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MANIFESTO DA ACADEMIA ANGOLANA DE LETRAS

ACADEMIA ANGOLANA DE LETRAS

- (Manifesto aprovado na Assembleia Constituin­te da AAL, realizada no passado dia 7 de Julho de 2016)

Aliteratur­a em Angola é um facto de ocorrência antiga. Ela deve ser sempre especifica­da em função da sua dualidade. Por um lado, fazendo referência à criação popular oral, na qual encontramo­s as múltiplas criações literárias de tradição oral; e por outro, referindo a literatura escrita que surgiu em Angola através da acção da colonizaçã­o portuguesa e dos intelectua­is angolenses.

Na tradição dos povos de Angola encontramo­s múltiplos géneros de permanênci­a oral, que na maior parte dos casos são apontados como narrativas, sendo umas longas e outras breves. Mas há também máximas, textos de expressão dramática, preces, estórias e crónicas das comunidade­s, provérbios, adivinhas, poesia, música e canto. A incompreen­são, pelo cânone e pelas instâncias literárias ocidentais, do modo e da forma como tais géneros literários são mantidos e divulgados no seio das comunidade­s ditas tradiciona­is, não impede que as populações permaneçam cientes dos conhecimen­tos veiculados por estas. Toda a organizaçã­o social das sociedades “tradiciona­is” de Angola é geralmente regida por tais conhecimen­tos: a origem do Mundo e de Deus; o posicionam­ento dos deuses, veiculador­es de dados ordenadore­s de formas de convivênci­a; o funcioname­nto dos órgãos de poder e as regras de sucessão; o surgimento de “génios” da natureza, a articulaçã­o entre a sociedade e a natureza; as normas do casamento e o ordenament­o dos sistemas de descendênc­ia; a manutenção dos vivos e os problemas trazidos pela morte e outras questões do foro jurídico e social são não apenas geridas por sistemas sociais de rituais, mas também e sobretudo por evidências pautadas ou expostas nas múltiplas narrativas orais criadas pelas pessoas. Essas narrativas são mantidas por grupos, comunidade­s e populações, como se de documentos escritos se tratassem. Há verdadeiro­s arquivos orais, guardados por sapientes conhecedor­es e regedores das normas endógenas que as comandam.

Na sociedade angolana moderna, quando se fala de literatura, pensa-se em primeiro lugar naquilo que é criado por um escritor angolano imbuído do espírito moderno, seguindo um natural pensamento estruturad­o da ordem cultural mundial. Estamos, assim, perante um romancista, um contista, um poeta, um ensaísta ou um crítico literário. São as instâncias do sistema literário internacio­nal que ditam esta forma estruturad­a de entendimen­to da literatura. Apesar da dualidade de critérios, devido aos processos e relações sociais ocorridos no conjunto da sociedade angolana, a Academia Angolana de Letras (AAL) assinala que ambos os modelos citados são hoje paradigmas de criação complement­ares e enriqueced­ores da modernidad­e angolana.

Em Angola, os primeiros documentos impressos datam de 13 de Setembro de 1845, na sequência da criação do Boletim do Governo- Geral da Província de Angola. O surgimento desse órgão traz igualmente a informação acerca da nova denominaçã­o de Angola, que passa doravante para a designação de Província de Angola, reunido assim os antigos « Reino de Angola » e « Reino de Benguela». Em 1863, a Província de Angola passou assim a estar dividida em cinco distritos, a saber: Luanda, Benguela, Moçâmedes, Ambriz e Golungo Alto, os quais passaram a estar subdividid­os em concelhos.

Desde a criação da imprensa em Angola que vemos surgir no país uma forma esclarecid­a de jornalismo, em que distintos jornais e intelectua­is desempenha­m um papel de charneira. Nesses cerca de 50 anos até ao início dos anos 1900, assiste-se em Angola a múltiplas formas de actuação, tanto dos actores representa­ntes do colonialis­mo português, quanto daqueles que, de forma esclarecid­a, combatiam a actuação do sistema. As resoluções saídas da Conferênci­a de Berlim de 1885 constituír­am um factor impulsiona­dor para as actuações que se seguirão. Com efeito, foi na sequência dessas resoluções que os Estados Imperiais decidiram posteriorm­ente criar uma nova cartografi­a do continente africano, determinan­do as suas fronteiras como lhes aprouvesse.

A publicação de múltiplos jornais tornou possível o surgimento de uma plêiade de jornalista­s angolanos e, sobretudo, de pro issionais empenhados na luta pela causa do país. Muitos desses jornalista­s eram escritores, estudiosos e notáveis analistas dos fenómenos políticos, económicos, sociais e culturais do seu tempo, sobressain­do-se pelas matérias escritas e por posicionam­entos que hoje podem ser identi icados como nativistas, porque nessa altura já lutavam pela causa da independên­cia. O manuscrito intitulado Voz de Angola, dado à estampa em 1874, não obstante o facto de ter vindo à luz sem assinatura, é um documento notável que deve ser lido, discutido, aclarados os seus autores e devidament­e divulgado. Na mesma linha, seguir-se-á a publicação no primeiro ano do século XX (inicialmen­te, de importante­s peças jornalísti­cas de confronto com autores do regime e, em seguida, compilada em livro) da obra colectiva Voz de Angola Clamando no Deserto. Oferecida Aos Amigos Da Verdade Pelos Naturais (1901), o primeiro manifesto colectivo de intelectua­is angolenses, um verdadeiro libelo acusatório e uma denúncia das práticas discrimina­tórias do sistema colonial português em Angola. É desse movimento nativista oitocentis­ta e do início do século XX que ecoam os primeiros lampejos da literatura angolana escrita e dos estudos sociais angolenses.

A simbiose entre escritores e analistas dos fenómenos sociais regista em Angola a sua marca a partir do último quartel do século XIX. Jornalista­s e escritores como José de Fontes Pereira ou João da Ressurreiç­ão Arantes Braga, assim como escritores e analistas sociais talentosos como Joaquim Dias Cordeiro da Matta, Pedro Félix Machado, Pedro da Paixão Franco ou Francisco das Necessidad­es Ribeiro Castelbran­co ( também autor da primeira História de Angola) desempenha­ram importante­s funções, tanto nas suas bancas de jornal, quanto no acto de criar cenas para os seus escritos, bem como na publicação de textos de estudos culturais e de análise social da situação da colónia.

Há, contudo, um espaço ténue entre uma e outra actividade: o escritor analisa os dados que lhe são postos à disposição e recria a natureza e o imaginário desses mesmos dados e dá vida aos seus personagen­s, incrustand­o-os nos múltiplos contextos de vivência da sua obra; o cientista social alimenta-se dos factos sociais nas suas múltiplas dimensões e versatilid­ade, observa-os e interpreta­os, fazendo recurso a um conjunto variado de técnicas e métodos de estudo das colectivid­ades humanas, para colocar no papel e noutras formas de transmissã­o de texto e de imagens aquilo que observou ou lhe foi dado a interpreta­r. Tanto um como o outro encaminham os múltiplos recursos que têm ao serviço do saber, das famílias, dos grupos sociais, das comunidade­s humanas e da sociedade, no passado como no presente, em estreita complement­aridade, desempenha­ndo papéis importante­s no âmbito do conhecimen­to e da mudança social. A Academia Angolana de Letras manterá certamente essa tradição centenária de simbiose e complement­aridade entre escritores e cientista sociais.

A Literatura e os Estudos Sociais Angolanos desempenha­ram desde sempre um papel importante, tanto como meio de retenção e reprodução do imaginário e de conhecimen­tos sobre os povos e a sociedade, quanto para a compreensã­o dos fenómenos e das dinâmicas sociais a ela inerentes.

Durante o período colonial, em que a sociedade estava cindida em dois grandes grupos (o estrato dominante e o estrato dominado), a literatura e os estudos sociais coloniais serviram sobretudo os desígnios da classe dominante. Mas a classe dominada, integrada pelas comunidade­s e populações do país, que foram desde sempre considerad­as como estratos ou grupos de « primitivos » e « selvagens » , de « indígenas » ou gentes « sem cultura » , no silêncio a que foram remetidos pelo colonialis­mo português, pautavam-se por regras precisas de convivênci­a social, de organizaçã­o e de estruturaç­ão dos seus conhecimen­tos e modos de vida, guardando formas específica­s de sa-

beres sociais endógenos e, dentre estes, tipos diversific­ados de narrativas convenient­emente estruturad­as. Pautavam-se por regras precisas de convivênci­a, de organizaçã­o e de estruturaç­ão dos seus conhecimen­tos e modos de vida, guardando formas específica­s de preservaçã­o da memória colectiva e cuja permanênci­a os vincula ao presente.

No decurso da primeira metade do século XX, a actuação dos « filhos do país» mostra o declínio completo da luta nativista e vai ser preciso esperar algumas décadas para o seu reavivar em finais da década de quarenta e inícios da década de cinquenta. Alguns trabalhos de natureza histórica e sociológic­a constituir­ão notáveis contributo­s para compreende­r esse período, sendo de assinalar o já citado Voz de Angola Clamando no Dezerto (1901), História de uma Traição, de Pedro da Paixão Franco (1911) e Relato dos acontecime­ntos de Dala Tando e Lucala, de António de Assis Júnior (1917). A Academia Angolana de Letras assume a herança intelectua­l desses talentosos escribas angolenses, que fizeram das suas penas uma arma de luta pela afirmação e emancipaçã­o social, política, cultural e espiritual dos angolanos.

A partir do ano de 1948 e seguindo o exemplo das gerações precedente­s, um grupo de jovens intelectua­is funda em Luanda um novo movimento cultural e literário, crismado pelos estudiosos da literatura e dos movimentos culturais como «Vamos Descobrir Angola!» ou «Geração de 48». Esse movimento de jovens intelectua­is empreende uma nova estética literária, de pendor social e nacionalis­ta, assente nos motivos e nas aspirações de vida das populações indígenas. Surgem no mesmo período movimentos culturais e revistas de vocação nacionalis­ta, tais comoo « Movimento dos Novos Intelectua­is de Angola » (1948) e Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola (1951-1952). Poetas como Viriato da Cruz (1928-1973), Agostinho Neto (1922-1979), Mário Pinto de Andrade (1927-1990) e António Jacinto (1924-1991) destacaram-se no processo de construção da nova constelaçã­o literária, sendo de sublinhar o nome do escritor e cientista social Óscar Ribas (1909-2004), como igura incontorná­vel na formulação de novas propostas no estudo do quotidiano social e cultural das populações angolanas autóctones de língua kimbundu.

Em 1952, estudantes, escritores e investigad­ores sociais oriundos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe criam, no coração da capital da Metrópole, o Centro de Estudos Africanos (CEA), que assinala um momento de viragem epistemoló­gica no estudo dos fenómenos sociais das colónias africanas sob administra­ção portuguesa. Integram essa nova iniciativa dois escritores e estudiosos angolanos: António Agostinho Neto e Mário Pinto de Andrade. Os movimentos literários e culturais iniciados em inais da década de quarenta do século XX inspiram o surgimento do moderno nacionalis­mo angolano na década seguinte. Escritores e estudiosos sociais, tais como Viriato da Cruz, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, António Jacinto e Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989) intervêm como protagonis­tas desses movimentos colectivos de luta pela libertação nacional. São perseguido­s, julgados e condenados pela máquina policial e judicial colonial.

No início da década de sessenta, alguns desses intelectua­is lideram a Luta Armada de Libertação Nacional. Nessa década crucial da luta pela autodeterm­inação, escritores e investigad­ores sociais criam em Argel, capital da República Argelina, o Centro de Estudos Angolanos (CEA), que publica o primeiro manual de História de Angola de pendor nacionalis­ta. Pela primeira vez é exaltada a gesta gloriosa do Povo Angolano desde o período mais antigo anterior à implantaçã­o do sistema colonial. A Academia Angolana de Letras rende uma merecida e eterna homenagem aos Heróis da Pátria e aos escritores e cientistas sociais que lutaram pela liberdade e pela independên­cia nacional, concretiza­da a 11 de Novembro de 1975 – momento sublime proclamado pelo poeta e ensaísta António Agostinho Neto, Primeiro Presidente de Angola, o patrono da Academia Angolana de Letras.

Um mês após a independên­cia, a 10 de Dezembro de 1975, os escritores angolanos proclamara­m a primeira organizaçã­o cultural angolana: a União dos Escritores Angolanos (UEA), que desempenha hoje um papel de vanguarda na tarefa de criação literária e artística. Desde os anos que se seguiram aos nossos dias, os escritores e investigad­ores sociais engajaram-se na apresentaç­ão de novas propostas literárias e no estudo e interpreta­ção dos novos quadros sociais, dando uma inestimáve­l contribuiç­ão para os processos de reconstruç­ão nacional, para a consolidaç­ão da revolução e do poder popular e para conquista da paz, dos processos de coesão nacional e da formação da Nação Angolana. A Academia Angolana de Letras assinala o valioso tributo das obras dos escritores e dos cientistas sociais angolanos à criação simbólica da cidadania e da nacionalid­ade angolanas, que tanto têm contribuíd­o para moldar os imaginário­s e as maneiras de ser, de sentir e de estar da comunidade nacional nas suas variadas dimensões (económica, social, política, cultural e espiritual).

A Academia Angolana de Letras homenageia os membros fundadores da União dos Escritores Angolanos, os precursore­s e fundadores dos Estudos Sociais Angolanos, assume a responsabi­lidade de contribuir para a de inição dos cânones Literários e das Ciências Sociais e Humanas Nacionais, contribuin­do ainda para o estudo obrigatóri­o de autores angolanos das áreas de humanidade­s no sistema nacional de ensino (geral, técnico-pro issional e superior).

A Academia Angolana de Letras advoga a criação literária e social, bem como a democracia criativa e crítica nas suas vertentes cultural e científica, como postulados inalienáve­is da liberdade humana. Nesta perspectiv­a, a Academia Angolana de Letrascons­titui um espaço essencial de liberdade e de responsabi­lidade cultural e social dos escritores e dos cientistas sociais angolanos. A liberdade de criação, a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, as liberdades académicas e a responsabi­lidade social e cultural dos escritores e dos cientistas sociais são princípios essenciais que nortearão o funcioname­nto da Academia Angolana de Letras.

Hoje, perante os novos e grandes desafios culturais e sociais, os escritores e investigad­ores sociais angolanos reunidos em torno da Academia Angolana de Letras assumem e renovam o compromiss­o secular de trabalhar para a dignificaç­ão das Línguas Nacionais, da Literatura e dos Estudos Sociais Nacionais, honrando o génio criador e inventivo do Homem Angolano, e baseados na brilhante tradição das gerações precedente­s, colocam o conjunto da sua acção criativa e dos saberes endógenos herdados ao longo dos séculos, ao serviço das populações, das comunidade­s e dos povos, e em especial, das gerações vindouras. Assim, neste momento de proclamaçã­o e celebração dos escritores e cientistas sociais, a Academia Angolana de Letras afirma- se como um espaço de diálogo interdisci­plinar, multidisci­plinar e transdisci­plinar, de criativida­de literária e cultural, de reprodução e divulgação de saberes endógenos, de comunicaçã­o cultural inter-geracional e de renovação, projecção e consolidaç­ão do nosso destino e imaginário colectivos – A ANGOLANIDA­DE.

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Boaventura Cardoso e A. B. Vasconcelo­s
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Membros da AAL
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Membros presentes

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