O PROCESSO DE METAFICÇÃO NO ROMANCE A DANÇA DA CHUVA, DE FRAGATA DE MORAIS
A Dança da Chuva de Fragata de Morais abre com uma epígrafe de Michel Foulcault que questiona o conceito de icção: “A icção consiste não em fazer ver o invisível, mas fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do invisível”. Como a ilustrar esta de inição, o incipit do ivro apresentanos a descrição da Rua da Vaidade, que “sempre fora a mais curta e desalinhada daquele bairro de Luanda”. A ausência de passeios, as “poças de água mal cheirosa”, “a imundice acumulada” e todos os factores que, por anticatástase, justi icam ironicamente o nome de Rua da Vaidade, são elementos que nos permitem mergulhar na icção, isto é, que nos podem levar a “ver até que ponto é invisível a invisibilidade do invisível”. O aliciamento ao mergulho na icção ou, melhor, na compreensão do que é a icção, pela leitura do livro que temos em mãos, tornase claro quando, a propósito da Rua da Vaidade, o narrador faz uma a irmação, aparentemente despropositada, sobre livros: “Muitos há, que julgam o livro pela capa ostentosa que o encerra.”
O paralelismo inesperado entre o sentimento dos moradores da rua, que a conhecem por dentro, e o julgamento dos leitores marca o apelo à leitura que permite conhecer o livro por dentro, saber o que está para lá da capa, sem descentrar, no entanto, a nossa atenção da rua, objecto da focalização interna de um narrador totalmente obcecado pelo lugar e, sobretudo, por uma “casa que destoava completamente do resto por ter um primeiro andar, rachado e de cor imprecisa, com janelas de madeira meio apodrecidas.”
A subjectividade da focalização interna, centrada no narrador, evidencia não o que personagem vê, mas o que alcança por outros sentidos que estão para além da visão, incluindo o que é objecto de re lexão interiorizada. Tal como acontece com a Rua da Vaidade e com os livros, não é o aspecto exterior da casa que seduz o narrador nem o que os outros dizem dela. A sedução que a casa exerce sobre o narrador devese ao que está dentro dela, ao chamamento da música que dela sai e que, ao que parece, só ele consegue captar: “Uma vez parei à sua frente para a observar, tinha uma luz interna acesa, todavia não distinguia gente a movimentar se no interior. Retribui - me o olhar, quase com desdém, senti. Olhava para mim pelas duas janelas entreabertas, estática,
1 Fragata de Morais, A Dança da Chuva, Luanda, UEA, 2016
como natureza morta que algum pintor macambúzio tivesse transferido para uma tela amarelenta e percebi que cantava. Escutei e não tive a menor dúvida, cantava, não com palavras, mascom o soar melódico do ranger das tábuas e dobradiças podres das janelas, produzindo uma melodia estranha que se fazia ouvir pela rua adentro, e que ninguém parecia ligar. Com o carro parado à berma do passeio, motor desligado, baixei as janelas e escutei hirto, não fosse espantar o vento, esse fantasma compositor e maestro que regia tão bela sinfonia. Era um estranho luir de sonoridades, tanto ressoava um violino pela chaminé esburacada, como um oboé no ranger das dobradiças enferrujadas, seguido da bateria no agreste bater das janelas agora abrindo e fechando se, inalizando com os graves de contrabaixo dos portões enferrujados a ondear para trás e para afrente num abre e fecha sereno. Quem produzia este pranto musical que suavizava a putrefacção à volta? É verdade que quem canta seus males espanta, percebi.” (pp.1617)
A personi icação da casa que “retribui o olhar” do sujeito e a melodia que entoa marcam a sedução que exerce sobre alguém que se sente inferiorizado por não conseguir captar os mecanismos de trans iguração do real ocultos “no pranto musical” saído da casa. O “pranto” justifica a necessidade e urgência do desvendamento, mas o “desdém” no olhar da casa mostra a incapacidade que o sujeito “sente” em desvendar e captar o “estranho fluir de sonoridades”, capaz de “suavizar a putrefacção à volta”. A casa “cantava, não com palavras” mas com um “estranho fluir de sonoridades” em que o narrador se deixa emocionalmente envolver para desvendar e verbalizar, isto é, para transformar em palavras. Esta constatação leva nos, de novo, a estabelecer o paralelismo entre o desvendamento do que se passa na Rua da Vaidade e o que acontece nas páginas do livro que não podemos julgar pela capa.
O desvendamento da icção passa pela meta icção, isto é, pela compreensão dos mecanismos que sustentam a construção de um universo ictício. O percurso na escrita, e também da leitura, é metaforizado pelo caminho feito pelo narrador na Rua da Vaidade em que o prazer da descoberta é orientado por di iculdades que só o conhecimento consegue tornear: “Achei que, quando por ela passava, me atapetava o caminho por entre os charcos, me revelava os buracosarmadilhas de suas entranhas, e oferecia belas ratazanas para me servirem de guia, as mais e icientes funcionárias de um protocolo pro issional, esbeltas e longilíneas, de guinchares curtos, vem por aqui, cuidado com aquela água ali, salta esta pedra, cautela não tropeces.”(p.16).
As ratazanas esburacam a terra, conhecemna por dentro, daí a pertinência do seu papel de guias do narrador.
A casa, espaço da sedução, revela - se como o lugar capaz de albergar o universo fictício que o sujeito tenta captar na música encantatória que dela se desprende. A música, em geral associada à plenitude da vida cósmica, aparece, neste contexto, como um canto de sedução, um chamamento contínuo para a entrada num espaço do risco simultaneamente desejado e temido.
Longe da Rua da Vaidade, no apartamento no centro da cidade, onde o narrador vive, a música continua o jogo de sedução: “Pareceume ouvir um novo sopro, uma nova nota de angústia no toque do clarinete, desta vez vindo da cozinha.” (p.25) e “Pé ante pé, não fosse espantar músico, fantasma ou não, ouvido a inado, fui andando pela casa e em todos os pontos em que estive sentiame rodeado pela melodia ténue, como se estivesse fechado dentro de um ovo. Não havia um ponto especial de onde dimanava, estava em todo o apartamento, dentro da roupa que vesti, no fundo do copo vazio da bebida, suave, insinuante, às vezes um violino de Mozart, outras o deleitoso saxofone do Nanuto, sempre muito suave, quase inaudível, mas nunca me revelando a proveniência.” (p. 53)
A música esconde as palavras necessárias para criar o universo fictício que o sujeito persegue, como explica a personagem Durango: – “O que julga ser música, é o seu bisavô a tentar entrar em contacto consigo, por isso lhe pareceu como vinda do além, muito ténue. (…) Então entenderá as palavras camufladas como música, (…)”( p.65).
A procura das palavras e, por exten-