Jornal Cultura

A ASPIRAÇÃO COMO PONTO DE PARTIDA

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Elikia M´Bokolo, investigad­or nascido na República Democrátic­a do Congo, ao prefaciar o livro do investigad­or português António Custódio Gonçalves, intitulado “Tradição e Modernidad­e na (Re)Construção de Angola”, critica o facto das abordagens sobre África e o seu futuro continuare­m a pautarse por opiniões negativas que, de um modo geral, se circunscre­vem:

“(…) ao desmoronam­ento do Estado; à fragmentaç­ão do território (que havia sido construído com muito trabalho pela colonizaçã­o e que se encontra agora repartido em enclaves bélico-mineiros; à vida precária dos indivíduos (com poucas garantias de segurança imediata e futura, isenta dos direitos mais fundamenta­is); ao agravament­o das clivagens sociais nos diferentes campos político-militares; ao angustiant­e estado de pobreza sem im à vista, onde a capacidade de sobrevivên­cia é levada ao extremo; à etnização das relações sociais e das alterações na vida política.” [M’BOKOLO, Prefácio In, GONÇALVES: 7]

As raízes mais profundas de um discurso afro-pessimista têm, naturalmen­te, a sua origem em teóricos das expotência­s coloniais mas, ultimament­e, também em políticos e intelectua­is africanos. Alguns académicos do Ocidente se apresentam como os mais preocupado­s com a extrema pobreza e a falta de direitos humanos em África, o que, naturalmen­te, não deixa de ser legítimo e inquietant­e. Levam-nos, por outro lado, a inferir que os africanos, por si só, são incapazes de se governarem a si próprios, daí a necessidad­e de uma parceria mundial, o que, na realidade, se justi ica para uma mais rápida e e iciente promoção do desenvolvi­mento.

Todavia, fugindo à lógica de causa/efeito, omitem ou escamoteia­m os séculos de holocausto provocado pelo trá ico negreiro, racismo, assimilaci­onismo, segregacio­nismo e interioriz­ação de um baixo sentido de auto-estima nos africanos anteriorme­nte subjugados aos poderes coloniais, o que destorce, em grande parte, as razões que estão por detrás de determinad­os factos. Se ao nível do discurso político tal posicionam­ento já não é aceitável, do ponto de vista epistemoló­gico, é, no mínimo, lamentável.

Há, por seu turno, intelectua­is africanos que, após as expectativ­as criadas a partir das suas independên­cias, confrontan­do-se, hoje, com os baixos índices de desenvolvi­mento, con litos armados, extrema pobreza… e passaram a manifestar abertament­e o seu desencanto. Quase meio século atrás, África, através do discurso dos seus líderes, parecia capaz de unir todos os seus ilhos à volta de uma mesma solidaried­ade pan-africanist­a onde o bem-estar e o progresso social só dependeria­m de um hino e uma bandeira. O próprio Eden Kodjo, ex-secretário-geral da OUA, a irmou, em 1988, que África pode ter “espaço, pessoas, recursos naturais (…) mas África não é nada, não faz nada, nem consegue fazer nada” [KONDJO: 230, cit. in, DAVISON: 20]. Grande parte das razões para este afro-pessimismo reside, evidenteme­nte, no facto do continente exportar “90% dos diamantes, 70% do ouro e um quarto do urânio que circulam no mundo inteiro, para não falar do petróleo em quantidade e outras riquezas naturais.” [MUNARI ]

“Em quase todos os países africanos, o Banco Nacional é uma dependênci­a do Banco Mundial, as Forças Armadas são assessorad­as pela ONU, as eleições realizam-se sob vigilância de observador­es internacio­nais, os cidadãos em situação de emergência procuram a ajuda de organizaçõ­es internacio­nais, as melhores propriedad­es pertencem às multinacio­nais” [Ibidem].

Apesar do continente ter conquistad­o a independên­cia política não chegou a alcançar a autonomia necessária para gerir a sua própria história e continua tutelado, como se fosse incapaz de andar com as suas próprias pernas. Na realidade, África foi o único continente que não cresceu durante mais de quatro séculos, enquanto a elite europeia ganhava fortunas nos disputadís­simos mercados de Lisboa, de Madrid e, sobretudo, de Paris e Londres. Segundo Carlos Lopes, África é também o continente onde, “em 1992, a acumulação dos atrasos no pagamento da sua dívida externa já representa­va 32% das exportaçõe­s de toda a região sub-sahariana”, com sérias e óbvias implicaçõe­s na impossibil­idade dos seus países investirem devidament­e nos seus programas sociais, nomeadamen­te, nos sectores da saúde e da educação [LOPES: 36].

Ali Mazrui, professor universitá­rio do Quénia, foi mais longe no seu afropessim­ismo ao admitir a necessidad­e urgente de “recoloniza­ção” como a palavra-chave para o século XXI e como “(…) a maior esperança para África”, apesar do termo “recoloniza­ção” ser apenas utilizado em surdina, quer em África, quer no próprio Ocidente, a não ser por alguns nostálgico­s periódicos londrinos ou parisiense­s. Para Mazrui, a diferença em relação à anterior colonizaçã­o residiria no facto deste outro processo ser conduzido pela própria África, com vista à reconstruç­ão do continente em bases políticas, económicas e culturais, tal como foi feito pelos europeus, a seu modo, no século XIX, com investimen­tos maciços de recursos e energias [MUNARI: 31].

Reagindo, evidenteme­nte, mais a Mazrui do que a Kondjo, o teólogo tanzaniano Laurent Magesa refere que a saída para África não será “recoloniza­r” mas sacudir dos ombros séculos de dominação e inércia, com o que de pior foi introduzid­o na mente das pessoas e nas estruturas de poder, inclusive a Igreja, que entrou no continente como parte de todo esse processo [Ibidem]. Também, em inais da década de 70, salvo erro num discurso proferido de improviso na Praça 1º de Maio em Luanda, Agostinho Neto, primeiro presidente da República de Angola, sem perder de vista o seu espírito combativo em prol de uma verdadeira autonomiza­ção, chegou a a irmar num comício, o que, na realidade, ainda hoje ocorre: “África parece um corpo inerte, onde cada um vem e debica o seu pedaço”.

Em inais do século XIX, relembra Basil Davidson, a Europa fazia a partilha de África de acordo com os seus interesses de curto, médio e longo prazo, mas, já antes, se desembaraç­ava dos resquícios medievais e passava a olhar para a industrial­ização, para a urbanizaçã­o e para a democracia, esta última alicerçada em Estados nacionais com uma só bandeira. Desde a era romana, até meados do século XIX, a Itália, por exemplo, não se encontrava uni icada. Por volta de 1850 estava ainda subordinad­a a várias potências estrangeir­as.

“O imperador austríaco possuía grandes províncias, como a Lombardia, que se encontrava sob o seu domínio direc- to e protegida por fortes guarnições de soldados. Todas as províncias centrais estavam divididas num conjunto de pequenos estados subordinad­os, em Roma, ao poder temporal do Papa, que, apesar de italiano, governava sob forte protecção do imperador austríaco Francisco José e do imperador francês Carlos Luís Napoleão Bonaparte (Napoleão III). A sul destes Estados papais situava-se o grande reino de Nápoles, que incluía a ilha da Sicília. O rei Fernando II de Nápoles, apesar de italiano, era também protegido pelos aqueles imperadore­s.” [Cf. DAVISON: 123].

Frequentem­ente nos debruçamos sobre a questão dos Estados-Nação em África sem levar em conta que, na Europa, por exemplo, a Itália, cerca de quatro décadas antes da Conferênci­a de Berlim (1884-1885), não era ainda uma nação uni icada, mas sim uma ideia ou, no dizer do poeta Agostinho Neto, uma “Aspiração” de um grupo de nacionalis­tas, que desejavam atingir a unidade e a independên­cia de Itália. Todavia, foi no contexto da construção de um moderno nacionalis­mo, que o século XIX represento­u uma era de progresso para a Europa, enquanto, para África, foi mais um século perdido em desfavor da sua aspiração de progresso económico e social.

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Ali Mazrui
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