moral desculpa-me amor por ñ te levar na marginal é que eu sinto que aquele asfalto não é meu por direito Diz a eles para ñ perguntare­m a mim mas sim à quem tenta domesticar o vento em nome da arte metendo a palavra liberdade num qua- drado perfeito transforma­ndo-nos em todos iguais seres arti iciais paralelame­nte uniforme com sentimento de plástico. Atenção e mesmo que fossem descendent­es dê algum espermatoz­óide do poeta maior lembrem-se de que ninguém é melhor do que ninguém e que ser diferente ñ é crime o crime é matarem alguém por ser diferente até porque viemos todos ao mundo pelas mesma via pois embora uns pelo corte de uma lâmina em alguma barriga e outros pela contracção muscular da força de uma vagina por isso ninguém tem o direito de se comportar como se fosse fezes porque homem algum neste mundo foi espremido pelo rabo vem me dar um beijo meu queria eu também te dar um beijo tão azul iguaizinho­s as cores quentes do Talatona mas infelizmen­te no meu bairro ñ tem contentore­s talvez por isso é que eu nunca te ofereci flores porque no bairro não tem contentore­s é impossível criar jardins por cima do lixo lixo self lixo esse problema ñ se resolverá com beijos e abraços em pleno século XXI já é altura de desformata­rem o povo da ideia de que todo gato preto é feiticeiro» - António Paciência , poeta e Slammer do Movimento Lev’Arte.

6- A arte da declamação propaga-se rapidament­e, a Audio-poesia passa a ser a primeira opção para grande parte da nova vaga de poetas. Freedonli Kamolakamw­e, com os seus Cds de poesias, transforma-se no maior fenómeno literário, após o brigadismo literário, inspirando centenas de jovens a compor para declamação. Os textos poéticos passam a ser motivados pela oralidade. Esta realidade, dura para os conservado­res, traz a igura a instituiçã­o Poeta-declamador. Certamente, o leitor perguntar-se-á o que é, na verdade, um Poeta-declamador? Que motivações teóricas levar-nos-á a tal conclusão? A nosso ver, evitando outros procedimen­tos de retóricas, com o in-

tuito de alargar o texto, não será o Poeta-declamador aquele que pensa o texto imaginando-se em palco? Consequent­emente, o seu texto apresentar­se-á com marcas profundas da oralidade, um alargament­o textual propositad­o, em razão do tempo, e por vezes com um conteúdo prosaico. Então! Não será poesia o texto de um Poetadecla­mador? A oralidade não constitui uma marca na poesia tradiciona­l angolana e africana em geral? Até que ponto o conteúdo narrativo anula o lirismo encerrado em um poema, reduzindo até ao grau zero a poesia contida? Ou estaremos diante de um novo fazer criação?

É importante referir que, bem antes de Fredolim, já o Poeta, Crítico Literário e precursor da Audio-poesia em Angola, Lopito Feijó, publicou, em 1996, uma obra discográ ica, intitula- da «A Idade de Cristo», voltando a publicar, em Setembro de 2013, também obra discográ ica, Auto Gra ia, ‘‘em razão’’ dos seus cinquenta anos.

7- Quer o Spoken Word, quer a poesia dita, são formas artística que têm o seu valor quando performada. Pois, quando apresentad­as em livros, toda empatia se perde pela pouca valorizaçã­o do conteúdo estético que os seus cultores imprimem sobre as obras no decurso da sua produção.

Mediante os factos expostos, é importante referir, que nem todos se a irmam como Poeta-declamador. Por um lado, há os que se querem legitimar apenas como poetas e evitam o discurso da palavra dita; por outro, há os que se vão a irmando como declamador­es e poetas e os seus textos encerram as caracterís­ticas apresentad­as relativame­nte do Poeta-declamador.

(Helder Simbad é membro do Movimento Litteragri­s, Arte e Investigaç­ão

4º ano do Curso de Línguas, Tradução e Administra­ção – UCAN)

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