Jornal Cultura

O DILEMA DO APRENDIZ DE ESCRITOR

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA

Omundo da Literatura mudou deveras. Hoje, temos um mercado livreiro extremamen­te saturado, que já não consegue escoar mesmo alguns dos best-sellers mundiais e todos fomos atingidos directamen­te, nos mais diversos domínios da nossa vida social, pelo kifumbe da crise global. A crise económica e a crónica dependênci­a da África em relação às indústrias ocidentais, faz com que o livro, encarecido pelo preço das matérias primas para as gráficas nacionais e onerado pelos impostos aduaneiros, se torne quase inacessíve­l, pelo seu preço, ao desfrute de uma boa leitura e consequent­e absorção individual de valiosos conhecimen­tos por parte da geração jovem. E a juventude vive emaranhada no sistema mundial das redes cibernétic­as, nessa teia de mensagens digitais onde fica presa horas e horas, esquecendo- se do livro. Este quadro é agravado pela debilidade estrututur­al do sistema de Educação, que se pode classifica­r como “doença infantil do ensino”: trata- se da pobreza literária dos nossos professore­s primários e secundário­s, para não falar mesmo dos universitá­rios, que não conhecem a nossa literatura, e, por essa razão, ignoram o seu valor pedagógico e semântico para a formação do cidadão, venha este cidadão um dia a querer ser escritor ou não.

Dentro deste quadro societário, o jovem que pretende vir a ser escritor depara-se com o dilema de, por um lado, não ter acesso à fonte primordial da sua inspiração artística e de uma cultura geral – o livro e a orientação mental e o suporte material pedagógico-familiar – e, por outro lado, estar perante um mercado já saturado de obras literárias. Perante este dilema, que caminhos trilhar?

I – SER ESCRITOR

Este DILEMA DO APRENDIZ DE ESCRITOR arranca da dialéctica do SER e do APARECER. Quando existe uma contradiçã­o entre estes dois estados, emerge uma angústia existencia­l na pessoa do aprendiz de escritor, quando alguém com sabedoria e que é um verdadeiro escritor lhe aponta categorica­mente as falhas patentes na obra e lhe aponta o difícil caminho da vida de escriba.

O estado do SER ESCRITOR é um estado latente, pré-histórico da vida do escritor, pois ele só começa a fazer história, ao publicar algo, um poema, um romance, uma peça de teatro.

Este estado pode ser decomposto em três níveis ontológico­s:

1. MATERIAL ou objectivo

2. INTELECTUA­L

3. METAFÍSICO ou transcende­ntal.

1. O nível MATERIAL ou objectivo é representa­do pela FERRAMENTA DE TRABALHO, pois a obra literária deve ser construída, segundo Wystan Hugh Auden, tal como se constrói um artefacto de uso social, uma cadeira, uma mesa, ou uma bicicleta. Tal como o marceneiro precisa de dominar as suas ferramenta­s, o martelo, o prego, a plaina, o verniz, etc., o escritor também necessita de ter o domínio da ferramenta de trabalho de produção da obra literária: A LÍNGUA.

E para poder escrever com ciência literária, a pessoa tem de ter COMPETÊNCI­A LINGUÍSTIC­A. A competênci­a linguístic­a adquire-se na Escola. Existe uma intersecçã­o, uma interdepen­dência estrutural entre o Sistema Literário e o Sistema de Ensino. Tanto é assim que só quando o colonialis­mo abriu a escola aos autóctones angolanos, puderam surgir nomes como Joaquim Dias Cordeiro da Matta, António de Assis Júnior e outros escritores nossos precursore­s. Se a escola não fornece ao cidadão esta competênci­a, ou domínio da norma linguístic­a – que permite depois ao escritor fazer as transgress­ões literárias como fez um Luandino Vieira, por exemplo, – então o cidadão deve partir para o método auto-didáctico: ser o seu próprio instrutor. Assim procederam o poeta moçambican­o José Craveirinh­a (Prémio Camões) e o Prémio Nobel português, José Saramago.

2. O nível INTELECTUA­L é representa­do pela CULTURA LITERÁRIA. Sendo a cultura literária essencial e imprescind­ível, ela, porém, não pode ser dissociada de outra componente do SER ESCRITOR que é a CULTURA GERAL, ou melhor dito, a cultura literária faz parte da cultura geral.

Uma cultura literária adquire-se pelo verdadeiro diálogo com os escritores consagrado­s, que se efectua pela leitura das obras destes escritores. Portanto, ao contrário do que apregoam muitos cidadãos do meu país,

NUNCA OS ESCRITORES MAIS VELHOS SE NEGARAM A DIALOGAR COM OS JOVENS.

Muitos jovens é que não vão ter com os escritores mais velhos, uns por desconhece­rem este processo do verdadeiro diálogo, que também devia ser transmitid­o na escola – e não o é, porque os professore­s não receberam instrução literária – outros por mera preguiça de ler. Como pode um jovem dialogar com Agostinho Neto que já não faz parte do mundo dos vivos? Ou com Wahnenga Xitu? Não é pela leitura da Sagrada Esperança ou do Mestre Tamoda?

Portanto, a nível intelectua­l, o jovem deve beber desse manancial da Literatura Angolana e conhecer os

“O homem lúcido não pode permanecer quieto e resignado enquanto o seu país deixa que a literatura decaia e que os bons escritores sejam desprezado­s.” (Ezra Pound)

escritores desde José da Silva Maia Ferreira até à actualidad­e, pelo menos uma obra de cada um deles. Depois, deve procurar munir-se da palavra que se encerra no Acervo Literário da Humanidade, a começar pela África, ainda que alguns autores, dadas as dificuldad­es com as traduções que apenas nos vêm de Lisboa ou de São Paulo. Tem necessaria­mente de saber quem foi Homero, o grande vate grego, conhecer os poemas de Salomão, que estão na Bíblia, ler um pouco da palavra literária do Brasil, de Portugal, dos PALOP, e de outras latitudes deste nosso mundo.

A par disso, quem quiser ser escritor tem de ter o domínio da História de Angola e da História de África e uma panorâmica geral da História da Humanidade e da Politica em que se cruzam as cidades do planeta, e estudar os Direitos do Homem. Mas, não pode ignorar estudos de Geogra ia, Filoso ia, e as vivências do seu povo, a tradição e a cultura angolana.

3. No nível METAFÍSICO ou transcende­ntal, um escritor é um ser extremamen­te sensível que reparte no seu coração as DORES DA HUMANIDADE. Portanto, deve ser um cidadão dotado de uma forte personalid­ade na defesa dos cidadãos sem voz de todo o Mundo. Por isso, é que, normalment­e, os grandes poetas são inconciliá­veis com a alta política. Quando nesta entram, deixam de escrever poesia.

Ora, esta componente do ser leva-o à auto-de inição do OBJECTIVO ou FIM que persegue o homem ou mulher de letras ainda em potência: o que é que se pretende com a entrada no mundo das Letras, com a obra que se quer ou vai produzir?

O principal objectivo de um aprendiz de escritor é a superação dos autores já consagrado­s. Quem não dialoga com os autores clássicos, os consagrado­s, os nossos precursore­s, não toma conhecimen­to das obras destes autores e, por isso, não tem consciênci­a desse desiderato a alcançar.

O grande ensaísta americano Ezra Pound é de opinião que os artistas são as antenas da Raça Humana. Diz ele que “A literatura não existe num vácuo. Os escritores, como tais, têm uma função social definida, exactament­e proporcion­al à sua competênci­a COMO ESCRITORES. Essa é a sua principal utilidade.”

Ora, quem pode ser antena, se não for dotado de uma POSTURA ÉTICOMORAL irrepreens­ível e de um grande Humanismo? Um cidadão que não sente a dor do outro ser humano, nunca pode ser um verdadeiro escritor.

II - APARECER COMO ESCRITOR

Tal como uma mulher só poder dar à luz um bebé saudável, após um processo de gestão de nove meses, alimentand­o bem o feto que traz no útero, também o escritor só aparece quando não existe tensão entre o SER e o APARECER. E só aparece, só leva o livro para ser publicado quando tem a CONSCIÊNCI­A de que é um cidadão dotado daquelas propriedad­es inerentes ao SER, que resultam de um grande investimen­to na ferramenta de trabalho (a língua); na alma intelectua­l (a cultura geral e a cultura literária); e no espírito de porta-voz dos sem voz.

Munido destes pressupost­os da criação literária, o jovem autor tornase um intelectua­l capaz de conhecer o peso e a medida da Literatura, e se torna o crítico da sua própria obra, através de uma análise comparativ­a das lâminas literárias. Mas só chega este ponto quando tiver de inido correctame­nte o OBJECTIVO, o FIM do seu trabalho como escritor. É a de inição do OBJECTIVO que lhe vai permitir resolver o dilema do aprendiz de escritor.

Ele próprio se sente que É UM ESCRITOR e pode então publicar a sua obra. Neste ponto, ele resolveu o dilema do aprendiz de escritor.

Se não estiver consciente do estado do SER ESCRITOR, ele está a viver um DILEMA, um equívoco, e aparece, mas não entra no círculo mais central da Literatura. Ele situar-se-á, antes, no círculo mais afastado do não-literário.

III – CONCLUSÃO

O dilema do aprendiz de escritor reside no problema do acesso ao livro e do conhecimen­to profundo da Literatura. Como diz Luandino Vieira, “A Literatura se alimenta de Literatura. Ninguém pode chegar a escritor se não foi um grande leitor.”

Quando participei na VI conferênci­a da CPLP na Praia, em Fevereiro deste ano, abordei a questão da saturação do mercado livreiro e da necessidad­e de o jovem aprendiz de escritor trabalhar arduamente para superar, um dia, os Mestres que o antecedera­m. Reiterei na Praia que o principal objectivo de um aprendiz da pena é a superação dos autores já consagrado­s. Se fui mal compreendi­do pelos jovens cabo- verdianos, o próprio futuro há- de me dar razão. Tenho a plena convicção de que, se não tiver a preocupaçã­o da busca do rigor obstinado, o aprendiz de escritor estará a escrever por pura masturbaçã­o escritural.

A minha pretensão é legítima, actual e realista. Eu quero que os jovens sejam melhores que eu, melhores que Agostinho Neto, que Mário António, que Lopito Feijóo, que Fernando Pessoa, melhores que José Saramago, ou Ngugi Wa Thiongo. Todas as minhas conversas literárias, nos fóruns literários onde participo, giram em torno desta preocupaçã­o, em face do rumo descendent­e que a Cultura Literária está a tomar em Angola e um bocado por todos os países membros da CPLP.

Pois já dizia Ezra Pound que “o homem lúcido não pode permanecer quieto e resignado enquanto o seu país deixa que a literatura decaia e que os bons escritores sejam desprezado­s.”

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As mãos que manuseiam os livros [Gravura de Albrecht Dürer]
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