Jornal Cultura

CARLOS DOS SANTOS, ESCRITOR MOÇAMBICAN­O “NÃO É QUALQUER PESSOA QUE PODE SER ESCRITOR”

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Passou a ser frequente o Movimento Literário Kuphaluxa colocar à mesma ‘mesa literária’ escritores irmados e jovens aspirantes à carreira de escritor. O objectivo é fazer com que o grupo conheça as ferramenta­s para a construção consciente do texto.

Comungando deste objectivo, o escritor Carlos dos Santos levou a sua ‘ receita’ de escrita, a 6 de Julho, para os inúmeros jovens que o aguardavam no Centro Cultural Brasil- Moçambique. Sem demoras, disse o que era necessário para que o trabalho perdurasse no tempo. “É necessário dominar as técnicas de escrita”, exercício que exige trabalho árduo, “rascunhos e rascunhos”.

Desengane-se quem pense que conhecendo técnicas de escrita, já se pode tornar um escritor. Dos Santos dá mais tarefa: “ler livros, dezenas deles, centenas deles”, perscrutan­do sempre “as técnicas que são utilizadas pelos autores”.

A observânci­a das técnicas da escrita nos nossos dias parece uma utopia, pois, segundo Dos Santos, assiste-se a um imparável movimento que premeia “a cultura do vale tudo”.

“Os apologista­s desta abordagem em vez de se preocupare­m em estudar e trabalhar para corrigirem os erros, para fazerem bem, para fazerem cada vez melhor, escolhem não se esforçarem e, em vez disso, tratam de justi icar o que fazem mal com diferenças e limitações supostamen­te resultante­s dos contextos sociocultu­rais nacionais”, acrescenta.

Mais adiante, o nosso orador chama a atenção para a necessidad­e de se recusar o trabalho fácil, medíocre, consequênc­ia da preguiça. “Ninguém nasce medíocre”, avisa. E aos que pretendem acreditar no trabalho para elevar a qualidade da sua escrita, Dos Santos exige vigilância, pois os ‘ medíocres’ “não querem afundar- se sozinhos nas suas matérias fecais. Querem companhia”.

“Elas [ as apologias] são embustes daqueles que, não se achando capazes de se elevarem até ao nível onde os outros estão, tentam puxar para baixo aqueles que se esforçam e crescem”, reforça.

O conhecimen­to das técnicas de escrita e o reconhecim­ento do trabalho constante não são tudo, são apenas um meio caminho andado. “O conhecimen­to sobre as técnicas não faz um escritor”, recorda o orador, para quem este saber pode, pelo menos, ajudar a fazer alguma coisa: “um linguista, um analista, um revisor de textos escritos, todos eles têm talentos imprescind­íveis”.

Para se ser escritor, é fundamenta­l “ter predisposi­ções que criam uma sensibilid­ade particular, uma maneira própria de ver o mundo e de o descrever.” Portanto, para Dos Santos, é mentira que “qualquer pessoa que pode ser escritor”. É preciso ter “vocação”.

Ainda há mais. Depois das ‘ técnicas’, do ‘trabalho’, da ‘vocação’, vêm as vivências, fundamenta­is para a produção de conteúdo de qualidade, visto que, de acordo com Dos Santos, o conhecimen­to das técnicas e a capacidade de usá-las não geram nenhum produto. “Aquilo que se escreve tem de tocar, de interessar a quem lê”, aconselha.

O nosso orador vai mais longe e lança farpas a alguns autores moçambican­os, que passam o tempo todo a fazerem ‘ transcriçã­o’ de contos tradiciona­is, afugentand­o, desta forma, os leitores.

“Muita da literatura infantil publicada em Moçambique é, de facto, a mera transcriçã­o de contos tradiciona­is, sem sequer serem retrabalha­dos pelos ‘autores’”, a irma.

Dos Santos não pára por aqui. Critica também aos que ficam presos ao passado, os quais “têm mais de descrever do que de escrever”. Escrever sobre o passado é um “exercício técnico enfadonho, mais do que literário”, refere.

Para Dos Santos, esta escolha de escritores moçambican­os poderá estar a afugentar ‘clientes’, os poucos leitores que ainda nos sobram.

“Talvez o que os leitores, particular­mente os mais jovens, que são acusados de desinteres­se, de frivolidad­e, etc. (sempre eles os culpados!), queiram seja saber como podem antecipar, antever, imaginar como será daqui a vinte anos este país, esta sociedade em que vivem e em que se vão procriar, onde hoje se sai diplomado das universida­des sem se ter sequer aprendido a ler e a escrever”, sugere.

Para terminar, Carlos dos Santos deixa um recado para os que insistem na ideia de que é da quantidade que virá a qualidade. É “mentira”, a irma. “A qualidade resulta apenas do trabalho”, acrescenta para depois rematar:

“Podem juntar sucata daqui até à Lua, que tão grande quantidade nunca se transforma­rá numa nave espacial. Já uma nave espacial mal desenhada, inadequada­mente equipada, incompeten­temente pilotada, muito rapidament­e se transforma­rá em sucata!”

Carlos dos Santos é autor dos romances de Ficção Cientí ica “A Quinta Dimensão” (2006), “O Pastor de Ondas” (2011) e “O Eco das Sombras” (2013) bem como do contos infantis “O Conselho” (2007) e “O Caçador de Ossos” (2013).

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