O DILEMA DO APRENDIZ DE ESCRITOR
Omundo da Literatura mudou deveras. Hoje, temos um mercado livreiro extremamente saturado, que já não consegue escoar mesmo alguns dos best-sellers mundiais e todos fomos atingidos directamente, nos mais diversos domínios da nossa vida social, pelo kifumbe da crise global. A crise económica e a crónica dependência da África em relação às indústrias ocidentais, faz com que o livro, encarecido pelo preço das matérias primas para as gráficas nacionais e onerado pelos impostos aduaneiros, se torne quase inacessível, pelo seu preço, ao desfrute de uma boa leitura e consequente absorção individual de valiosos conhecimentos por parte da geração jovem. E a juventude vive emaranhada no sistema mundial das redes cibernéticas, nessa teia de mensagens digitais onde fica presa horas e horas, esquecendo- se do livro. Este quadro é agravado pela debilidade estrututural do sistema de Educação, que se pode classificar como “doença infantil do ensino”: trata- se da pobreza literária dos nossos professores primários e secundários, para não falar mesmo dos universitários, que não conhecem a nossa literatura, e, por essa razão, ignoram o seu valor pedagógico e semântico para a formação do cidadão, venha este cidadão um dia a querer ser escritor ou não.
Dentro deste quadro societário, o jovem que pretende vir a ser escritor depara-se com o dilema de, por um lado, não ter acesso à fonte primordial da sua inspiração artística e de uma cultura geral – o livro e a orientação mental e o suporte material pedagógico-familiar – e, por outro lado, estar perante um mercado já saturado de obras literárias. Perante este dilema, que caminhos trilhar?
I – SER ESCRITOR
Este DILEMA DO APRENDIZ DE ESCRITOR arranca da dialéctica do SER e do APARECER. Quando existe uma contradição entre estes dois estados, emerge uma angústia existencial na pessoa do aprendiz de escritor, quando alguém com sabedoria e que é um verdadeiro escritor lhe aponta categoricamente as falhas patentes na obra e lhe aponta o difícil caminho da vida de escriba.
O estado do SER ESCRITOR é um estado latente, pré-histórico da vida do escritor, pois ele só começa a fazer história, ao publicar algo, um poema, um romance, uma peça de teatro.
Este estado pode ser decomposto em três níveis ontológicos:
1. MATERIAL ou objectivo
2. INTELECTUAL
3. METAFÍSICO ou transcendental.
1. O nível MATERIAL ou objectivo é representado pela FERRAMENTA DE TRABALHO, pois a obra literária deve ser construída, segundo Wystan Hugh Auden, tal como se constrói um artefacto de uso social, uma cadeira, uma mesa, ou uma bicicleta. Tal como o marceneiro precisa de dominar as suas ferramentas, o martelo, o prego, a plaina, o verniz, etc., o escritor também necessita de ter o domínio da ferramenta de trabalho de produção da obra literária: A LÍNGUA.
E para poder escrever com ciência literária, a pessoa tem de ter COMPETÊNCIA LINGUÍSTICA. A competência linguística adquire-se na Escola. Existe uma intersecção, uma interdependência estrutural entre o Sistema Literário e o Sistema de Ensino. Tanto é assim que só quando o colonialismo abriu a escola aos autóctones angolanos, puderam surgir nomes como Joaquim Dias Cordeiro da Matta, António de Assis Júnior e outros escritores nossos precursores. Se a escola não fornece ao cidadão esta competência, ou domínio da norma linguística – que permite depois ao escritor fazer as transgressões literárias como fez um Luandino Vieira, por exemplo, – então o cidadão deve partir para o método auto-didáctico: ser o seu próprio instrutor. Assim procederam o poeta moçambicano José Craveirinha (Prémio Camões) e o Prémio Nobel português, José Saramago.
2. O nível INTELECTUAL é representado pela CULTURA LITERÁRIA. Sendo a cultura literária essencial e imprescindível, ela, porém, não pode ser dissociada de outra componente do SER ESCRITOR que é a CULTURA GERAL, ou melhor dito, a cultura literária faz parte da cultura geral.
Uma cultura literária adquire-se pelo verdadeiro diálogo com os escritores consagrados, que se efectua pela leitura das obras destes escritores. Portanto, ao contrário do que apregoam muitos cidadãos do meu país,
NUNCA OS ESCRITORES MAIS VELHOS SE NEGARAM A DIALOGAR COM OS JOVENS.
Muitos jovens é que não vão ter com os escritores mais velhos, uns por desconhecerem este processo do verdadeiro diálogo, que também devia ser transmitido na escola – e não o é, porque os professores não receberam instrução literária – outros por mera preguiça de ler. Como pode um jovem dialogar com Agostinho Neto que já não faz parte do mundo dos vivos? Ou com Wahnenga Xitu? Não é pela leitura da Sagrada Esperança ou do Mestre Tamoda?
Portanto, a nível intelectual, o jovem deve beber desse manancial da Literatura Angolana e conhecer os
“O homem lúcido não pode permanecer quieto e resignado enquanto o seu país deixa que a literatura decaia e que os bons escritores sejam desprezados.” (Ezra Pound)
escritores desde José da Silva Maia Ferreira até à actualidade, pelo menos uma obra de cada um deles. Depois, deve procurar munir-se da palavra que se encerra no Acervo Literário da Humanidade, a começar pela África, ainda que alguns autores, dadas as dificuldades com as traduções que apenas nos vêm de Lisboa ou de São Paulo. Tem necessariamente de saber quem foi Homero, o grande vate grego, conhecer os poemas de Salomão, que estão na Bíblia, ler um pouco da palavra literária do Brasil, de Portugal, dos PALOP, e de outras latitudes deste nosso mundo.
A par disso, quem quiser ser escritor tem de ter o domínio da História de Angola e da História de África e uma panorâmica geral da História da Humanidade e da Politica em que se cruzam as cidades do planeta, e estudar os Direitos do Homem. Mas, não pode ignorar estudos de Geogra ia, Filoso ia, e as vivências do seu povo, a tradição e a cultura angolana.
3. No nível METAFÍSICO ou transcendental, um escritor é um ser extremamente sensível que reparte no seu coração as DORES DA HUMANIDADE. Portanto, deve ser um cidadão dotado de uma forte personalidade na defesa dos cidadãos sem voz de todo o Mundo. Por isso, é que, normalmente, os grandes poetas são inconciliáveis com a alta política. Quando nesta entram, deixam de escrever poesia.
Ora, esta componente do ser leva-o à auto-de inição do OBJECTIVO ou FIM que persegue o homem ou mulher de letras ainda em potência: o que é que se pretende com a entrada no mundo das Letras, com a obra que se quer ou vai produzir?
O principal objectivo de um aprendiz de escritor é a superação dos autores já consagrados. Quem não dialoga com os autores clássicos, os consagrados, os nossos precursores, não toma conhecimento das obras destes autores e, por isso, não tem consciência desse desiderato a alcançar.
O grande ensaísta americano Ezra Pound é de opinião que os artistas são as antenas da Raça Humana. Diz ele que “A literatura não existe num vácuo. Os escritores, como tais, têm uma função social definida, exactamente proporcional à sua competência COMO ESCRITORES. Essa é a sua principal utilidade.”
Ora, quem pode ser antena, se não for dotado de uma POSTURA ÉTICOMORAL irrepreensível e de um grande Humanismo? Um cidadão que não sente a dor do outro ser humano, nunca pode ser um verdadeiro escritor.
II - APARECER COMO ESCRITOR
Tal como uma mulher só poder dar à luz um bebé saudável, após um processo de gestão de nove meses, alimentando bem o feto que traz no útero, também o escritor só aparece quando não existe tensão entre o SER e o APARECER. E só aparece, só leva o livro para ser publicado quando tem a CONSCIÊNCIA de que é um cidadão dotado daquelas propriedades inerentes ao SER, que resultam de um grande investimento na ferramenta de trabalho (a língua); na alma intelectual (a cultura geral e a cultura literária); e no espírito de porta-voz dos sem voz.
Munido destes pressupostos da criação literária, o jovem autor tornase um intelectual capaz de conhecer o peso e a medida da Literatura, e se torna o crítico da sua própria obra, através de uma análise comparativa das lâminas literárias. Mas só chega este ponto quando tiver de inido correctamente o OBJECTIVO, o FIM do seu trabalho como escritor. É a de inição do OBJECTIVO que lhe vai permitir resolver o dilema do aprendiz de escritor.
Ele próprio se sente que É UM ESCRITOR e pode então publicar a sua obra. Neste ponto, ele resolveu o dilema do aprendiz de escritor.
Se não estiver consciente do estado do SER ESCRITOR, ele está a viver um DILEMA, um equívoco, e aparece, mas não entra no círculo mais central da Literatura. Ele situar-se-á, antes, no círculo mais afastado do não-literário.
III – CONCLUSÃO
O dilema do aprendiz de escritor reside no problema do acesso ao livro e do conhecimento profundo da Literatura. Como diz Luandino Vieira, “A Literatura se alimenta de Literatura. Ninguém pode chegar a escritor se não foi um grande leitor.”
Quando participei na VI conferência da CPLP na Praia, em Fevereiro deste ano, abordei a questão da saturação do mercado livreiro e da necessidade de o jovem aprendiz de escritor trabalhar arduamente para superar, um dia, os Mestres que o antecederam. Reiterei na Praia que o principal objectivo de um aprendiz da pena é a superação dos autores já consagrados. Se fui mal compreendido pelos jovens cabo- verdianos, o próprio futuro há- de me dar razão. Tenho a plena convicção de que, se não tiver a preocupação da busca do rigor obstinado, o aprendiz de escritor estará a escrever por pura masturbação escritural.
A minha pretensão é legítima, actual e realista. Eu quero que os jovens sejam melhores que eu, melhores que Agostinho Neto, que Mário António, que Lopito Feijóo, que Fernando Pessoa, melhores que José Saramago, ou Ngugi Wa Thiongo. Todas as minhas conversas literárias, nos fóruns literários onde participo, giram em torno desta preocupação, em face do rumo descendente que a Cultura Literária está a tomar em Angola e um bocado por todos os países membros da CPLP.
Pois já dizia Ezra Pound que “o homem lúcido não pode permanecer quieto e resignado enquanto o seu país deixa que a literatura decaia e que os bons escritores sejam desprezados.”