O ROMANCISTA ENQUANTO JOVEM
Escrevo isto para mim. Quem o ler, fá-lo-á por acaso. E tal se justi ica porque, nesta dita sociedade da informação em que vivemos, onde muitos cultivam conhecimentos, se torna muitas vezes importante condensar as informações que vamos adquirindo. Neste quesito, e como acompanho muitos jovens escritores angolanos, a mim sempre interessou o atrevimento destes pelo romance, género literário bastante consagrado.
E, assim repito, escrevo isto para mim porque me apetece resumir o que tenho lido sobre este atrevimento. Tudo para que não me esqueça. Quem o ler, fá-lo-á por acaso.
Género narrativo iccional em prosa, o romance é mais longo que a novela e o conto, e esta dimensão obriga a que o tempo e o espaço sejam categorias mais elaboradas, em que as personagens são apresentadas com maior densidade psicológica.
Com efeito, é tido assim como um dos géneros literários mais complexos, não admira que muitos jovens escritores, angolanos e não só, comecem pela poesia ou pelo conto, uma narrativa prosaica mais curta e menos densa.
Foi perguntado a José Saramago que conselho daria a um aspirante a escritor. “E eu respondi como sempre: não ter pressa (como se eu não a tivesse tido nunca) e não perder tempo (como se eu não o tivesse perdido jamais). E ler, ler, ler, ler”, disse o escritor, que mais tarde viria partilhar esta experiência vivida a 9 de Julho de 1993 num dos seus cinco diários que se lêem agradavelmente.
Ao referir-se à pressa em publicar, o consagrado escritor português, que honrou a nossa língua com o único Nobel, lembra-nos a necessidade de se trazer ao público obras com valor, que só a maturidade assim o justi icasse. E tal necessidade é ainda maior quando se trata do romance.
Mas porquê não deve ter pressa? Numa recente entrevista publicada na revista portuguesa Visão, a jornalista e escritora Inês Pedrosa, lembrou, referindo-se à Augustina Bessa-Luís, que “antes dos 50 ninguém tem história. Acho que não se encontram génios na icção antes dos 35 anos. Ao contrário da poesia, que estatisticamente é uma arte de juventude, a icção é da maturidade. É mais ou menos como os 100 metros são para os atletas novos e a maratona para os mais velhos”.
Sendo o romance um dos géneros mais complexos, que exige maturidade, como nos lembra Inês Pedrosa, entendemos agora o conselho de Saramago em não termos pressa em publicar. Mas, entenderemos mais ainda se relermos alguns trechos da entrevista do escritor António Lobo Antunes à revista Visão, na edição de 16 de Dezembro deste 2015. “É verdade, não se pode escrever um bom romance antes de ter vivido. Poesia pode ser. Olhe, eu com (24) essa idade só escrevia merda. Nunca tive pressa em publicar. Essa qualidade eu tenho”. António Lobo Antunes, que acaba de lançar a Natureza dos Deuses, é um dos grandes escritores da língua portuguesa, não admira que seja um habitual candidato ao prémio Nobel. E lembrando um escritor francês, Gustave Flaubert, autor do maravilhoso Madame Bovary, Lobo Antunes diz: “É preciso vasculhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista, visto que o romance é a história privada das nações”.
Visto assim, nota-se a responsabilidade que se exige quando alguém se põe a escrever um romance. Maturidade e idade não são palavras associadas, são uma só. E falando em vasculhar a vida social para se ser um verdadeiro romancista, lembro-me agora do maravilhoso e inesquecível escritor francês Marcel Proust que, nos seus romances À la Recherche du Temps Perdu, aproveitou muita da sua experiência do meio familiar e social em que viveu. Proust não relatava a “vidinha”, ou que se encontrava mais à mão, mas introduzia episódios da sua vida, mais ou menos transpostos e bastante reelaborados pela memória. A isto se chama maturidade que se exige na icção, sobretudo no romance.
E esta tal maturidade não se resume na idade, é preciso vida, pois a “vidinha” não interessa: “A maior desgraça que pode acontecer a um escritor é começar pela literatura, em vez de começar pela vida. Cora-se de vergonha, depois, diante das ingenuidades impressas, que são cueiros sujos e pretendem ser livros. Só a experiência, a dor e o trabalho trazem a dignidade que uma obra literária exige. Mesmo que não se tenha génio, pode-se, então, ter compostura. E seja qual for a duração do que se escreve, uma coisa ao menos os vindouros poderão respeitar: a nobreza do que vão ler”, escreveu no seu diário, no dia 18 de Maio de 1946, o não menos importante escritor Miguel Torga.
Torga, como lhe chamo quase de forma íntima, tem sido uma escola. Grande parte da sua poesia foi publicada nos seus saborosos diários, que graça à minha amiga Isabel Coelho, mos chegaram à mão. Para mim, se há escritor que merecia o Nobel antes do Saramago, era sem sombras de dúvida o autor dos belíssimos Contos da Montanha. Torga é indescritível, é daqueles escritores que se respeita e ponto inal.
Mas ainda não é ponto inal no que se refere à maturidade para a icção. E a esta discussão é importante chamar um outro mestre do romance, se calhar aquele que terá rede inido os parâmetros da literatura moderna: James Joyce. Enganam-se aqueles que acham que traremos aqui o clássico Ulisses; pois antes deste belíssimo romance, Joyce escreveu “Retrato do Artista Quando Jovem”, uma obra que narra a evolução de Stephen Dedalus, desde a infância, passando pela juventude até o início da vida adulta. O jovem se rebela contra a formação católica, questionado os valores da família, igreja, historia e pátria. Longe de ser uma história comum de passagem para a maioridade, Retrato do Artista Quando Jovem traz em cada estágio da narrativa a evolução da idade e maturidade intelectual de Stephen. Nesta obra de inventividade e riqueza imaginativa surpreendentes, revelam-se já a necessidade de o romancista questionar a vida, vivendo-a, pois como escreveu Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”. E tal espectáculo deve ser vivido e questionado como fez Stephen Dedalus, pois assim, enquanto a idade avança, a maturidade se acerta. Acerta-se para que não se fale mais em pressa quando se for publicar. E noto isto em Onofre dos Santos. O autor de “O Astrónomo de Herodes”, que não mais parou desde que começou a publicar contos no jornal O País, quando ainda era semanário, sente-se con iante na icção e, por mais que me lembre a prosa bastante “imaginativa” de Henriques Abranches, o respeitado e in luente jurista angolano coloca muito da sua experiência na narrativa. E aqui já não se levanta a suspeição da pressa, pois se a idade não for su iciente para justi icar a necessidade de escrever, ao menos a experiência, como lembra Torga, dá-lhe a dignidade que uma obra literária exige.