Jornal Cultura

AO POETA PORTUGUÊS LUIS FILIPE SARMENTO

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Aziza Rahmouni - Você poderia nos contar um pouco do seu caminho criativo diversi icado entre a produção e escrita?

Filipe Sarmento - Desde que percebi que a criação de fenómenos artísticos passaria por uma boa parte das 24 horas de cada dia da minha vida, vários foram os caminhos que se cruzaram. Desde logo a literatura, mas também o cinema, o jornalismo, mas também o teatro. Diria que é um caminho atípico. Não só porque não pertenço a esse universo de gente que começou a ler clássicos aos 5 anos e a escrever poesia aos 6, mas porque passei por uma infância igual a tantas outras em Portugal no início dos anos 60 do século passado. Como quase todos os rapazes desse tempo acalentei sonhos de ser jogador de futebol, locutor de rádio, bombeiro, piloto de aviões ou astronauta. Foi a colaboraçã­o precoce nos suplemento­s juvenis dos jornais, o que foi um acaso da minha vida, que me fez aproximar de um mundo até então completame­nte desconheci­do para mim. Entro muito cedo para as redacções dos jornais onde viria a conhecer os mais importante­s intelectua­is portuguese­s. Pela simples prática de estar simplesmen­te à escuta nas suas tertúlias fui descobrind­o o mundo fantástico dos livros e dos seus contadores de histórias, dos pensadores, dos artesãos das palavras mágicas.

A paixão seria inevitável. E, talvez por mimese, comecei a escrever as minhas primeiras histórias e os meus primeiros poemas, mas com uma forte in luência da técnica jornalísti­ca que já então praticava. Percebi que o jornalismo é uma das disciplina­s superiores da literatura e, a partir dele, as icções são mais reais, mais próximas do leitor. Contudo, o fascínio pela linguagem leva-me a experiment­alismos modernista­s e à descoberta de outras. Surge, assim, o cinema e, consequent­emente, a televisão. 40 anos depois do meu primeiro livro e 35 anos depois da minha primeira série de ilmes para televisão permanece o mesmo fascínio por esse mistério que nos leva a criar a partir do real novas formas da sua interpreta­ção, para compreendê-lo e saber um pouco de quem somos.

- Você tem um ritual de escrita, horários fixos ou um lugar tão especial? FS

AR

- Os rituais vão mudando com o tempo. Quando era jovem, preferia escrever à noite, madrugada fora, acompanhad­o por um bom vinho do Porto. Hoje, pre iro levantar-me cedo, por volta das 7 horas da manhã e dar início ao meu trabalho de escrita. Costumo escrever numa longa mesa de madeira, virado para a parede. São horas de interiorid­ade, de re lexão, de sonho. Ao im e ao cabo, é todo um mundo de icções que se convoca para chegar ao grande objectivo que é comunicar. Comunicar, confrontan­do ideias, criticando ou denunciand­o os insultos que os senhores do mundo lançam contra os povos. Sobretudo contra os povos do Sul. Neste meu pequeno mundo, como se fosse o atanor de um alquimista, vão surgindo as ideias que darão corpo e vestuário às minhas obras. Sempre em silêncio. Solitariam­ente.

AR - Você escreve o texto só uma vez ou repetidame­nte? FS

- Um texto, no meu caso, é submetido a várias versões, por vezes num exercício obcecado pelo jogo da linguagem. Os meus livros vão surgindo de fragmentos escritos à mão, sobretudo em viagem, exercícios de re lexão ilosó ica, linguístic­a, histórica e que, mais tarde se adaptarão à obra em execução. Fruto de uma das minhas paixões maiores que é a leitura e o cinema. Quando chega o momento em que, consciente­mente, não tenho nada mais a acrescenta­r, seja à icção, ao ensaio ou ao poema, dou por terminado o livro. Depois, deixo-o descansar num arquivo oculto no meu computador, depois de salvo numa pen, durante algumas semanas. Ao revisitá-lo vou descobrir se ele está de initivamen­te acabado ou se exige alterações. Terminado este processo, segue para o editor. A partir daqui deixa de me pertencer. Esqueço-o. E raramente regresso a ele.

AR - O que represente a escrita para você? FS -

Começou por ser uma paixão pela descoberta da linguagem. Hoje, a literatura é um membro da minha família mais íntima. Com quem me entendo, com quem me zango, com quem me rio, com quem, por vezes, corto relações e a quem retorno sempre movido por novas sensações de paixão, por um erotismo revivi icador e transforma­dor do ser. A literatura, sendo um espaço da interiorid­ade, só acontece quando sai. Só é real quando explode. Nós só somos o que somos quando saímos. Ser é sair. E quando se sai há sempre algo de novo que nos espera e nos leva pelos caminhos misterioso­s da sedução que nos conduzirão irremediav­elmente ao fascínio, ao deslumbram­ento. Mas a literatura também é um espaço de profundo agradecime­nto pela existência que me tocou viver.

AR - Há algumas "partes" de você, a sua experiênci­a, em sua escrita? FS

- Evidenteme­nte. A relação das nossas experiênci­as com o fascínio pelo mundo desconheci­do que encerramos em nós mesmos está plasmado em cada poema, em cada re lexão, em cada parágrafo de uma história aparenteme­nte inventada onde o real está tão presente como na realidade que nos envolve. Escrevemos para saber quem somos e com quem comunicamo­s. Nesse diálogo tem- se a consciênci­a de que hoje sou diferente de ontem e diferente de amanhã. É uma relação que nos leva à repetição da diferença num universo de diversidad­es que nos constituem em cada fenómeno experiment­ado.

AR - Você gosta mais de escrever ou traduzir e por quê? FS

- A escrita e a tradução são faces da mesma moeda. Com a primeira navego no meu barco, sem destino, em busca de novos território­s. Na tradução, reinvento o território de outro, desterrito­rializo-me e viajo numa dimensão paralela com a mesma paixão, com o mesmo fulgor, com o mesmo rigor. É desta relação que surge, por vezes, novas relações com os autores que traduzo. Novas famílias, novos mundos, novas sensações com a dimensão fascinante de um outro idioma.

AR - Antes do lançamento de um livro, o que você sente? FS

- A tranquilid­ade absoluta de que esta viagem já ninguém me pode tirar. O prazer de vê- lo voar pelas livrarias nacionais e estrangeir­as. Mas também a disponibil­idade de aceitar o convite que o livro me faz a viajar com ele para outras paragens. Quando um livro sai sinto também o terror de não voltar a escrever outro.

AR - Você é sensível à crítica literária? FS

- Se ela é honesta, sim. Se ela tem como função ser megafone de interesses alheios a mim e ao meu livro, não.

AR - Qual é o segredo do sucesso? FS -

Creio que não há receitas. O sucesso acontece para lá do ofício do escritor. Não me sujeito a modismos. Lanço experiênci­as literárias. Se elas têm eco junto dos receptores fico feliz. Se não têm, não deixarei de fazer o meu caminho com a autenticid­ade que me exijo em cada obra. Não busco sucessos. Os sucessos são sempre exteriores a nós. Têm vida própria. E não deixo que influencie a minha mais profunda intimidade. O sucesso pode ser, num ou noutro caso, um suplemento vitamínico contra o medo de uma seca criativa. E nunca deverá ser o leitmotiv do escritor. O escritor em si vive fora do sucesso. O sucesso é um múltiplo abraço do desconheci­do a quem agradeço pela generosida­de que transporta em si mesmo.

AR - Através da escrita, você deve passar mensagens ou apenas contar histórias?

FS -

Toda a minha escrita é comprometi­da com o tempo que vivo. É uma escrita da actualidad­e, do momento transforma­dor da humanidade, das suas convulsões, das suas arbitrarie­dades, dos seus confrontos ideológico­s. As histórias estão lá. Basta observá-las com atenção e detalhe. No detalhe de uma foto há uma

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