Jornal Cultura

O PROCESSO DE METAFICÇÃO NO ROMANCE A DANÇA DA CHUVA, DE FRAGATA DE MORAIS

- ANA MARIA LUCAS

A Dança da Chuva de Fragata de Morais abre com uma epígrafe de Michel Foulcault que questiona o conceito de icção: “A icção consiste não em fazer ver o invisível, mas fazer ver até que ponto é invisível a invisibili­dade do invisível”. Como a ilustrar esta de inição, o incipit do ivro apresentan­os a descrição da Rua da Vaidade, que “sempre fora a mais curta e desalinhad­a daquele bairro de Luanda”. A ausência de passeios, as “poças de água mal cheirosa”, “a imundice acumulada” e todos os factores que, por anticatást­ase, justi icam ironicamen­te o nome de Rua da Vaidade, são elementos que nos permitem mergulhar na icção, isto é, que nos podem levar a “ver até que ponto é invisível a invisibili­dade do invisível”. O aliciament­o ao mergulho na icção ou, melhor, na compreensã­o do que é a icção, pela leitura do livro que temos em mãos, tornase claro quando, a propósito da Rua da Vaidade, o narrador faz uma a irmação, aparenteme­nte desproposi­tada, sobre livros: “Muitos há, que julgam o livro pela capa ostentosa que o encerra.”

O paralelism­o inesperado entre o sentimento dos moradores da rua, que a conhecem por dentro, e o julgamento dos leitores marca o apelo à leitura que permite conhecer o livro por dentro, saber o que está para lá da capa, sem descentrar, no entanto, a nossa atenção da rua, objecto da focalizaçã­o interna de um narrador totalmente obcecado pelo lugar e, sobretudo, por uma “casa que destoava completame­nte do resto por ter um primeiro andar, rachado e de cor imprecisa, com janelas de madeira meio apodrecida­s.”

A subjectivi­dade da focalizaçã­o interna, centrada no narrador, evidencia não o que personagem vê, mas o que alcança por outros sentidos que estão para além da visão, incluindo o que é objecto de re lexão interioriz­ada. Tal como acontece com a Rua da Vaidade e com os livros, não é o aspecto exterior da casa que seduz o narrador nem o que os outros dizem dela. A sedução que a casa exerce sobre o narrador devese ao que está dentro dela, ao chamamento da música que dela sai e que, ao que parece, só ele consegue captar: “Uma vez parei à sua frente para a observar, tinha uma luz interna acesa, todavia não distinguia gente a movimentar se no interior. Retribui - me o olhar, quase com desdém, senti. Olhava para mim pelas duas janelas entreabert­as, estática,

1 Fragata de Morais, A Dança da Chuva, Luanda, UEA, 2016

como natureza morta que algum pintor macambúzio tivesse transferid­o para uma tela amarelenta e percebi que cantava. Escutei e não tive a menor dúvida, cantava, não com palavras, mascom o soar melódico do ranger das tábuas e dobradiças podres das janelas, produzindo uma melodia estranha que se fazia ouvir pela rua adentro, e que ninguém parecia ligar. Com o carro parado à berma do passeio, motor desligado, baixei as janelas e escutei hirto, não fosse espantar o vento, esse fantasma compositor e maestro que regia tão bela sinfonia. Era um estranho luir de sonoridade­s, tanto ressoava um violino pela chaminé esburacada, como um oboé no ranger das dobradiças enferrujad­as, seguido da bateria no agreste bater das janelas agora abrindo e fechando se, inalizando com os graves de contrabaix­o dos portões enferrujad­os a ondear para trás e para afrente num abre e fecha sereno. Quem produzia este pranto musical que suavizava a putrefacçã­o à volta? É verdade que quem canta seus males espanta, percebi.” (pp.1617)

A personi icação da casa que “retribui o olhar” do sujeito e a melodia que entoa marcam a sedução que exerce sobre alguém que se sente inferioriz­ado por não conseguir captar os mecanismos de trans iguração do real ocultos “no pranto musical” saído da casa. O “pranto” justifica a necessidad­e e urgência do desvendame­nto, mas o “desdém” no olhar da casa mostra a incapacida­de que o sujeito “sente” em desvendar e captar o “estranho fluir de sonoridade­s”, capaz de “suavizar a putrefacçã­o à volta”. A casa “cantava, não com palavras” mas com um “estranho fluir de sonoridade­s” em que o narrador se deixa emocionalm­ente envolver para desvendar e verbalizar, isto é, para transforma­r em palavras. Esta constataçã­o leva nos, de novo, a estabelece­r o paralelism­o entre o desvendame­nto do que se passa na Rua da Vaidade e o que acontece nas páginas do livro que não podemos julgar pela capa.

O desvendame­nto da icção passa pela meta icção, isto é, pela compreensã­o dos mecanismos que sustentam a construção de um universo ictício. O percurso na escrita, e também da leitura, é metaforiza­do pelo caminho feito pelo narrador na Rua da Vaidade em que o prazer da descoberta é orientado por di iculdades que só o conhecimen­to consegue tornear: “Achei que, quando por ela passava, me atapetava o caminho por entre os charcos, me revelava os buracosarm­adilhas de suas entranhas, e oferecia belas ratazanas para me servirem de guia, as mais e icientes funcionári­as de um protocolo pro issional, esbeltas e longilínea­s, de guinchares curtos, vem por aqui, cuidado com aquela água ali, salta esta pedra, cautela não tropeces.”(p.16).

As ratazanas esburacam a terra, conhecemna por dentro, daí a pertinênci­a do seu papel de guias do narrador.

A casa, espaço da sedução, revela - se como o lugar capaz de albergar o universo fictício que o sujeito tenta captar na música encantatór­ia que dela se desprende. A música, em geral associada à plenitude da vida cósmica, aparece, neste contexto, como um canto de sedução, um chamamento contínuo para a entrada num espaço do risco simultanea­mente desejado e temido.

Longe da Rua da Vaidade, no apartament­o no centro da cidade, onde o narrador vive, a música continua o jogo de sedução: “Pareceume ouvir um novo sopro, uma nova nota de angústia no toque do clarinete, desta vez vindo da cozinha.” (p.25) e “Pé ante pé, não fosse espantar músico, fantasma ou não, ouvido a inado, fui andando pela casa e em todos os pontos em que estive sentiame rodeado pela melodia ténue, como se estivesse fechado dentro de um ovo. Não havia um ponto especial de onde dimanava, estava em todo o apartament­o, dentro da roupa que vesti, no fundo do copo vazio da bebida, suave, insinuante, às vezes um violino de Mozart, outras o deleitoso saxofone do Nanuto, sempre muito suave, quase inaudível, mas nunca me revelando a proveniênc­ia.” (p. 53)

A música esconde as palavras necessária­s para criar o universo fictício que o sujeito persegue, como explica a personagem Durango: – “O que julga ser música, é o seu bisavô a tentar entrar em contacto consigo, por isso lhe pareceu como vinda do além, muito ténue. (…) Então entenderá as palavras camufladas como música, (…)”( p.65).

A procura das palavras e, por exten-

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