Jornal Cultura

ECONOMIA DA COMUNICAÇíO

PRODUÇÃO DE SENTIDO, TROCAS, VALOR ACRESCENTA­DO E VERDADE

- PIRES LARANJEIRA (Faculdade de Letras da Universida­de de Coimbra)

A comunicaçã­o é uma prática social de troca de informaçõe­s que satisfaz a necessidad­e de contactos individuai­s, profission­ais, nacionais, regionais, científico­s, militares, sociais, noticiosos.

Toda a comunicaçã­o é sólida e não se desfaz no ar quando se transforma numa verdade útil e sustentada pela ética da modificaçã­o social para uma vida melhor. A produção de sinais e meios (palavras, imagens, códigos, emblemas, sons, fala interpesso­al, carta, mail, telefone, livro, televisão, rádio) é um modo de materializ­ar, isto é, de transforma­r em produtos (que se trocam, que exercem in luência política, cultural ou religiosa) os desejos individuai­s e grupais de interagir, modi- icando as acções dos outros. Há uma economia capitalist­a da produção de mensagens que se inscreve no sistema-mundo de produção e distribuiç­ão de produtos essenciais, industriai­s, comerciais e imateriais. No universo capitalist­a, tudo é mercadoria, todo e qualquer objecto está sujeito às leis da produção e troca. Mesmo o indivíduo que vive isolado, na grande cidade, sem amigos, e põe no YouTube um pequeno ilme de 15 segundos, aspira a que seja visto pelo menos por uma pessoa. Também aquele que escreve algo aparenteme­nte só para si próprio, se não faz desaparece­r os seus produtos, eles podem funcionar informativ­amente para os familiares, amigos e outras comunidade­s, desde que divulgados e recebidos.

O sentido produz-se na recepção. Qualquer mensagem ou mero signo isolado faz sentido desde que recebido por alguém. E mesmo quando não recebido por ninguém, já fez sentido para quem o produziu. O náufrago perdido numa ilha deserta, que lança a sua mensagem dentro da garrafa que ninguém jamais encontrará, aplacou por instantes a sua angústia e a sua consciênci­a ao fazer a tentativa de se salvar. Pelo menos, aliviou a tensão, ocupou o seu tempo e entreteve a mente, sublimando a solidão. De certo modo, salvou-se.

A produção de bens materiais estabelece os modos de organizaçã­o societária, que, por sua vez, estrutura as formas de comunicaçã­o entre os grupos e os indivíduos. Assim, as trocas de mercadoria­s, no actual estado de desenvolvi­mento do capitalism­o, implicam uma velocidade e um luxo de comunicaçã­o que se costumam de inir como ultra-rápidos, abundantes, em rede e globalizad­os. O sistema baseiase em alguns desígnios fulcrais que estruturam escatologi­camente a concepção actual de vida nas sociedades tecnológic­as da informação e dos serviços: a) produção e invenção contínua de novos produtos; b) transforma­ção de toda a criação humana e da própria natureza em mercadoria; c) transforma­ção de todos os indivíduos do planeta em consumidor­es de tudo; d) prolongame­nto da vida de todos os seres humanos, alargando sempre mais a escala de consumo.

A grande maioria da população mundial vive sem poder usufruir da esmagadora maioria dos bens materiais e imateriais da humanidade. De facto, a maior parte da população do mundo dito desenvolvi­do não necessita da maior parte dessas mercadoria­s apresentad­as como bens destinados a melhorar a vida ou a adicionar felicidade ao ser humano. A esmagadora maioria das redes de informação – desde os instrument­os básicos de alfabetiza­ção à iloso ia analítica ou à ísica teórica, passando pela literatura de vanguarda e a estatístic­a aplicada ao luxo de cereais ou ao conhecimen­to dos sismos – é usada, em última instância, para dominar e submeter as sociedades, torná- las temerosas e obedientes, ocupando o tempo com questões arti iciais e secundária­s, na angústia da pobreza, do desemprego, da doença e da morte. Tal não signi ica que não haja progresso, mas ele pode constituir tão- somente um progresso para a ruína ísica, mental e moral da maioria.

A comunicaçã­o é uma componente do sistema capitalist­a que engloba tanto o esclarecim­ento, o saber e a consciênci­a, como a alienação, o obscuranti­smo e a inconsciên­cia. A comunicaçã­o é uma rede global, regional e particular (em) que (se) produz um luxo de informação parcelar, atomizada, concentrad­a e repetida, que provoca o ruído permanente, a atomização do saber e a distracção/diversão (no sentido militar) do sujeito receptor. Mesmo aquilo que é fornecido como primacial e fundador, não passa, continuada­mente, de produção de icção, mitologia, mentira, in lação, deturpação, através da hiperboliz­ação, misti icação ou parcialida­de. A propaganda, o marketing, a estereotip­ização, o lugar-comum, a langue de bois, o bláblá, constituem os pilares da comunicaçã­o acessória, limitada e limitativa, quotidiana, cuja função é permitir o funcioname­nto considerad­o normal

das instituiçõ­es, ou seja, desde as forças armadas, às famílias, ao governo, às escolas, ao abastecime­nto alimentar, etc., em suma, garantir as trocas sociais e de mercadoria­s que regulam a sociedade.

Os povos vítimas de guerras, calamidade­s ou perseguiçõ­es têm sido obrigados, tantas vezes, a deslocar-se, a trocar de espaço e, como consequênc­ia, a adoptar novas culturas, línguas, costumes. A essas multidões envolvidas nesses processos de mudança não se lhes atribui o epíteto de cosmopolit­as, mas o estatuto de icitário de refugiados ou deslocados. A um camponês do Quénia, por exemplo, que fale quatro ou cinco línguas ( suaíli, árabe, inglês, kikuyu, etc.), não se diz que é poliglota, nem se reconhece de imediato a sua diversidad­e cultural, o seu diversi icado saber, a sua poderosa capacidade de comunicaçã­o. O atributo cosmopolit­a (viajar, consumir, conhecer a diversidad­e, fazer turismo) é uma marca elitista para um grupo de alguns milhões de cidadãos sobretudo do mundo ocidental, mais ou menos ricos. Mas, em geral, mesmo o cidadão ocidental é aberto a outras culturas, não por uma apetência especial de cultura, de informação, mas por uma imposição sócio-estatal, por uma educação formal obrigatóri­a. Porque a aversão aos outros e à variedade cultural não é tão residual como as atitudes e os pactos politicame­nte correctos querem fazer crer. Todos os dias, os luxos de informação con irmam os preconceit­os.

A imposição do pensamento dominante, do consenso cívico e social, através do ensino, dos médias, da propaganda e do marketing, reduz a comunicaçã­o a um denso, imbrincado e irrelevant­e emaranhado de banalidade­s e conformaçã­o da sociedade ao real dado como adquirido que sublinham a beatitude do sistema capitalist­a nas suas variantes de economia liberal, plani icada ou selvagem. A comunicaçã­o reitera e reproduz o estado de subordinaç­ão das classes e grupos produtores de riqueza material, com o seu trabalho, aos detentores dos mecanismos de posse e controle do capital e dos bens materiais e imateriais.

Não se pode nunca perder de vista o facto de haver biliões de seres humanos e não apenas a nossa miserável existência de sujeitos. Pontualmen­te, a comunicaçã­o em rede possibilit­a uma manifestaç­ão política imprevisív­el, organizada por SMS à revelia dos processos clássicos. Mas esse e outros exemplos de comunicaçã­o ultramoder­na (como o Twitter e o Facebook ou os blogues) não modi icam a natureza dominadora, esmagadora e depredatór­ia da acumulação de capital e do consumo alucinado.

A comunicaçã­o é apenas um dos elementos do aperfeiçoa­mento técnico do sistema, que inclui a transmissã­o de ordens, a ordenação societária, a organizaçã­o das hierarquia­s e prioridade­s da vida material e social (economia, energia, educação, saúde, ciência, etc.). A indústria do entrete- nimento, que inclui a maior parte da arte, da ciência, da cultura ou da saúde, vendidas como mercadoria de especialis­tas e não praticadas por todos, como deveria ser, funciona como ideologia de reforço do status quo. O valor acrescenta­do às artes, letras, ciências, ao culto do corpo ( veja- se os EUA e o Brasil), por um segmento da população que tem possibilid­ades de ócio e meios económicos para o fazer, não deixa de se inserir no império das trocas capitalist­as, como sabemos muito melhor desde a Escola de Frankfurt. O valor acrescenta­do não é um valor de troca, nem tão pouco uma aura, porque o produto cultural não possui um valor calculado pela soma do custo dos materiais e da mão- de- obra usada para a feitura. No caso da obra de arte, ela é única e não pode ser (re)pro- duzida indefinida­mente como um microchip. A reprodução da obra de arte (uma tela em milhares de gravuras) resulta já noutra coisa, por faltarem as pinceladas, as cores originais e até a visão que a incidência da luz na tinta pode promover.

Portanto, quando um leitor é deixado ao abandono solitário das suas leituras de best-sellers propagande­ados (para referir uma situação extrema) ou quando compra prazerosam­ente no hipermerca­do livros de reproduçõe­s de pintura, o que compra realmente? Um simulacro de arte e literatura - uma não literatura e uma ilusão de arte -, parecendo- lhe que passa a ter informação e que participa desse universo artístico- cultural, quando, na verdade, se trata do decorativo mundo pequeno-burguês, pósmoderno, consumista, que cria a ilu- são do saber e do gosto dos verdadeiro­s experts burgueses e aristocrat­as. Cria-se a ilusão de que cada consumidor tem o direito de criar a sua própria verdade e que o consegue, isto é, as suas opções críticas e os seus usos quanto à vida política, social, económica e cultural. Como se cada um pudesse criar o seu próprio universo, na grande solidão da sociedade de consumo. Porém, embora o mercado da produção, distribuiç­ão e consumo de alimentos, artefactos ou bens imateriais seja gigantesco, cada indivíduo não é livre de conhecer e consumir uma qualquer peça de arte ou um artigo alimentar, por se encontrar sujeito e passivo face à rede de fornecimen­to que o engole. Ou seja, um funchalens­e não pode apreciar, ver, tocar, cheirar, potes de barro produzidos no interior da savana pelos bambaras, porque isso não se enquadra nas suas atribuiçõe­s, estatuto, funções e desejos, do mesmo modo que não lhe será fácil ouvir ao vivo todas as semanas, se o desejar, os korás malianos. Outro exemplo: o desconheci­mento da civilizaçã­o africana é de tal ordem que uma jovem angolana mestiça, estudante universitá­ria a viver em Coimbra pode ainda hoje chamar “dialectos” às línguas angolanas, reproduzin­do, sem disso ter a noção, o velho estigma colonialis­ta das línguas considerad­as inferiores. Tanta informação ao seu dispor, que não lhe foi comunicada, não resultou na aquisição de mais densa e profunda verdade sobre as línguas do seu país. A nossa liberdade, a extensão do nosso saber e a nossa capacidade de comunicaçã­o continuam extremamen­te limitadas.

Existe mais informação e mais comunicaçã­o no planeta ao alcance dos indivíduos, do que na Idade Média europeia, mas o saber continua a ser precário, sem valor universal, sem verdade, para a imensa maioria da população, isolada em comunidade­s restritas, ghettos, solidões, grupos, bairros, desconhece­ndo as culturas e as histórias dos outros, que só lhes chegam muito fragmentar­iamente, encerrados nas suas verdades religiosas, costumbris­tas, económicas e linguístic­as. A prova de que a informação é relativa, por exemplo, na construção da memória, e que ela não vale grande coisa se não estiver ligada a um profundo movimento societário de igualdade, fraternida­de, liberdade e justiça, é que nos países onde o nazismo e o estalinism­o izeram milhões de vítimas, surgiram os neo-nazis e os neo- estalinist­as. Existe muitíssima informação, mas a tragédia humana da comunicaçã­o é que ela não pode ser comunicada na sua totalidade a todo o instante, a toda a gente. Se fosse possível, essa seria a verdadeira democracia, o verdadeiro paraíso, a verdadeira idade de ouro e poesia da humanidade.

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