Jornal Cultura

MOISÉS KAFALA

REQUIEM PARA UM CANTADOR DE HISTÓRIA(S)

- ADRIANO DE MELO JOSÉ LUÍS MENDONÇA e

Angola perdeu uma das vozes cujo trabalho elevou a trova nacional. Um cantador de História(s) que traduziu na canção parte da História de Angola e muitas histórias que atravessar­am a sua marcha neste mundo. Moisés Kafala.

Um cantador de História(s). Assim se pode de inir aquele a quem hoje rendemos homenagem. Moisés Kafala traduziu na canção parte da História de Angola e muitas histórias que atravessar­am a sua marcha neste mundo. Se, como disse Pessoa, “a trova é o vaso de lores que o povo põe à janela da sua alma”, então o músico conseguiu, ao longo da sua carreira, cantar o espírito dos angolanos, em temas cujas letras re lectem a identidade, a riqueza das tradições e africanida­de.

Escrever versos para a alma e iluminá-los com a guitarra é um desa io para qualquer criador. É um género que, como disse Fernando Pessoa espelha o melhor da música. Este mês, o país perdeu uma das vozes, cujo trabalho, em anos, elevou a trova nacional.

Num dueto, os Irmãos Kafala (ou Kafala Brothers) levaram à World Music o melhor da trova nacional. Conquistar­am um espaço e conseguira­m mantêlo ao longo dos anos, com fãs de várias gerações. Um feito que precisa ser recordado e lembrado com frequência, por representa­r o legado de um género musical muito próprio, exaltado durante anos por poetas como Jorge Amado. “É através da Trova que o povo toma contacto com a poesia e sente a sua força. Por isso mesmo, a Trova e o Trovador são imortais”. É certo que não viveremos para sempre, mas o “peso” do legado deixado às gerações vindouras, através do trabalho, é uma forma de perpetuar quem fomos e buscar um lugar no “hall” da imortalida­de. Moisés Kafala merece um lugar no panteão dos criadores angolanos. Embora os Irmãos Kafala não tenham sido como os trovadores ou os compositor­es itinerante­s do início do século XX, que percorriam as cidades, cantando baladas tradiciona­is, as suas músicas icaram conhecidas a partir dos anos 80 e 90, em especial pela musicaliza­ção de poemas de autores consagrado­s, co- mo “Renúncia Impossível”, de Agostinho Neto. Em músicas que evocam sensações, impressões e emoções emanadas de sons, harmonias e ritmos, vocábulos metafórico­s, em kimbundo, umbundu e português, os “Kafala Brothers” conseguira­m refazer a beleza da poesia, por anos, e deixar um vasto trabalho, no campo da trova, a ser melhor inovado pelas próximas gerações de trovadores.

A trova, enquanto poema autónomo de quatro versos com rima e sentido completo, está intimament­e ligado à

poesia desde a Idade Média, onde era sinónimo de poema e letra de música. Hoje, a jovem geração de autores angolanos do género têm procurado se associar aos declamador­es e poetas para criar uma nova simbiose e revolução. É uma iniciativa louvável, mas que ainda precisa de apoios e incentivos para vincar e ajudar a manter no activo a “harmonia da guitarra e da voz”.

Para os Kafala Brothers’, esta harmonia esteve assente durante anos na liturgia religiosa, mas, com o tempo, muitos dos temas passaram a ter um cunho mais humanista e social. Como destacou o governador do Bengo, João Miranda, no elogio fúnebre de Moisés Kafala, as suas músicas também icaram marcadas por evocar a dor, o sofrimento, a con litualidad­e étnica e amorosa, “a eterna esperança de um mundo melhor, onde a harmonia social, política, tribal e regional era possível.”

Moisés Kafala, que foi a enterrar dia 5, no cemitério do Ben ica, em Luanda, morreu, no dia 1, na Namíbia, vítima de doença, foi, para o Ministério da Cultura, um “destacado homem de cultura, que pautou a sua vida artística a defender e valorizar a identidade cultural angolana, com a criação de canções que marcaram o quotidiano.”

Além de músico e também director da Cultura no Bengo, Josué de Campos (de nome próprio) teve uma longa passagem pelo sector da Cultura onde foi delegado da União Nacional dos Artistas e Compositor­es em Benguela e membro da comissão de avaliação de projectos culturais e artísticos do Ministério da Cultura.

Ao longo da sua carreira artística, os Irmãos Kafala criaram três obras discográ icas, que se tornaram referência­s incontorná­veis na evolução da trova angolana: “Ngola”, gravado e apresentad­o na Inglaterra, em 1988, “Salipo”, produzido nos EUA, em 1995, e “Bálsamo”, feito em França, em 2000.

No passado dia 10, a Fundação António Agostinho Neto atribuiu-lhe, a título póstumo, o título honorí ico da Ordem Sagrada Esperança, pelo seu contributo à exaltação da música nacional.

“Poesia da alma”

Dar vida à poesia, com uma guitarra e voz é um desa io para qualquer um que queira ser músico. Em Angola, mesmo entre os artistas de renome, são poucos os que conseguem realizar este desa io. Portanto, a trova representa o primeiro passo na “construção” de futuros bons músicos.

Porém, apesar de existirem projectos como o Festival Nacional de Trova e outros que ajudem a promover este género, assim como a descobrir jovens talentos, é preciso ainda um trabalho mais acentuado em torno deste género, actualment­e pouco referencia­do na música angolana.

Nomes sonantes da trova, como os Kafala Brothers, Duo Canhoto, Ruy Mingas, Waldemar Bastos, Gabriel Tchiema, Totó, Ângela Ferrão e Filipe Mukenga conseguira­m, durante alguns anos, trazer nova vitalidade ao género.

Porém, as inovações dos arranjos tecnológic­os ou a “ascensão” do mercado das bandas, têm retirado parte do prestígio destes criadores, que izeram/fazem da voz e da guitarra a manifestaç­ão real da sua arte.

Nesta era da supremacia tecnológic­a, do comportame­nto globalizad­o e do vanguardis­mo a qualquer preço, como defendeu o escritor brasileiro Sérgio Bernardo, a trova resiste, mas continua a encontrar inúmeras di iculdades.

Apesar de, como defende o próprio Sérgio Bernardo, “os autores já não estarem presos a temas ixos como nas cantigas de exaltação a campanhas militares, feitos reais ou mesmo um relato da vida quotidiana”, a trova angolana ainda continua com um número reduzido de praticante­s.

“Status” social

Melhorar a condição do artista angolano, em particular no campo social, é uma luta que precisa ser travada por todos os integrante­s da sociedade, em especial aqueles que vêm o brilho das artes como algo excepciona­l.

A morte de Moisés Kafala, por doença, é um problema que não a lige somente uma classe, mas sim todos, e ape- sar dos esforços de diversas instituiçõ­es ligadas ao sector e do próprio Ministério da Cultura, o artista ainda continua a ser visto como um pedinte, uma imagem deplorável a ser invertida.

Embora as culpas possam ser atribuídas aos próprios músicos, que ainda têm muito para aprender sobre os seus direitos e como os fazer valer, a outra parte da responsabi­lidade deve ser incutida aos agentes e promotores destes que nada fazem em sua defesa.

A questão da saúde, assim como a habitação, devem constar entre as prioridade­s das instituiçõ­es que velam pelos artistas angolanos, porque são fundamenta­is e têm sido as principais di iculdades destes nas últimas décadas, em especial agora com a crise económica mundial.

As suas músicas também ficaram marcadas por evocarem a eterna esperança de um mundo melhor, onde a harmonia social, política, tribal e regional era possível

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Moisés Kafala
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