ECONOMIA DA COMUNICAÇÃO
PRODUÇÃO DE SENTIDO, TROCAS, VALOR ACRESCENTADO E VERDADE
A comunicação é uma prática social de troca de informações que satisfaz a necessidade de contactos individuais, profissionais, nacionais, regionais, científicos, militares, sociais, noticiosos.
Toda a comunicação é sólida e não se desfaz no ar quando se transforma numa verdade útil e sustentada pela ética da modificação social para uma vida melhor. A produção de sinais e meios (palavras, imagens, códigos, emblemas, sons, fala interpessoal, carta, mail, telefone, livro, televisão, rádio) é um modo de materializar, isto é, de transformar em produtos (que se trocam, que exercem in luência política, cultural ou religiosa) os desejos individuais e grupais de interagir, modi- icando as acções dos outros. Há uma economia capitalista da produção de mensagens que se inscreve no sistema-mundo de produção e distribuição de produtos essenciais, industriais, comerciais e imateriais. No universo capitalista, tudo é mercadoria, todo e qualquer objecto está sujeito às leis da produção e troca. Mesmo o indivíduo que vive isolado, na grande cidade, sem amigos, e põe no YouTube um pequeno ilme de 15 segundos, aspira a que seja visto pelo menos por uma pessoa. Também aquele que escreve algo aparentemente só para si próprio, se não faz desaparecer os seus produtos, eles podem funcionar informativamente para os familiares, amigos e outras comunidades, desde que divulgados e recebidos.
O sentido produz-se na recepção. Qualquer mensagem ou mero signo isolado faz sentido desde que recebido por alguém. E mesmo quando não recebido por ninguém, já fez sentido para quem o produziu. O náufrago perdido numa ilha deserta, que lança a sua mensagem dentro da garrafa que ninguém jamais encontrará, aplacou por instantes a sua angústia e a sua consciência ao fazer a tentativa de se salvar. Pelo menos, aliviou a tensão, ocupou o seu tempo e entreteve a mente, sublimando a solidão. De certo modo, salvou-se.
A produção de bens materiais estabelece os modos de organização societária, que, por sua vez, estrutura as formas de comunicação entre os grupos e os indivíduos. Assim, as trocas de mercadorias, no actual estado de desenvolvimento do capitalismo, implicam uma velocidade e um luxo de comunicação que se costumam de inir como ultra-rápidos, abundantes, em rede e globalizados. O sistema baseiase em alguns desígnios fulcrais que estruturam escatologicamente a concepção actual de vida nas sociedades tecnológicas da informação e dos serviços: a) produção e invenção contínua de novos produtos; b) transformação de toda a criação humana e da própria natureza em mercadoria; c) transformação de todos os indivíduos do planeta em consumidores de tudo; d) prolongamento da vida de todos os seres humanos, alargando sempre mais a escala de consumo.
A grande maioria da população mundial vive sem poder usufruir da esmagadora maioria dos bens materiais e imateriais da humanidade. De facto, a maior parte da população do mundo dito desenvolvido não necessita da maior parte dessas mercadorias apresentadas como bens destinados a melhorar a vida ou a adicionar felicidade ao ser humano. A esmagadora maioria das redes de informação – desde os instrumentos básicos de alfabetização à iloso ia analítica ou à ísica teórica, passando pela literatura de vanguarda e a estatística aplicada ao luxo de cereais ou ao conhecimento dos sismos – é usada, em última instância, para dominar e submeter as sociedades, torná- las temerosas e obedientes, ocupando o tempo com questões arti iciais e secundárias, na angústia da pobreza, do desemprego, da doença e da morte. Tal não signi ica que não haja progresso, mas ele pode constituir tão- somente um progresso para a ruína ísica, mental e moral da maioria.
A comunicação é uma componente do sistema capitalista que engloba tanto o esclarecimento, o saber e a consciência, como a alienação, o obscurantismo e a inconsciência. A comunicação é uma rede global, regional e particular (em) que (se) produz um luxo de informação parcelar, atomizada, concentrada e repetida, que provoca o ruído permanente, a atomização do saber e a distracção/diversão (no sentido militar) do sujeito receptor. Mesmo aquilo que é fornecido como primacial e fundador, não passa, continuadamente, de produção de icção, mitologia, mentira, in lação, deturpação, através da hiperbolização, misti icação ou parcialidade. A propaganda, o marketing, a estereotipização, o lugar-comum, a langue de bois, o bláblá, constituem os pilares da comunicação acessória, limitada e limitativa, quotidiana, cuja função é permitir o funcionamento considerado normal
das instituições, ou seja, desde as forças armadas, às famílias, ao governo, às escolas, ao abastecimento alimentar, etc., em suma, garantir as trocas sociais e de mercadorias que regulam a sociedade.
Os povos vítimas de guerras, calamidades ou perseguições têm sido obrigados, tantas vezes, a deslocar-se, a trocar de espaço e, como consequência, a adoptar novas culturas, línguas, costumes. A essas multidões envolvidas nesses processos de mudança não se lhes atribui o epíteto de cosmopolitas, mas o estatuto de icitário de refugiados ou deslocados. A um camponês do Quénia, por exemplo, que fale quatro ou cinco línguas ( suaíli, árabe, inglês, kikuyu, etc.), não se diz que é poliglota, nem se reconhece de imediato a sua diversidade cultural, o seu diversi icado saber, a sua poderosa capacidade de comunicação. O atributo cosmopolita (viajar, consumir, conhecer a diversidade, fazer turismo) é uma marca elitista para um grupo de alguns milhões de cidadãos sobretudo do mundo ocidental, mais ou menos ricos. Mas, em geral, mesmo o cidadão ocidental é aberto a outras culturas, não por uma apetência especial de cultura, de informação, mas por uma imposição sócio-estatal, por uma educação formal obrigatória. Porque a aversão aos outros e à variedade cultural não é tão residual como as atitudes e os pactos politicamente correctos querem fazer crer. Todos os dias, os luxos de informação con irmam os preconceitos.
A imposição do pensamento dominante, do consenso cívico e social, através do ensino, dos médias, da propaganda e do marketing, reduz a comunicação a um denso, imbrincado e irrelevante emaranhado de banalidades e conformação da sociedade ao real dado como adquirido que sublinham a beatitude do sistema capitalista nas suas variantes de economia liberal, plani icada ou selvagem. A comunicação reitera e reproduz o estado de subordinação das classes e grupos produtores de riqueza material, com o seu trabalho, aos detentores dos mecanismos de posse e controle do capital e dos bens materiais e imateriais.
Não se pode nunca perder de vista o facto de haver biliões de seres humanos e não apenas a nossa miserável existência de sujeitos. Pontualmente, a comunicação em rede possibilita uma manifestação política imprevisível, organizada por SMS à revelia dos processos clássicos. Mas esse e outros exemplos de comunicação ultramoderna (como o Twitter e o Facebook ou os blogues) não modi icam a natureza dominadora, esmagadora e depredatória da acumulação de capital e do consumo alucinado.
A comunicação é apenas um dos elementos do aperfeiçoamento técnico do sistema, que inclui a transmissão de ordens, a ordenação societária, a organização das hierarquias e prioridades da vida material e social (economia, energia, educação, saúde, ciência, etc.). A indústria do entrete- nimento, que inclui a maior parte da arte, da ciência, da cultura ou da saúde, vendidas como mercadoria de especialistas e não praticadas por todos, como deveria ser, funciona como ideologia de reforço do status quo. O valor acrescentado às artes, letras, ciências, ao culto do corpo ( veja- se os EUA e o Brasil), por um segmento da população que tem possibilidades de ócio e meios económicos para o fazer, não deixa de se inserir no império das trocas capitalistas, como sabemos muito melhor desde a Escola de Frankfurt. O valor acrescentado não é um valor de troca, nem tão pouco uma aura, porque o produto cultural não possui um valor calculado pela soma do custo dos materiais e da mão- de- obra usada para a feitura. No caso da obra de arte, ela é única e não pode ser (re)pro- duzida indefinidamente como um microchip. A reprodução da obra de arte (uma tela em milhares de gravuras) resulta já noutra coisa, por faltarem as pinceladas, as cores originais e até a visão que a incidência da luz na tinta pode promover.
Portanto, quando um leitor é deixado ao abandono solitário das suas leituras de best-sellers propagandeados (para referir uma situação extrema) ou quando compra prazerosamente no hipermercado livros de reproduções de pintura, o que compra realmente? Um simulacro de arte e literatura - uma não literatura e uma ilusão de arte -, parecendo- lhe que passa a ter informação e que participa desse universo artístico- cultural, quando, na verdade, se trata do decorativo mundo pequeno-burguês, pósmoderno, consumista, que cria a ilu- são do saber e do gosto dos verdadeiros experts burgueses e aristocratas. Cria-se a ilusão de que cada consumidor tem o direito de criar a sua própria verdade e que o consegue, isto é, as suas opções críticas e os seus usos quanto à vida política, social, económica e cultural. Como se cada um pudesse criar o seu próprio universo, na grande solidão da sociedade de consumo. Porém, embora o mercado da produção, distribuição e consumo de alimentos, artefactos ou bens imateriais seja gigantesco, cada indivíduo não é livre de conhecer e consumir uma qualquer peça de arte ou um artigo alimentar, por se encontrar sujeito e passivo face à rede de fornecimento que o engole. Ou seja, um funchalense não pode apreciar, ver, tocar, cheirar, potes de barro produzidos no interior da savana pelos bambaras, porque isso não se enquadra nas suas atribuições, estatuto, funções e desejos, do mesmo modo que não lhe será fácil ouvir ao vivo todas as semanas, se o desejar, os korás malianos. Outro exemplo: o desconhecimento da civilização africana é de tal ordem que uma jovem angolana mestiça, estudante universitária a viver em Coimbra pode ainda hoje chamar “dialectos” às línguas angolanas, reproduzindo, sem disso ter a noção, o velho estigma colonialista das línguas consideradas inferiores. Tanta informação ao seu dispor, que não lhe foi comunicada, não resultou na aquisição de mais densa e profunda verdade sobre as línguas do seu país. A nossa liberdade, a extensão do nosso saber e a nossa capacidade de comunicação continuam extremamente limitadas.
Existe mais informação e mais comunicação no planeta ao alcance dos indivíduos, do que na Idade Média europeia, mas o saber continua a ser precário, sem valor universal, sem verdade, para a imensa maioria da população, isolada em comunidades restritas, ghettos, solidões, grupos, bairros, desconhecendo as culturas e as histórias dos outros, que só lhes chegam muito fragmentariamente, encerrados nas suas verdades religiosas, costumbristas, económicas e linguísticas. A prova de que a informação é relativa, por exemplo, na construção da memória, e que ela não vale grande coisa se não estiver ligada a um profundo movimento societário de igualdade, fraternidade, liberdade e justiça, é que nos países onde o nazismo e o estalinismo izeram milhões de vítimas, surgiram os neo-nazis e os neo- estalinistas. Existe muitíssima informação, mas a tragédia humana da comunicação é que ela não pode ser comunicada na sua totalidade a todo o instante, a toda a gente. Se fosse possível, essa seria a verdadeira democracia, o verdadeiro paraíso, a verdadeira idade de ouro e poesia da humanidade.